Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
703/14.2YRLSB-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: PROCESSO ARBITRAL
AMPLIAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
PRIVAÇÃO DE USO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO (do relator).

I.Correspondendo o pedido da ação a € 5 000,00 e a condenação ao pagamento da quantia de € 4 140,03, a sentença arbitral não condena em quantidade superior ao pedido.

II.No processo arbitral permite-se, por regra, modificar ou completar a petição ou a contestação, a menos que o tribunal arbitral entenda não dever admitir tal alteração em razão do atraso com que é formulada, sem que para este haja justificação bastante.

III.Garantida a observância do princípio do contraditório, é admissível a ampliação da causa de pedir, devendo também o tribunal pronunciar-se na sentença sobre essa questão.

IV.Neste contexto, a pronúncia da sentença sobre a indemnização pela privação do uso do veículo, questão que consubstancia a ampliação da causa de pedir, não excede os poderes cognitivos do tribunal arbitral

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

                             Companhia de Seguros ..., S.A., instaurou, em 16 de junho de 2014, no Tribunal da Relação de Lisboa, contra Ana da Conceição ..., ação declarativa, na qual pede a anulação da decisão proferida, em 23 de abril de 2014, pelo Tribunal Arbitral do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), com sede em Lisboa, onde a Requerente foi condenada a pagar à Requerida a quantia de € 4 140,03 e a estornar-lhe o valor dos prémios eventualmente cobrados, a partir de 2 de novembro de 2013.

Para tanto, alegou em síntese, que, na reclamação apresentada pela Requerida se peticionava o pagamento da quantia de € 5 0000,00, relativa à perda total do veículo seguro, ao valor despendido com o reboque da viatura e ao valor dos bens furtados, nomeadamente do auto-rádio; durante a audiência de discussão e julgamento, foram ouvidas as testemunhas e feitas as alegações orais; a sentença foi proferida de imediato, tendo a Requerente ficado surpreendida com a condenação na quantia de € 1 800,00, a título de privação do uso do veículo; para além da inexistência da ampliação do pedido, esta também era inadmissível, nos termos do art. 265.º, n.º 2, do CPC, com prejuízo ainda do princípio do contraditório estabelecido no n.º 3 do art. 3.º do CPC; assim, com fundamento nas alíneas v) e vi) do n.º 3 do art. 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, justifica-se a anulação da decisão arbitral, na parte em que condena a Requerente a pagar a quantia de € 1 800,00, pela privação do uso do veículo.

Citada, a Requerida deduziu oposição, alegando que a sentença arbitral não enferma de vícios que justifiquem a sua anulação, entendendo que a reclamação apresentada também incluiu as despesas inerentes à privação do veículo, referindo-as em correspondência dirigida à Requerente, para além de mencionadas nas alegações da audiência de julgamento; processualmente era admissível a ampliação do pedido, quer nos termos do art. 265.º, n.º 2, quer do art. 33.º, n.º 3, da Lei da Arbitragem Voluntária; e concluiu pela improcedência da ação.

Designada data para a produção da prova testemunhal, ambas as partes prescindiram dessa prova.

Prosseguindo dos autos, e corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Na ação, está em discussão, essencialmente, a anulação da decisão arbitral, com fundamento nas alíneas v) e vi) do n.º 3 do art. 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Estão provados os seguintes factos:

1. A Requerente, no âmbito do processo arbitral, foi notificada para contestar a reclamação de fls. 37 a 39, apresentada pela Requerida.

2. Nessa reclamação, a Requerida pediu o pagamento da quantia de € 5 000,00, relativa à perda total do veículo, à despesa com o reboque do veículo e aos bens furtados, nomeadamente o auto rádio.

3. A Requerente apresentou contestação à reclamação.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, com a produção da prova e alegações orais, foi proferida a sentença arbitral.

5. A sentença de 23 de abril de 2014, constante de fls. 9 e 10, condenou a Requerente a pagar à Requerida, designadamente, a quantia de € 4 140,03, na qual se incluiu a quantia de € 1 800,00, pela privação do uso veículo.

6. Na sentença arbitral consta ainda que “o veículo de substituição não está incluído na reclamação inicial, mas foi referido no decurso da audiência de discussão e julgamento pela Reclamante estar privada do uso do veículo desde a data do roubo até agora, por não ter podido substituí-lo” e que “a Reclamante não está acompanhada de mandatário judicial, pelo que não poderá deixar de admitir-se o que referiu em sede de alegações como uma ampliação do pedido, embora a mesma não obedeça aos requisitos formais, requisitos que não são exigíveis à Reclamante que conheça”.

7. A Requerida remeteu à Requerente, em 18 de novembro de 2013, a carta de fls. 40 a 43, na qual reclamava uma indemnização, designadamente, por privação do uso do veículo.

***

2.2. Delimitada a matéria de facto provada, importa então conhecer do objeto do ação, da qual emerge o pedido de anulação da sentença arbitral, com fundamento expresso nas alíneas v) e vi) do n.º 3 do art. 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro.

De harmonia com o disposto na alínea v) do n.º 3 do art. 46.º da LAV, a sentença arbitral pode ser anulada, designadamente quando o tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento.

Por outro lado, e de acordo com o constante na alínea vi) do n.º 3 do art. 46.º da LAV, a sentença arbitral pode ainda ser anulada, quando foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.º s 1 e 3 do art. 42.º do LAV

Confrontando a realidade dos autos, verifica-se que a sentença arbitral, constante de fls. 9 e10, foi reduzida a escrito e assinada pelo Juiz Árbitro, encontrando-se também fundamentada, quer em termos de facto quer em termos de direito.

Deste modo, a sentença arbitral, satisfazendo integralmente os requisitos formais previstos nos n.º s 1 e 3 do art. 42.º do LAV, quer pela sua redução a escrito e estar assinada, quer ainda por estar fundamentada, tanto em termos de facto como em termos de direito, não justifica ser anulada, ao abrigo do disposto na alínea vi) do n.º 3 do art. 46.º da LAV.

Por outro lado, é também manifesto que, tendo a Requerida pedido a indemnização de € 5 000,00 e tendo a Requerente sido condenada no pagamento da quantia de € 4 140,03, a sentença arbitral não condenou em quantidade superior ao pedido, como se alegou.

Por isso, não tendo havido condenação em quantidade superior ao pedido, não existe fundamento para a anulação da sentença arbitral, com esse fundamento.

Todavia, a alegação da Requerente, ao referir que a indemnização pela privação do uso do veículo não fora objeto do pedido da reclamação, pode ser interpretada como alusão a uma causa de pedir não invocada na petição.

Na ação de indemnização, a causa de pedir é complexa e, como fundamento da ação, tem de ser alegada em toda a sua extensão, para poder integralmente ser objeto de pronúncia jurisdicional obrigatória.

Ambas as partes reconhecem que, na petição inicial, a Requerida não alegou a indemnização pelo dano da privação do uso do veículo automóvel.

É indiferente, para tal efeito, que, na correspondência postal enviada previamente à Requerente, a Requerida tivesse reclamado a indemnização também pela privação do uso do veículo. O que verdadeiramente releva é a pretensão jurisdicional, tal como é apresentada ao tribunal, nomeadamente o pedido e a causa de pedir formulados, elementos que delimitam, objetivamente, a ação arbitral e que, por regra, se mantêm inalterados ao longo de todo processo, decorrente da observância do princípio da estabilidade da instância, que impera no processo civil.

Todavia, a questão da privação do uso do veículo automóvel foi mencionada no decurso da audiência de discussão e julgamento, na qual a Requerente esteve devidamente representada, designadamente por mandatário, conforme consta da sentença arbitral.

Nesse contexto, a Requerente teve oportunidade de se pronunciar sobre essa questão da indemnização pela privação do uso do veículo, pelo que ficou garantido o respeito pelo princípio do contraditório do processo arbitral, designadamente durante a audiência de discussão e julgamento.

Por outro lado, no processo arbitral permite-se, por regra, a modificação ou o aperfeiçoamento da petição ou da contestação, a menos que o tribunal arbitral entenda não dever admitir tal alteração em razão do atraso com que é formulada, sem que para este haja justificação bastante, como decorre do disposto no art. 33.º, n.º 3, da LAV.

Perante este dispositivo normativo, é assim possível completar a petição da ação arbitral, designadamente através da ampliação da causa de pedir.

Neste caso concreto, a ampliação da causa de pedir, com vista a incluir a indemnização pela privação do uso veículo automóvel, concretizada na audiência de discussão e julgamento, correspondeu a uma simples formalidade do processo arbitral, admissível pelo ordenamento jurídico, uma vez garantida a observância do princípio do contraditório e sem que tivesse sido considerada inconveniente, nomeadamente quanto à sua oportunidade, pelo Juiz Arbitral.

O processo arbitral, de resto, não tem, nem deve ter, a rigidez própria da ação declarativa regulada no Código de Processo Civil (CPC), sendo certo que a equidade tem um espaço largo de aplicação, como resulta do disposto no art. 39.º, n.º 1, da LAV.

Nestas condições, uma vez garantida a observância do princípio do contraditório, era admissível a ampliação da causa de pedir, a qual estava desprovida de qualquer complexidade, devendo também o tribunal pronunciar-se na sentença sobre essa questão, que nem sequer determinou a ampliação do pedido formulado na ação arbitral.

Assim, a pronúncia da sentença sobre a indemnização pela privação do uso do veículo automóvel, questão que consubstancia a ampliação da causa de pedir, não excedeu os poderes cognitivos do tribunal arbitral, estando consequentemente afastada a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia.

Concluindo, também não existe fundamento válido, para a anulação da sentença arbitral, nomeadamente ao abrigo da alínea v) do n.º 3 do art. 46.º da LAV.

 

Nestes termos, improcede totalmente a ação da decisão arbitral, com a consequente absolvição do pedido.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Correspondendo o pedido da ação a € 5 000,00 e a condenação ao pagamento da quantia de € 4 140,03, a sentença arbitral não condena em quantidade superior ao pedido.

II. No processo arbitral permite-se, por regra, modificar ou completar a petição ou a contestação, a menos que o tribunal arbitral entenda não dever admitir tal alteração em razão do atraso com que é formulada, sem que para este haja justificação bastante.

III. Garantida a observância do princípio do contraditório, é admissível a ampliação da causa de pedir, devendo também o tribunal pronunciar-se na sentença sobre essa questão.

IV. Neste contexto, a pronúncia da sentença sobre a indemnização pela privação do uso do veículo, questão que consubstancia a ampliação da causa de pedir, não excede os poderes cognitivos do tribunal arbitral.

2.4. A Requerente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

Fixa-se à ação o valor de € 1 800,00.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Julgar a ação improcedente, absolvendo a Requerida do pedido.

2) Condenar a Requerente no pagamento das custas, fixando à ação o valor de € 1 800,00.

Lisboa, 27 de novembro de 2014

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)