Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
623/24.2YRLSB-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
CRIANÇA
AMIGA DOS FILHOS
CONVIVÊNCIA
FACTOS
REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/26/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DIFERIDA
Sumário: Respeitando o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais em questão a um dos melhores amigos de um dos seus filhos da Juíza, requerente da escusa, frequentando a sua casa várias vezes por mês e contactando e convivendo, por isso, com os respetivos pais, para além de ter presenciado factos relacionados com o objeto do processo, mostra-se existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Sra. Juíza de Direito “A”, a exercer funções no Juízo Misto de (…), veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119º do CPC, seja dispensada de intervir no Processo nº. (…)/24.0T8(…)
Para tanto, invocou que os autos se reportam a um processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, referente a uma criança – nascida em abril de 2014 - que foi colega de creche de um dos seus filhos, o qual também é um dos melhores amigos do seu filho e, nessa qualidade, frequenta a sua casa pelo menos 2 ou 3 vezes por mês, contactando, por via dessa amizade, com regularidade com os pais da criança objeto do referido processo, em especial com a mãe. Salienta que, também, no contexto desses contactos/convívios, presenciou conversas, reações, etc., relacionadas com o objeto do processo.
Conclui que a situação relatada será de molde a fundar circunstância ponderosa justificativa de escusa.
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Vejamos:
Nos termos plasmados no nº. 1 do art. 119º do CPC., o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A independência do juiz é, acima de tudo, um dever ético-social.  
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz iria ou não manter a sua imparcialidade, mas a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar que o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais em questão, respeita a um dos melhores amigos de um dos seus filhos, que frequenta a sua casa várias vezes por mês, contactando e convivendo, por isso, com os respetivos pais, para além de ter presenciado factos relacionados com o objeto do processo.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas o seu não distanciamento do caso concreto, ainda para mais, quando estão em causa pessoas que contactam/convivem regularmente com a Sra. Juíza.
Porém, não se coloca somente a questão do contacto social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
Aqui releva também, o conhecimento e eventual envolvimento que a Sra. Juíza possa ter em relação aos autos, tendo presenciado factos que serão pertinentes ao mesmo.
Os processos referentes a crianças, menores de idade, envolvem sempre aspetos muito sensíveis e não seria só a imparcialidade da Sra. Juíza que ficaria em causa, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais, ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões, tudo conjugado com a dimensão geográfica (…) onde a Sra. Juíza exerce funções.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo.
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Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza "A", no âmbito do Processo nº. (…)/24.0T8(…).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 26-02-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente com poderes delegados)