Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8990/2005-6
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ARRENDAMENTO
DETERIORAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: A construção pelo inquilino no terraço da fracção de uma marquise em estrutura metálica e caixilharia de alumínio, constitui uma deterioração lícita permitida pelo art. 4º, nº 1 do RAU.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório

R… Lda, com sede na Av. António Augusto de Aguiar, 189, Lisboa, instaurou nas varas cíveis de Lisboa a presente acção declarativa com processo ordinário contra a N…, e marido L…, ambos advogados, com domicílio profissional na Rua do Viriato, nº 25, 1º esq. Lisboa, pedindo:
A condenação dos RR a demolirem a marquise que a 1ª Ré construiu na fracção autónoma que tomou de arrendamento à Autora, obra que realizou sem autorização daquela e sem licença camarária, e condenados ainda a repôr o imóvel nas condições em que se encontrava antes da realização daquelas obras.

Contestaram os RR dizendo, em síntese, o seguinte:
A Ré N…, que havia sido advogada da Autora, tomou de arrendamento a fracção correspondente ao 5ª andar de um prédio da Autora, indo habitá-la em Maio de 1995. As obras alegadas na petição, cuja construção a Autora imputa aos RR, foram efectuadas pela própria Autora e terminadas antes de a Ré ir habitar a fracção. O facto de a Ré aparecer como infractora no auto levantado pela polícia municipal, deveu-se ao facto de aquela ter acedido a uma solicitação que nesse sentido lhe fez o sócio gerente da Autora, por a coima por tal infracção ser mais baixa sendo o infractor pessoa singular. Assim, não tendo praticado o facto que a demandante lhes imputa, deve a acção improceder.

Saneado o processo e condensada a matéria de facto, com elaboração da base instrutória, realizou-se o julgamento a que se seguiu a prolação da sentença que julgou a acção improcedente quanto ao Réu L…, que por isso foi absolvido, e procedente quanto à Ré N… que foi condenada no pedido.
Inconformada, a Ré apelou concluindo a sua alegação com as seguintes conclusões:
I - Procedendo-se à reapreciação da prova documental e testemunhal produzida, deve ser alterada a resposta dada aos quesitos 4º, 5º, 6º, 7º, 13º e 14º, pela forma que acima se deixou especificada;
II - Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva a Ré do pedido.
Contra alegou a Autora pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção da sentença.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
///
Fundamentação.
A sentença recorrida assentou no seguinte acervo factual:
1. A aquisição do prédio urbano sito na Rua …, nºs 8. 8-A e 8-B, e Rua … nºs 75, 75-A e 75-B, Lisboa, descrita na 7ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 01417/281093, acha-se registada a favor da Autora desde 28/10/93 (alínea A dos factos assentes).
2. A 21/96/94, a Autora requereu à C.M.Lisboa a autorização para a supressão de porteira no prédio identificado no número anterior (alínea B).
3. A pretensão referida em 2, foi deferida pela CML, decisão que foi publicada no Boletim Municipal nº 41, a fls. 2.018 de 6 de Dezembro de 1994 (alínea C).
4. A 15/11/94, a Autora celebrou com a Ré N… acordo escrito nos termos do qual aquela cedeu a esta o gozo temporário da fracção correspondente ao 5º andar, antiga casa da porteira, do prédio identificado no ponto 1, para a referida Ré nele habitar, mediante contrapartida mensal em dinheiro (alínea D).
5. À data referida no número anterior, a Ré N… era advogada e representava a Autora em, pelo menos, duas causas (alínea E).
6. Na decisão da CML referida supra em 3, aquela edilidade concedeu à Autora o prazo de 60 dias para apresentar “um projecto de alteração à designação do fogo da porteira, sob pena de caducidade da supressão concedida” (alínea F).
7. A Ré N… patrocinou a Autora no processo camarário com a apresentação do requerimento referido no número 2 (alínea G).
8. No 5º andar do prédio referido no número 1, foram feitas obras que se traduziram no fecho de um terraço em estrutura metálica, com cobertura em chapas perfiladas tipo “chaperfil” e caixilharia em alumínio anodizado, numa área de 15 m2 – 3 x 5 (alínea H).
9. Os serviços da Câmara Municipal de Lisboa tomaram conhecimento da realização das obras referidas no número anterior, tendo lavrado um auto de notícia (alínea I).
10. ... e na sequência, aplicaram à Ré N… uma coima, com o fundamento de que tais obras haviam sido efectuadas sem licença camarária (alínea J).
11. A Ré N… requereu à CML autorização para o pagamento da coima mencionada no número anterior em prestações (alínea L).
12. Tal pretensão foi deferida e as prestações ali mencionadas foram integralmente pagas (alínea M).
13. A CML veio a indeferir o projecto de alterações nº 388/OB/95, apresentado na sequência do deferimento do pedido de supressão de porteira referido no nº 3, devido à realização, sem licença, das obras mencionadas no número 8 (alínea N).
14. Os RR, no exercício das suas profissões de advogados, patrocinaram a Autora no processo camarário referido no número anterior (alínea O).
15. As obras referidas supra em 8 foram efectuadas por iniciativa da Ré N… (resposta ao art. 4º da base instrutória).
16. ...sem autorização da Autora e contra a sua vontade (art. 5º).
17. A Ré N…. tinha relações de amizade com o gerente da Autora (art. 15º).
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O direito.
Visto as conclusões da alegação da Apelante, que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso (art.s 684º, nº 3 e 690º do Cód. Processo Civil), são duas as questões a apreciar por este tribunal:
- Modificação da decisão sobre a matéria de facto;
- Acerto da decisão.
(...)

Analisemos agora o mérito da decisão.
A sentença recorrida para julgar a acção procedente quanto à Ré, depois de qualificar o contrato celebrado pelas partes como de arrendamento e de transcrever o teor do art. 1043º do Cód. Civil, disse:
“A obra realizada pela arrendatária a que aludem os pontos 8 e 14 da matéria de facto provada, porque não está abrangida pelos art.s 1043º do Cód. Civil e 4º do RAU, tem de ser destruída, sendo certo que não foi autorizada pelo senhorio”.
A parte decisória, em consonância com este entendimento, condenou a Ré a demolir a marquise..., repondo a fracção nas condições em que a mesma se encontrava antes da realização da obra.
Que dizer?
Entre Autora e Ré vigora um contrato de arrendamento desde 15.1.94, nos termos do qual a Ré vem habitando o 5º andar de um prédio sito na Rua … em Lisboa.
Na acção a Autora não veio pedir a resolução do contrato com fundamento na realização de obras não autorizadas, mas, apenas, a condenação dos RR a demolirem a marquise, baseando a sua pretensão nos seguintes fundamentos:
- A obra não foi por ela autorizada;
- Altera a estrutura externa e interna do prédio;
- Foi causa de indeferimento do projecto de alterações nº 338/OB/95, entregue na Câmara Municipal de Lisboa.

Quanto ao primeiro fundamento – não autorização da obra – não sendo esta uma acção de despejo com fundamento na causa resolutiva do art. 64º, nº1 alínea a) do RAU, o mesmo, por si só, não é motivo para o deferimento da pretensão da Autora.
Terá a obra em causa alterado a estrutura externa e interna do prédio?
Deve considerar-se que alteram a estrutura externa do prédio as obras que impliquem uma modificação irreparável ou irremediável, com prejuízo funcional ou estético de carácter permanente, não possibilitando a normal reposição do prédio no estado anterior. Em suma: uma alteração substancial da fisionomia do prédio (cf. Pais de Sousa, Regime do Arrendamento Urbano, 6ª edição, pag. 207, e Capelo de Sousa, in CJ, ano XII, tomo 5, pag. 214).
Quanto às obras que alteram a estrutura interna de um prédio, devem considerar-se as que alteram substancialmente a disposição interna de uma casa, que implicam uma modificação profunda ou fundamental da fisionomia interna respectiva, por forma a que fica desfigurada, descaracterizada, com uma nova planificação (Ac. da Relação de Lisboa de 09.06.94, CJ ano XIX, tomo 3, pag. 111).
No caso vertente, afigura-se-nos que a obra feita pela Ré não alterou nem a estrutura externa do prédio nem, manifestamente, a estrutura interna.
O fecho do terraço com uma estrutura metálica e caixilharia de alumínio anodizado ocorreu no último andar de um prédio de cinco, não se vendo que desta obra tenha resultado para o prédio um prejuízo funcional ou estético de carácter permanente ou que de algum modo tenha sido afectada a segurança, a estrutura e o valor arquitectónico do prédio. É dizer, não se vê que do fecho do terraço tenha resultado um prejuízo para o senhorio.
Quanto ao último motivo invocado, importa apenas referir que a procedência da acção em nada adiantaria à Autora, uma vez que o indeferimento do projecto de alterações nº 388/OB/95 já ocorreu.
Não significa isto, no entanto, que a Autora esteja obrigada a suportar para sempre a obra realizada pela Autora.
Vejamos porquê.
O regime legal do contrato de arrendamento consta, essencialmente do Cód. Civil e do DL nº 321-B/90 de 15 de Outubro que aprovou o Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (RAU).
No art. 1038º do Cód. Civil, a lei enuncia o conjunto de obrigações que resultam para o arrendatário da celebração do contrato, entre as quais as de pagar a renda, de não fazer da coisa uma utilização imprudente e de a restituir findo o contrato.
Especificamente sobre o dever de manutenção e restituição da coisa, dispõe o nº1 do art. 1043º do Cód. Civil:
“Na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.”
Interessa também atentar no teor do art. 4º do RAU que, sob a epígrafe deteriorações lícitas, estatui:
“1. É lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado, quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade.
2. As deteriorações referidas no número anterior devem, no entanto, ser reparadas antes da restituição do prédio, salvo estipulação em contrário.”

Ensina Antunes Varela, “que as pequenas deteriorações voluntariamente provocadas no prédio, quando necessárias para assegurar o conforto ou a comodidade do arrendatário, de acordo com o gozo do imóvel que o contrato visa proporcionar, quando reparáveis, não contrariam as regras da utilização prudente do prédio, que o contrato faculta ao locatário, art. 1038º, al. d) do Cód. Civil (Cod. Civil anotado, Vol. II, 4ª edição pag. 485).
De modo idêntico, o Sr. Cons. Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, 1995, pag. 116, escreve que “têm de se considerar como deterioração inerente a uma prudente utilização a faculdade de o arrendatário comercial ou industrial afixar anúncio ou reclamo das respectivas actividades no prédio, de o arrendatário construir marquise amovível na varanda, de rasgar um orifício ou abertura na parede para instalação de ar condicionado ...”.
Julga-se ser justamente isto que ocorre no caso dos autos.
A obra em causa deve ser considerada uma pequena deterioração do prédio, autorizada pelo art. 4º do RAU: foi construída para maior conforto e comodidade da arrendatária e pode ser retirada sem problemas de maior, naturalmente a cargo da Ré/Apelante, pelo menos antes da restituição do arrendado.
Pelas razões expostas, procede a apelação não podendo manter-se a sentença.
Em síntese pode formular-se a seguinte conclusão:
A construção pelo inquilino no terraço da fracção arrendada de uma marquise, em estrutura metálica, com cobertura em chapas perfiladas e caixilharia de alumínio, constitui uma deterioração lícita, para os efeitos do art. 4º do RAU, não podendo o senhorio exigir a sua demolição durante a vigência do contrato de arrendamento.

Decisão.
Pelo exposto, concede-se provimento à apelação, revoga-se a sentença e julga-se a acção improcedente.
Custas pela Apelada.
Lisboa, 15.12.05
Ferreira Lopes
Manuel Gonçalves
Aguiar Pereira)