Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9885/2006-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
INTERESSE PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1ª - O pacto de aforamento é uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal do artigo 100º do C.P.C. que a consente, cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que é encarada a aplicabilidade das demais normas atinentes à competência territorial.

2ª - A circunstância de haver sido celebrado pacto de aforamento anterior à Lei nº 14/2006 não afasta o critério legal consagrado, porque tal pacto, face à opção legislativa tomada, passou desde então a não ser reconhecido pelo legislador como disposição susceptível de afastar o critério legal de fixação de competência em razão do território.

3ª - Sendo a acção destinada a exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária, residindo o réu na comarca de Mação, a acção tem de ser proposta nessa comarca, por força da aplicação dos artigos 74º nº 1, primeira parte e 110º nº 1 alª a) do Código de Processo Civil, na redacção da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, sendo o tribunal de Lisboa incompetente em razão do território para a tramitação dos presentes autos, devendo o juiz conhecer oficiosamente dessa incompetência.

4ª - O artigo 110º nº 1 alínea a) do C.P.C, enquanto interpretado no sentido que permita a sua aplicação a contratos celebrados anteriormente à sua publicação e em que as partes optaram por um foro convencional, não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os apontados princípios da proporcionalidade e da não retroactividade.

(ISM)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

 I - RELATÓRIO

Banco ---, SA, com sede em Lisboa, intentou contra B---, residente em Roda, Cardigos, em Mação, a intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe determinada quantia por incumprimento de contrato.

Foi proferido despacho que declarou o tribunal incompetente, em razão do território, para tramitar a acção e, em consequência, determinou a sua remessa ao Tribunal Judicial de Mação, em estrito cumprimento do disposto nos artigos 74º, 108º a 111º, 493º, 494º, alínea a) e 495º do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 14/06.

Não se conformando com o douto despacho dele recorreu o autor, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5º e 12º, nºs. 1 e 2, do Código Civil.

2ª - O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo nº 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no  artigo 2º da Constituição da Republica Portuguesa.

3ª - Impõe-se, pois, como se requer, procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido.

Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto
A matéria relevante é a que resulta do relatório do presente acórdão.

B- Fundamentação de direito

Dispõe o artigo 74º nº 1 do Código de Processo Civil, na redacção dada pela Lei nº 14/06, de 26/ de Abril, o seguinte:

“A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.

O artigo 6º da referida lei, sob a epígrafe “aplicação no tempo” estatui que “ a presente lei aplica-se às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”.

Na 15ª Condição Geral do contrato de mútuo celebrado entre as partes em 29 de Dezembro de 2003, foi clausulado que a “ para todas as questões emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro”.
 
Foi com base nessa cláusula que o autor intentou a presente acção na comarca de Lisboa em 28 de Junho de 2006, estando o réu domiciliado em Mação.

A lei entrou em vigor em 1 de Maio de 2006 (1), aplicando-se a todas as acções “instauradas em juízo” a partir de tal data.

Como doutamente vem decidido, “a circunstância de haver sido celebrado pacto de competência anterior não afasta o critério legal consagrado, exactamente porque tal pacto, face à opção legislativa tomada, passou desde então a não ser reconhecido, pelo legislador, como disposição susceptível de afastar o critério legal de fixação de competência em razão do território”.

A Lei 14/2006 veio impor a irrenunciabilidade do direito de arguir a incompetência territorial do tribunal, assim como o conhecimento oficioso de tal matéria pelo tribunal.  

O pacto de competência celebrado deixou de ser reconhecido como válvula de afastamento da competência legal, na medida em que no momento em que o autor instaura a acção, o pacto extravasa os limites da autonomia contratual, consagrada no artigo 405º nº 1 do Código Civil, não lhe sendo reconhecida qualquer eficácia, sendo o mesmo nulo, por impossibilidade legal.

A celebração de convenções sobre a competência está genericamente sujeita às mesmas regras de formação (atinentes à declaração de vontade e aspectos conexos) e aos mesmos requisitos de validade de qualquer contrato substantivo. Por regra, os elementos constitutivos da convenção são regulados pelo direito material e a sua admissibilidade e efeitos são definidos pelo direito processual. (2)

As normas de fixação de competência têm carácter imperativo, sendo que a competência se fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, conforme vem preceituado no artigo 22º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ).

O pacto de aforamento “não é mais do que uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal que a consente (artigo 100º do C.P.C.) cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que é encarada a aplicabilidade das demais normas atinentes à competência territorial. O pacto de aforamento não é, como também se disse, mais do que uma regra de competência cuja validade deve ser aferida à luz das regras de competência em vigor no momento em que a acção é proposta” (3).

Sendo a acção destinada a exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária, residindo o réu na comarca de Mação, a acção tem de ser proposta nessa comarca, por força da aplicação dos artigos 74º nº 1, 1ª parte e 110º nº 1 alª a) do Código de Processo Civil, na redacção da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, sendo o tribunal de Lisboa incompetente em razão do território para a tramitação dos presentes autos, devendo o juiz conhecer oficiosamente dessa incompetência.

Esgrime ainda a agravante com a inconstitucionalidade do artigo 110º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, na interpretação que permita a sua aplicação a contratos celebrados anteriormente à publicação da Lei 14/2006 em que as partes tenham optado, nos termos do artigo 100º nºs 1, 2, 3 e 4 do C.P.C, por um foro convencional no que respeita à competência dos tribunais em razão do território, por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no  artigo 2º da Constituição da Republica Portuguesa.

O douto despacho recorrido entendeu não ser inconstitucional a interpretação da Lei 14/06, no sentido de a mesma ser aplicável às acções entradas em juízo após a sua entrada em vigor, ainda que as partes hajam firmado pacto de competência anteriormente, por não ocorrer violação dos princípios da proporcionalidade, da segurança e da não retroactividade da lei restritiva.

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três sub princípios:

(a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

(b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos liberdades e garantias;

(c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas excessivas, em relação aos fins obtidos” (4).

Tal princípio da proporcionalidade está consagrado no art.º 18º nº 2, da CRP quando consigna - “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

O princípio da não retroactividade está consagrado no artigo 18º nº 3 da Constituição da República e dispõe que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”

Segundo Gomes Canotilho, “ com a LC nº 1/82, o princípio da não retroactividade deixou de ser um princípio circunscrito ao âmbito penal ( cf. art.º 29º) para passar a ser um princípio geral das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (5).

Vejamos então se o mencionado artigo 110º nº 1 alª a) do C.P.Civil, na interpretação que permita a sua aplicação a contratos celebrados anteriormente à publicação da Lei 14/2006 em que as partes tenham optado por um foro convencional no que respeita à competência dos tribunais em razão do território, é inconstitucional, por violação dos princípios acima referidos.

Antes de mais importa compreender as razões que levaram o legislador à feitura da Lei nº 14/2006.

Existe entre nós uma grande concentração da actividade judicial num número relativamente restrito de acções de dívidas. No sistema judicial português os indivíduos apenas dominam como réus. Como autores, dominam as pessoas colectivas, basicamente sociedades comerciais: bancos, companhias de seguros e empresas de crédito ao consumo.
O sistema judicial cível, sobretudo em Lisboa e Porto, está “colonizado” pela cobrança de dívidas, sobretudo ao serviço das grandes empresas do sector financeiro.

A causa do litígio decorre, na maioria dos casos, do incumprimento da obrigação pelo devedor, que a contraiu num ambiente de concessão indiscriminada de crédito, sem averiguação da solvabilidade daqueles a quem é concedido. As regras processuais de competência, privilegiando o domicílio do credor, que nestes casos são invariavelmente poderosas sociedades comerciais, conduzem à concentração destas acções nos juízos cíveis e no tribunal de pequenas instância cível, convertendo os tribunais em “ órgãos que são meras extensões dessas empresas” (6).

Estas são uma das causas que asfixiam o sistema de justiça nos tribunais cíveis de Lisboa e Porto. Não tendo havido sucesso na desjudicialização consensual deste tipo de litígios e continuando a não desaparecer a “maré negra” de processos que assolou os principais tribunais portugueses, ao legislador impunha-se uma tomada de posição urgente, distribuindo os custos dos conflitos pelas diversas comarcas do país.

Foi o que fez com a publicação da lei 14/2006, em que procedeu à introdução da regra da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações e ao conhecimento oficioso da incompetência territorial no caso da primeira parte do nº 1 do artigo 74º, conforme vem previsto no artigo 110º nº 1 alª a), ambos do C.P.Civil, com o objectivo de descongestionar os tribunais cíveis de Lisboa e Porto.

Repare-se que o legislador foi cauteloso, introduzindo aquela regra e permitindo o conhecimento oficioso da incompetência territorial apenas em relação aos réus, pessoas singulares – primeira parte do nº 1 do artigo 74º -, deixando ao credor a possibilidade de optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana – segunda parte do nº 1 do artigo 74º.

Ao legislador é reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto significa que perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada (7).

O legislador, ciente das dificuldades crescentes dos grandes tribunais acima mencionados e de que a ausência de intervenção neste domínio agravaria ainda mais a situação do sistema de justiça neles praticada, optou pela solução de bom senso, repartindo pelas diversas comarcas os custos dos conflitos, libertando os sobrecarregados tribunais cíveis de Lisboa e Porto.

A Lei 14/2006 não restringiu o direito que assistia às partes de estabelecerem um foro convencional nos termos e de harmonia com o disposto no artigo 100º do Código de Processo Civil. Na verdade, como já se disse, o pacto de aforamento não é mais do que uma regra de competência cuja validade deve ser aferida à luz das regras de competência em vigor no momento em que a acção é proposta.

Verificar-se-á, então, a inconstitucionalidade apontada pelo agravante e pelas razões referidas nas conclusões?
 
Entendemos que é manifesto que a norma em causa (o artigo 110º nº 1 alínea a), enquanto interpretada no sentido que permita a sua aplicação a contratos celebrados anteriormente à sua publicação e em que as partes optaram por um foro convencional, não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os apontados princípios da proporcionalidade e da não retroactividade.

A alteração verificada nos artigos 74º nº 1 e 110º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil pela Lei nº 14/2006 não traduziu uma oneração discriminatória de determinados actos ou processos em relação a outros, mantendo-se aquele "equilíbrio interno ao sistema" necessário a observância dos princípios da proporcionalidade e da não retroactividade.

Tal alteração constitui mesmo uma medida há muito desejada, sendo uma medida justa e que contribui para repor o equilíbrio do sistema de justiça.

Apesar da ausência de qualquer relatório justificativo, as razões acima descritas justificam a opção do legislador pela conhecimento oficioso da incompetência em razão do território nas circunstâncias previstas na primeira parte do nº 1 do artigo 74º do Código de Processo Civil.

A opção tomada pelo legislador não se afigura violadora dos princípios da justiça e da proporcionalidade. Na verdade, a Administração não tem de manter tribunais com excesso de processos desta natureza, convertidos, como já se disse, em “órgãos que são meras extensões dessas empresas”, com juízes funcionalizados, podendo o custo ser repartido por outros tribunais de menor dimensão.

Por isso, não existe qualquer violação do princípio da adequação, pois a medida legislativa constitui um meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei e acima referidos.

Muito menos o princípio da exigibilidade, pois a medida tornava-se exigível para os fins visados pela lei e acima expostos.

Por fim, também foi respeitado o princípio da proporcionalidade em sentido restrito, pois a medida legislativa é justa, proporcionada e não excessiva.

Compreende-se que o legislador pretendeu consagrar uma repartição de encargos e custos pelos diversos tribunais, nos limites do razoável e com respeito pelo princípio da proporcionalidade. O caso em análise não desrespeita esses limites, não existindo qualquer afectação da proporcionalidade.

Por último, importa saber se se verifica a violação do princípio da não retroactividade consignado no nº 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

O princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas, razão pela qual a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito tem de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Constituição.

Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam "tocadas" relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio será posto em causa nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico, que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção e segurança jurídica que esta implicado pelo princípio da Estado de Direito Democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos tem de respeitar (8).

Com base nestes pressupostos e tendo em atenção as razões que levaram o legislador a publicar a Lei 14/2006, não se verifica qualquer violação do princípio da não retroactividade consignado no nº 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

O artigo 110º nº 1 alínea a) do C.P.Civil, na redacção da referida lei, não atingiu de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar (9).

É tempo de formular as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - O pacto de aforamento é uma norma definidora da competência territorial fundada em disposição legal do artigo 100º do C.P.C. que a consente, cuja aplicabilidade não pode deixar de ser encarada nos mesmos termos em que é encarada a aplicabilidade das demais normas atinentes à competência territorial.

2ª - A circunstância de haver sido celebrado pacto de aforamento anterior à Lei nº 14/2006 não afasta o critério legal consagrado, porque tal pacto, face à opção legislativa tomada, passou desde então a não ser reconhecido pelo legislador como disposição susceptível de afastar o critério legal de fixação de competência em razão do território.

3ª - Sendo a acção destinada a exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária, residindo o réu na comarca de Mação, a acção tem de ser proposta nessa comarca, por força da aplicação dos artigos 74º nº 1, primeira parte e 110º nº 1 alª a) do Código de Processo Civil, na redacção da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, sendo o tribunal de Lisboa incompetente em razão do território para a tramitação dos presentes autos, devendo o juiz conhecer oficiosamente dessa incompetência.

4ª - O artigo 110º nº 1 alínea a) do C.P.C, enquanto interpretado no sentido que permita a sua aplicação a contratos celebrados anteriormente à sua publicação e em que as partes optaram por um foro convencional, não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os apontados princípios da proporcionalidade e da não retroactividade.

III - DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo agravante.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2006

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes



__________________________________
1.-Por força do art.º 2º da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro.

2.-Miguel Teixeira de Sousa, in “ Competência Declarativa dos Tribunais Comuns”, Lex, pág. 100.

3.-Ac. RL de 14.09.2006 ( Salazar Casanova), in www.dgsi.pt

4.-Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra 1993, pág. 153. No mesmo sentido, Gomes Canotilho, “ Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 4ª edição, Almedina, págs. 268-269.

5.-Ob. cit. pág. 445.

6.-Ver preâmbulo do DL nº 269/98, de 1 de Setembro e Miguel Veiga, “ A Crise de Confiança nos Contratos”, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59, II – Lisboa, Abril de 1999, pág. 811.

7.-Ac.TC nº 485/2000, de 22 .11.2000, in DR II Série nº 3 de 4 de Janeiro de 2001, pág. 139.

8.-Ac.TC nº 5378/1995, de 21.06.1995, in www.dgsi.pt.
9.-Ac.TC nº 486/97, in DR II Série, de 17 de Outubro de 1997.