Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
135/22.9PBSCR-A.L1-5
Relator: SARA ANDRÉ DOS REIS MARQUES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
UTILIZAÇÃO DE MEIOS TÉCNICOS DE CONTROLO À DISTÂNCIA
DECISÃO FUNDAMENTADA NA SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
1- A utilização dos meios técnicos de controlo à distância não decorre obrigatoriamente da aplicação da pena acessória, estando dependente da sua imprescindibilidade em face das necessidades de protecção da vítima, tendo de ser justificada e, ainda, do consentimento da vítima e do condenado.
2- O juiz pode, em alguns casos prescindir do consentimento, mas sempre mediante decisão fundamentada.
3- Se na sentença condenatória transitada em julgado, em face dos factos aí dados como provados, o Tribunal não entendeu ser imprescindível para a proteção da vítima a fiscalização do cumprimento da pena acessória por vigilância eletrónica, não o tendo determinado, mantendo-se inalterado o quadro factual, esta fiscalização não pode ser determinada posteriormente por despacho, pois tal redundaria numa intolerável violação do caso julgado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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I- Relatório:
No âmbito deste processo comum e com intervenção do Tribunal Singular foi o arguido AA condenado, por sentença proferida em 10/11/2023, transitada em julgado, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº1-b) e nº 2, al. a), nºs 4 e 5, todos do Código Penal, nas seguintes penas:
a. na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução a pena de prisão referida em a), pelo período de 2 (dois) e 6 (seis) meses, sob Regime de Prova que inclua frequência de curso sobre violência doméstica;
b. na pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB, (por qualquer meio, directo ou indirecto) pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses
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O Sr. Juiz a quo proferiu ainda o seguinte despacho, datado de 19.12.23:
Fls. 310:
Dê conhecimento à DGRSP de que nos termos do art.º 152º, n.º 5 do Código Penal, a aplicação da pena acessória de proibição e contactos com a vítima deve ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.”
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-» Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, apresentou a motivação de recurso e formulou, a final, as conclusões que seguidamente se transcrevem:
a. Por sentença proferida, o arguido AA, foi condenado pela pratica em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência domestica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1-b) e n.º 2, al. a), n.º 4 e 5, todos do CP na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo períodos de 2 anos e 6 meses, sob regime de prova que inclua frequência de curso sobre violência domestica; proibição de contacto com a vitima, por qualquer meio, directo ou indirecto, pelo mesmo período e por ultimo ao pagamento ofendida a titulo de danos não patrimoniais a quantia de 1.000€ no prazo de dois meses.
b. Não tendo feito o tribunal a quo, qualquer referência quanto a utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização de dita decisão, na sentença proferida.
c. Entende o arguido que a aplicação de meios electrónicos que visem a fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contacto com a vítima é excessiva por violar os princípios da adequação e da necessidade consagrados no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.
d. O tribunal a quo não faz qualquer referência na sentença proferida, nem fundamentou a sua decisão posterior no despacho proferido em 19.12.2023, ou seja, o tribunal a quo não devidamente fundamentado um juízo de imprescindibilidade da fiscalização do cumprimento da medida com recurso a meios técnicos.
e. Pelo que deve ser revogado o despacho proferido que determina a imposição ao arguido dos meios electrónicos de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da pena acessória.
f. A aplicação da vigilância eletrónica encontra-se rodeada de uma série de pressupostos tendentes a garantir o efetivo cumprimento das medidas aplicadas sem esquecer, porém, mercê da necessidade de garantir o cumprimento de princípios com dignidade constitucional como seja o do respeito pela dignidade da pessoa humana, o respeito pelos direitos fundamentais do condenado, da vítima e de terceiros que são afetados pela aplicação dessa vigilância.
g. O legislador não prescindiu da exigência de que a decisão de aplicação da vigilância eletrónica seja tomada por um juiz e mediante despacho fundamentado, recolhidas as informações que se impõem no caso concreto e ouvidos os sujeitos processuais.
h. A aplicação dessa vigilância, enquanto medida que se traduz numa intromissão na esfera privada daqueles que por ela são afetados, está dependente, por um lado, de um juízo de imprescindibilidade face às necessidades de proteção da vítima e, por outro lado, do consentimento do condenado, da vítima e de terceiros por ela afetados, limitando o legislador a casos especiais, a possibilidade de o juiz dispensar o consentimento (imprescindibilidade para proteção dos direitos da vítima), mas sempre mediante decisão fundamentada (a envolver, necessariamente, um juízo de ponderação entre os interesses em conflito).
i. Sendo caso de definição de uma pena acessória, a indicação das concretas razões de facto que subjazem ao juízo de imprescindibilidade de aplicação dos meios eletrónicos e da dispensa do consentimento deve constar da própria sentença.
j. O tribunal a quo, depois de decidir aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactar a ofendida por qualquer forma ou em qualquer lugar, ao abrigo do disposto no artigo 152º, nº4 e 5, do CP e do disposto no artigo 34º-B, nº1, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro, determinou a fiscalização daquela medida por meios técnicos de controlo à distância, independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima.
k. Atento ao exposto deverão V. Exas. revogar o despacho proferido que determina a imposição ao arguido dos meios electrónicos de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da pena acessória, por não ter sido decretada e fundamentada nos termos legais e por existir outros meios electrónicos que possibilitam a fiscalização da pena acessória aplicada ao arguido.
Nestes termos, deverão V. Exas. revogar o despacho que decretou imposição ao arguido dos meios electrónicos de controlo à distância para fiscalização do cumprimento da pena acessória, por não ter sido decretada e fundamentada nos termos legais e por existir outros meios electrónicos que possibilitam a fiscalização da pena acessória aplicada ao arguido.”
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-» Admitido o recurso, com subida em separado, de imediato e com efeito meramente devolutivo, o Ministério Público junto da primeira instância respondeu, pugnando pelo seu não provimento e apresentando as seguintes conclusões:
1. O recorrente interpôs recurso do despacho proferido no dia 19.12.2023, no qual foi esclarecido à DGRSP que a pena acessória de proibição de contactos deve ser fiscalizada por maios técnicos de controlo à distância.
2. Na douta sentença proferida no dia 10.11.2023, foi fundamentada a decisão de aplicação da pena acessória, designadamente, após a separação da ofendida existiram tentativas e contacto, presencial ou não, tendo criado a convicção ao Tribunal de que o arguido não tem juízo crítico para os seus actos.
3. A leitura que fazemos do art.º 152º, n.º 5 do Código Penal, é de que, a partir da redacção conferida pela Lei n.º 19/2013 de 21 de Fevereiro, o Juiz tem o dever de aplicar a pena acessória e esta terá que ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, e apenas na opção negativa tem o dever de fundamentação, ou seja, deixou de ser uma possibilidade, para constituir um poder- dever.
4. Mas apesar do nosso entendimento, na verdade, a sentença fundamentou a razão de ter aplicado a pena acessória o os fundamentos da fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância.
5. Nada invalida que os fundamentos sejam os mesmos: a defesa da vítima relativamente às investidas do arguido.
EM DEFESA DA LEGALIDADE DEMOCRÁTICA
6. Como texto jurídico, a sentença está sujeita a regras de interpretação, e se o arguido não é capaz de a interpretar é também por esse motivo que está acompanhado de advogado.
7. Não é pelo facto de se escrever muito que fundamenta bem. O que interessa na verdade é fazer com que os outros, socorrendo-se de regras de interpretação, percebam o único sentido e alcance do que está escrito.
8. E, de facto, é precisamente isso que a sentença refere
9. Sendo o arguido conhecedor da sentença, nada mais o despacho recorrido tinha que referir a propósito.”
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Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância e aderindo à argumentação oferecida, acrescentando que “a sentença em crise faz um juízo sobre a perigosidade do arguido, justificando a necessidade de uma pena acessória de proibição de contactos “ e que o despacho sindicado é um “despacho de mera execução de um ditame legal incontornável, que não carece de justificação ou de fundamentação alguma, muito menos do consentimento do arguido. Há no art.º 152.º n.º 5 CP uma presunção juris et de jure de perigosidade do agente que é condenado, no âmbito do crime de violência doméstica e sujeito a pena acessória de proibição de contactos, que dispensa qualquer fundamentação sobre a imposição desses meios. (…) Imposta esta sanção acessória, o que se segue são meras questões técnicas e operacionais a resolver pela DGRSP, sem necessidade de qualquer outro acto decisório do julgador.”
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido oferecida resposta.
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Após os vistos, foram os autos à conferência.
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II- Questões a decidir no recurso:
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2, e 410º, nº 3, do mesmo diploma legal)
O objeto do presente recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à apreciação da aplicação dos meios técnicos de vigilância eletrónica à pena acessória
III Factos relevantes para a decisão da questão suscitada:
Definidas as questões a tratar, importa considerar a factualidade que resulta da análise dos autos com interesse para a decisão a proferir:
1. No âmbito deste processo comum e com intervenção do Tribunal Singular foi o arguido AA condenado por sentença proferida em 10/11/2023, transitada em julgado a 14-12-2023, pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº1-b) e nº 2, al. a), nºs 4 e 5, todos do Código Penal:
a. na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
b. suspende-se na sua execução a pena de prisão referida em a), pelo período de 2 (dois) e 6 (seis) meses, sob Regime de Prova que inclua frequência de curso sobre violência doméstica;
c. na pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB, (por qualquer meio, directo ou indirecto) pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses
d. pagamento à ofendida BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de 1. 000,00€ (mil euros), no prazo de 2 (dois) meses e disso fazer prova nos autos.
2- A 18/2/2023, a DGRSP enviou para os autos um ofício com o seguinte teor:
“Na sequência da decisão que determinou a aplicação de pena acessória de proibição de contacto com a vítima de violência doméstica e considerando o exposto no art.º 152 nº 4 e 5 do C. Penal, solicitamos a V. Exa. Esclarecimento sobre se a mesma pressupõe a utilização de meios de vigilância eletrónica”
3- Sobre tal ofício pronunciou-se o MP nesse mesmo dia:
“Fls. 310:
Promovo que se dê conhecimento à DGRSP de que nos termos do art.º 152º, n.º 5 do Código Penal, a aplicação da pena acessória de proibição e contactos com a vítima de ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, pelo que não existe qualquer dúvida a respeito.”
4- De seguida, foi proferido o despacho judicial recorrido, datado de 19.12.23, com o seguinte teor:
Fls. 310:
Dê conhecimento à DGRSP de que nos termos do art.º 152º, n.º 5 do Código Penal, a aplicação da pena acessória de proibição e contactos com a vítima deve ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
5- Não consta da ata de julgamento de 31-10-2023 nem da ata de leitura da sentença de 10/11/2023 que o arguido se tenha pronunciado sobre a aplicação dos meios técnicos de controlo à distância.
IV- Do mérito do recurso:
A primeira questão que aqui se levanta é, pois, a de saber se a fiscalização da pena acessória por meios técnicos é um efeito automático da condenação em pena acessória de proibição de contactos, sem necessidade de uma expressa decisão judicial, que é a tese defendida pelo MP ou se, ao invés, tem de ser determinada por despacho judicial, como sustenta o arguido.
Estabelece o Artigo 152 n.º 4 e 5 do CP, com a epígrafe “Violência doméstica”, que:
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Esta redacção foi introduzida pela Lei n.º 19/2013 de 21/2, sendo que era a seguinte, a redação anterior deste normativo:
5- “A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Na exposição de motivos do projecto de lei 194/XII, apresentado pelo Bloco de Esquerda, do qual veio a resultar a referida alteração do artº 152º do Cód. Penal (com discussão e votação conjunta com a proposta de lei 19/2013 que visava alterar, entre o mais, outros artigos do Código Penal), refere-se que:
“Neste sentido, a presente iniciativa legislativa do Bloco de Esquerda visa reforçar a aplicação de pulseiras eletrónicas, quer como medida de coação, quer no contexto da pena acessória de proibição de contacto com a vítima.
E no debate parlamentar, no seguimento da anunciada intenção de reforçar a aplicação de pulseiras electrónicas, a Srª Deputada do Bloco de Esquerda, Cecília Honório, declarou (conforme consulta feita no site no Parlamento, in https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=93762):
Por isso, fazemos alterações pontuais quer ao Código Penal quer à Lei n.º 112, preservando a autonomia do juiz quando decide a pena acessória, no sentido de que a decisão da pena acessória de proibição de contacto do agressor com a vítima se faça acompanhar da obrigatoriedade da utilização deste meio de controlo à distância, vulgarmente conhecido por «pulseira electrónica»”.
Assim, numa primeira leitura, parece que a aplicação da pena acessória não é obrigatória, mas que, sempre que for aplicada, terá de ser acompanhada obrigatoriamente de fiscalização por meios técnicos à distância.
Acontece que a referida Lei n.º 19/2013 de 21/2 alterou também a redacção do nº 1 do artº 35º da Lei n.º 112/2009 de 16/9, que passou a ser a seguinte (depois da declaração de rectificação 15/2013 de 19/3):
“1 - O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
A anterior redacção do referido nº 1 do art.º 35º era a seguinte:
1 - O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, pode, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Também aqui, o “pode” foi substituído pelo “deve”, mas continuou a exigir-se que a “fiscalização se mostre imprescindível para a protecção da vítima …”.
Acresce que, como se nota no Ac. da Rel. de Guimarães de 6/2/17, Processo n.º 201/16.06GBBCL.G1, disponível em www.dgsi.pt, a proposta inicial previa a eliminação do art.º 36º da L. 112/2009 de 16/9, mas tal não sucedeu, tendo-lhe sido acrescentado o nº 7.
Lembra ainda este Acórdão que, não na intervenção verbal que fez na Assembleia da República, mas numas notas escritas que entregou aos Srs. Deputados aquando dessa intervenção, o Professor Germano Marques da Silva escreveu o seguinte (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=93762):
“1. PROJECTO DE LEI NO 194/M1/1ª (REFORÇA AS MEDIDAS DE PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A) Artigo 152º, nº 5 (pena acessória no crime de violência doméstica)
A alteração que no projecto se propõe consiste em substituir "pode" por "deve" na aplicação da pena acessória de afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima e a fiscalização do seu cumprimento por meios técnicos de controlo à distância.
A alteração significa essencialmente que a pena acessória é substituída por uma pena complementar ou efeito necessário da condenação uma vez que mão se dá margem ao tribunal para apreciar da necessidade da medida e dos seus termos. E uma opção de política criminal possível, mas que se afasta da orientação geral do Código em matéria de penas acessórias. Acresce que os casos de violência doméstica não são todos de igual gravidade a exigirem a mesma pena acessória.
Deve ainda ponderar-se que a pena de afastamento do local de trabalho da vítima pode ser muito gravosa por poder significar o desemprego do agente do crime. Acresce ainda que uma pena acessória não pode ter duração ilimitada não só por uma pena ilimitada ser proibida pela Constituição, mas também pelos encargos que representa para o erário público.
B) Artigo 35º da lei nº 112/2009 (vigilância electrónica)
A alteração proposta para o nº 1 do art.º 35º consiste também na substituição da palavra "pode" por "deve". A nosso ver não faz sentido a alteração. A palavra "pode" está usado em sentido forte e significa que a media de controlo à distância é admissível e a palavra "deve", agora proposta no projecto é usada em sentido fraco porque fica condicionada à apreciação da imprescindibilidade da medida por parte do Tribunal.
Não nos parece que se justifique a alteração por entendermos que nada acrescenta à lei vigente.
C) Revogação do artigo 36º da lei nº 112, de 16 de setembro
O consentimento para a utilização de meios técnicos de controlo à distância não respeita apenas ao arguido, mas também à própria vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima. Não é razoável impor medidas restritivas da liberdade à própria vítima ou a terceiros inocentes sem o seu consentimento. Também a necessidade de consentimento do arguido pressupõe que na falta de consentimento são aplicáveis medidas alternativas mais gravosas.
Parece-me de todo inaceitável a revogação deste artigo 36º porque a medida seria então inconstitucional por imposição de uma medida restritiva de liberdade à própria vítima ou a terceiros inocentes. No que respeita ao arguido poder-se-ia prescindir do seu consentimento, considerando que a imposição da medida constitui uma pena, mas a experiência da vigilância eletrónica mostra a ineficácia da medida quando não é aceite pelo arguido.
Se a medida de vigilância controlada for imposta sem consentimento é necessário prever a sanção para o seu incumprimento, sanção que há-de ser equivalente à que seria aplicável na falta de consentimento. Por isso que também relativamente ao arguido não pareça justificar-se a revogação do art.º 36º, embora neste caso não se suscitem questões de inconstitucionalidade.”
Esta apreciação, conclui o referido Acórdão, mereceu parcial concordância na comissão parlamentar da especialidade, surgindo então a redação final do atual n.º 7 do art.º 36º.
Assim, dizemos nós, esta substituição do “pode” pelo “deve”, no que diz respeito à fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, não terá outro efeito que não o de impor uma fundamentação mais exigente quando o Tribunal entenda não ser de aplicar tais meios técnicos de fiscalização, ao passo que no anterior regime era a decisão de utilização dos referidos meios técnicos que carecia de ser mais fundamentada.
A utilização dos meios técnicos de controlo à distância, sendo uma medida que se traduz numa intromissão na esfera privada daqueles que por ela são afectados, não é, por conseguinte, automática, não decorre obrigatoriamente da aplicação da pena acessória, estando dependente da sua imprescindibilidade em face das necessidades de protecção da vítima e, ainda, do consentimento da vítima.
O juiz tem, assim, de justificar a razão pela qual entende que é necessária para a proteção dos direitos da vítima, o que fará tendo presente que tal constitui uma acentuadíssima restrição para a liberdade de movimentos dos intervenientes, podendo em alguns casos prescindir do consentimento do condenado, mas sempre mediante decisão fundamentada, ponderando os interesses em conflito e os direitos fundamentais daqueles que são afectados por tal medida, em concreto o direito à reserva da vida privada previsto no artigo 26.º, da Constituição da República Portuguesa.
(este entendimento encontra, ao que se julga, unanimidade na jurisprudência, de que são exemplo os Acórdãos da RG de 06-02-2017, Processo: 201/16.06GBBCL.G1, de 22 – 01- 2018, processo 140/16.4GAVVD-A.G1 e de 2022-11-2, 5324/20.8T9BRG.G2; da RL de 07-12-2023, processo n.º 755/22.1PASNT.L1-9, Ac da RE de 20-02-2022, processo 1117/20.0GBLLE, da RP de 14-09-2022, processo 287/21.5GBVNG.P1 e da RC de 12-07-2023 Processo:246/22.0GASEI.C1 todos in www.dgsi.pt).
Aqui chegados, outra questão se coloca: não tendo a utilização da vigilância eletrónica sido determinada na sentença proferida no processo, pode ser posteriormente ordenada por despacho judicial?
Ora, como vimos, o juízo feito pelo julgador sobre a imprescindibilidade dos meios técnicos de controlo à distância - que constitui pressuposto necessário da sua aplicação - tem de ser fundamentado e tal fundamentação tem de se alicerçar na matéria de facto provada, ponderando, em concreto, em face de tais factos, a proteção da vítima de violência doméstica e os demais direitos em confronto.
Assim, se na sentença condenatória transitada em julgado, em face dos factos aí dados como provados, o Tribunal não entendeu ser imprescindível para a proteção da vítima a fiscalização do cumprimento da pena acessória por vigilância eletrónica, não o tendo determinado, mantendo-se inalterado o quadro factual, esta fiscalização não pode ser determinada posteriormente, pois tal redundaria numa intolerável violação do caso julgado.
Desta forma, e revertendo ao caso dos autos, temos de dar razão ao arguido.
Efetivamente, compulsada a sentença recorrida, constatamos que nela o arguido é condenado na pena acessória de proibição de contato com a ofendida com a seguinte fundamentação:
« No que concerne às penas acessórias, verificando-se que o arguido embora se encontra afastado da ofendida, mas por incitativa desta e que já após esse afastamento praticou alguns dos factos em causa e não demonstra qualquer juízo critico sobre os mesmos, entendo que o mesmo deve ser condenado na pena acessória de proibição de qualquer contacto com a ofendida pelo período de 2 anos e 6 meses.”
Nem na fundamentação, nem na decisão, se faz qualquer alusão à fiscalização do cumprimento da pena acessória por meios técnicos de controlo à distância.
Assim, o despacho recorrido não esclarece nenhuma dúvida de interpretação da sentença, mas antes, de forma inovadora, impõe tal fiscalização, prescindindo, para além do mais, de qualquer fundamentação, concretamente do juízo judicial sobre a imprescindibilidade de utilização daqueles meios técnicos para proteção dos direitos da vítima e fazendo tábua rasa da necessidade de recolha dos necessários e legais consentimentos ou de um despacho judicial que decida no sentido de não serem necessários, com base na absoluta necessidade daqueles meios para proteção da vítima (cfr. art.º 36º, nº7, da Lei 112/2009).
Assim, o despacho judicial recorrido não tem arrimo em nenhum preceito legal. O que o Tribunal a quo deveria ter respondido à DGRSP era, de facto, exatamente o contrário do que respondeu.
Face ao tudo o exposto, acorda-se na revogação do despacho recorrido.
III- DECISÃO:
Pelo exposto, as juízas da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, dando provimento ao recurso do arguido, acordam em revogar o despacho recorrido, que determinou a fiscalização da pena acessória por meios técnicos de controlo à distância.
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Sem custas.
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Lisboa,
Sara André dos Reis Marques
Sandra Oliveira Pinto
Maria José Machado
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)