Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4927/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
MÚTUO
CLÁUSULA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A acção de que depende a providência a que alude o artigo 15.º/1 do Decreto-lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro (apreensão de veículo e certificado de matrícula) é a acção de resolução do contrato de alienação para a qual não tem manifesta legitimidade o mutuante ainda que tenha conseguido o registo de reserva de propriedade do veículo vendido a seu favor.
II- Face ao disposto no artigo 409.n.º/1 do Código Civil é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa nos contratos de alienação; tal preceito obsta a que se estipule noutros contratos a aludida cláusula.
III- Não resulta do disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro que o acordo sobre reserva de propriedade, que deve constar dos contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações sob pena de inexigibilidade, seja acordo firmado em contrato que não seja o contrato de venda a prestações.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. S. […] SA intentou procedimento cautelar para apreensão de veículo e respectivos documentos ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro contra Manuel […] alegando que celebrou com o requerido contrato de financiamento para aquisição a crédito de veículo com reserva de propriedade a favor do mutuante registada na Conservatória do Registo Automóvel.

2. Face ao não pagamento de prestações, a requerente fixou prazo para cumprimento sob pena de conversão da mora em incumprimento definitivo e, consequentemente , pretende agora a restituição do veiculo nos termos do referido preceito legal considerado o risco sério de o requerido descaminhar ou ocultar o veículo.

3. O requerimento foi indeferido por se entender que a providência cautelar a que se refere o artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro pressupõe reserva de propriedade a favor do vendedor e não do mutuante visto que só o vendedor com reserva de propriedade pode propor a acção de que o procedimento cautelar depende, ou seja, a “acção de resolução do contrato de alienação”, como expressamente refere o artigo 18.º do referido DL 54/75.

4. Não se considera, na decisão recorrida, correcto o entendimento de se fazer uma interpretação actualista do Decreto-Lei nº 54/75 e, no que respeita ao disposto na alínea f) do nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro que prevê que o contrato de crédito tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o  pagamento em prestações, o que se tem em vista é a compra e venda a prestações.

5. O recorrente sustenta, porém, que, no caso em apreço, não se trata, como acontece noutros casos tratadas na jurisprudência, de uma cláusula de reserva de propriedade para o alienante, mas de cláusula de reserva de propriedade para o mutuante como, aliás, decorre do disposto na cláusula 9ª, alínea e) das condições gerais de financiamento para aquisição a crédito.

6. Defende, por isso, de igual modo, uma interpretação actualista do artigo 18.º do Decreto-Lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro no sentido de que a acção de resolução a propor na sequência do procedimento cautelar constante do artigo 15.º do mesmo diploma, não seja apenas do contrato de alienação, mas também do contrato de mútuo quando acessório do contrato de compra e venda, o que é o caso dos autos.

7. Defende-se que há, nestes casos, uma sub-rogação  do mutuante na posição jurídico do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade.

8. A própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no artigo 6.º,n.º3 do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro quando refere que o ” contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda...f) o acordo sobre a reserva de propriedade”.

Apreciando:

9. A questão a resolver neste recurso é a de saber se o mutuante com reserva de propriedade registada a seu favor pode utilizar contra o mutuário o procedimento cautelar previsto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro.

10. A letra do n.º 1 do artigo 15º (com a redacção dada pelo Decreto-lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro) não parece excluir tal entendimento.

11. Diz o preceito:

1- Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula.

12. No entanto, o artigo 5.º,n.º1 do DL 54/75 prescreve que estão sujeitos a registo a reserva de propriedade  estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis e o artigo 18.º,n.º1 do mesmo diploma prescreve que, dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, “ o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”.

13. Assim, a acção de resolução de que depende este concreto procedimento cautelar não é a acção de resolução do contrato de financiamento, mas a acção de resolução do contrato de compra e venda, como resulta da letra da lei.

14. O procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção de declarativa ou executiva (artigo 383.º.n.º1 do Código de Processo Civil).

15. Ora o presente procedimento, face à letra do artigo 18.º do DL 54/75 ( e também face ao disposto no artigo 5.º,n.º1 do mesmo diploma) deverá ser instaurado preliminarmente (“ dentro de quinze dias a contar da data da apreensão...dentro do mesmo prazo, o titular do registo deve propor acção de resolução do contrato de alienação) à acção declarativa e, como resulta do referido preceito, o que está em causa é a resolução do contrato de compra e venda, pois que a cláusula passível de registo é a cláusula estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis.

16. Ora o requerente não tem manifesta legitimidade para intentar acção de resolução de um contrato que não outorgou, não sendo, como reconhece, titular de registo de reserva de propriedade que haja sido estipulado em contrato de alienação de veículo automóvel.

17. Acompanhamos, assim, as considerações feitas a este propósito no Ac. da Relação  de Lisboa de 12-6-2003 (Abrantes Geraldes) consultável em www.dgsi.pt onde se refere:

“Admitindo que para efeitos do art. 15º referido, dentro das obrigações que podem despoletar a invocação dos efeitos da reserva de propriedade se abarcam as assumidas no contrato de mútuo conexo acordado com terceira entidade, não se consegue contornar o obstáculo formal resultante do art. 18º que fixa o nexo de instrumentalidade da providência não em relação à resolução do contrato de mútuo, mas sim do “contrato de alienação”.
É todo inviável tentar, a todo o custo, meter na “Rua da Betesga”, limitada às situações a que concretamente se dirige o Dec. Lei nº 54/75, o “Rossio”, formado pelo campo largo das práticas comerciais dos agentes económicos.
Discorda-se, assim, do decidido nesta Relação nos Acs. de 13-2-03, CJ, tomo I, pág. 103, e de 13-3-03, CJ, tomo II, pág. 74, que assimilaram ao “contrato de alienação” o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
Nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda “contrato de alienação”, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um “contrato de mútuo” que teve como mutuante outra entidade e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido.
Nem sequer vale às agravantes a invocação tardia da existência de uma pretensa sub-rogação da financiadora A nos direitos da B decorrentes do contrato de compra e venda. Para além de tal figura não resultar do clausulado do contrato de mútuo (e de não ter sido apresentado o contrato de compra e venda), continuaria a faltar o nexo de instrumentalidade relativamente ao exercício do direito potestativo de resolução do contrato de compra e venda”.

18. Salienta o recorrente, com razão, que o caso em apreço é diverso de outros que têm sido tratados em que foi estipulada cláusula de reserva de propriedade a favor do alienante, discutindo-se, dada a conexão entre os contratos de mútuo e de compra e venda (A. vende a B. recebendo directamente do mutuante M. o preço da coisa vendida, obrigando-se B a pagar ao mutuante M. a quantia mutuada estipulada), se o mutuante tem legitimidade, por si, para requerer a apreensão do veículo dado o interesse que tem na satisfação do seu crédito.

19. Já tomámos posição sobre a questão considerando que não tem legitimidade para requerer a presente providência a entidade financiadora que não é titular do registo de reserva de propriedade (Ac. da Relação de Lisboa de 23-11-2000,C.J., 5, pág. 99) suscitando-se divergências de entendimento ainda no que respeita à questão de saber se as entidades mutuante e vendedora podem propor acção de resolução. O Supremo Tribunal, embora não por unanimidade, considerou que nem isso seria admissível com o argumento de que a vendedora não pode propor a acção por não ser credora do preço visto este já estar há muito pago pela mutuante: Ac. do S.T.J. de 12-5-2005 (Araújo de Barros) C.J.,2, pág. 94. Assim, nesta linha de pensamento, já se vê, por argumento de maioria de razão, a absoluta inviabilidade da acção principal ser proposta apenas pelo mutuante, como aqui acontece.

20. Outra questão que se suscita é a de saber se é válida a cláusula de reserva de propriedade constituída a favor do mutuante.

21. Não o admite o artigo 409.º do Código Civil que limita a aponibilidade da cláusula aos contratos de alienação e, por conseguinte, não releva o argumento extraído do princípio da liberdade estipulação a que se refere o artigo  405.º/1 pois a liberdade de estipulação não é absoluta, há-de ceder se afrontar norma que condicione a estipulação de certa cláusula a determinados contratos.

22. A circunstância de o mutuante ter introduzido no contrato de financiamento uma cláusula que não lhe seria lícito apor poderá levar a considerar-se, dado o princípio da incindibilidade do negócio condicional, que  o negócio padece de nulidade ( ver MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 559).

23. A nossa lei não admite a cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante, mas tão somente em benefício do alienante (artigo 409.º/1 do Código Civil). Ou, por outras palavras, não parece admissível a constituição de uma reserva de propriedade a favor de terceiro.

24. Não será, portanto, admissível que uma instituição de crédito outorgue contrato de mútuo com reserva de propriedade a seu favor simultaneamente com a compra e venda do imóvel a favor do comprador de tal sorte que a propriedade ficaria no mutuante (instituição de crédito) e não no mutuário/comprador, como acontece sempre que se procede à compra e venda com mútuo com garantia real (hipoteca) a favor do mutuante.

25. A reserva de propriedade passaria então a  garantir o mutuante, não o vendedor; a nossa lei não tomou ainda uma tal opção que teria, como é fácil de ver, a maior das repercussões no plano do crédito, designadamente imobiliário. Admite-se que as entidades mutuantes ficassem, assim sendo, numa posição muito mais confortável do que actualmente, garantidas por hipoteca;  mas também é verdade que uma tal solução traria outros problemas, designadamente os que resultam de o comprador não aceder à propriedade com todos os efeitos daí decorrentes, sujeitando-se ao império do mutuante que consolidaria a propriedade em caso de incumprimento, resolvendo o contrato, podendo criar-se situações em que o comprador, reconhecida a invalidade da resolução, não a poderia invocar diante de terceiro (artigo 435.º/1 do Código Civil: “ a resolução...não prejudica os direitos adquiridos por terceiro) salvo se diligenciasse accionar o mutuante com registo prévio da acção ao registo do direito de terceiro (artigo 435.,n.º2 do Código Civil).

26. E nem estamos a considerar os efeitos decorrentes do entendimento que tem merecido algum acolhimento judicial de o titular do registo de reserva de propriedade conseguir penhorar o bem sobre o qual incide o registo e fazer prosseguir a execução sem cancelamento da reserva de propriedade, conseguindo, assim, situação substantiva que lhe proporciona as vantagens do credor hipotecário sem as correlativas desvantagens.

27. O recorrente sustenta finalmente, como se disse, a admissibilidade da referida cláusula face ao disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro onde se refere o seguinte:

3- O contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
.......
f) O acordo sobre a reserva de propriedade.

28. No entanto, a circunstância de a lei prescrever que a referida cláusula conste do contrato de crédito não significa que a cláusula se traduza em acordo sobre a reserva de propriedade a favor do mutuante; o referido acordo, precisamente porque o contrato tem por objecto um financiamento para aquisição de bens ou serviços em prestações, há-de respeitar ao contrato de alienação e a sua utilidade é a de o mutuante ver precludida a possibilidade de “ exigir ulteriormente a constituição dessas garantias (artigo 7.º/3” (FERNANDO DE GRAVATO MORAIS “ Do Regime Jurídico do Crédito ao Consumo”,Scientia Iuridica, Jul./Dez 2000, Tomo XLIX, pág. 394/395). Aliás , refere expressamente este autor, como se salientou na decisão recorrida, que “quanto às menções remanescentes a indicação das garantias exigidas, nos contratos de crédito em geral, e do acordo sobre a reserva de propriedade, no caso de venda a prestações, a sua falta não prejudica a validade e eficácia do contrato de crédito”.

29. Finalmente, cumpre salientar que não foi alegado e não resulta do contrato que o mutuante tenha sido sub-rogado pelo vendedor, pois, como se referiu, o que houve foi uma constituição de reserva de propriedade a favor do mutuante.

Concluindo:

I- A acção de que depende a providência a que alude o artigo 15.º/1 do Decreto-lei nº 54/75, de 24 de Fevereiro (apreensão de veículo e certificado de matrícula) é a acção de resolução do contrato de alienação para a qual não tem manifesta legitimidade o mutuante ainda que tenha conseguido o registo de reserva de propriedade do veículo vendido a seu favor.
II- Face ao disposto no artigo 409.n.º/1 do Código Civil é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa nos contratos de alienação;  tal preceito obsta a que se estipule noutros contratos a aludida cláusula.
III- Não resulta do disposto no artigo 6.º/3, alínea f) do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro que o acordo sobre reserva de propriedade, que deve constar dos contratos de crédito que tenham por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações sob pena de inexigibilidade, seja acordo firmado em contrato que não seja o contrato de venda a prestações.

Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente

Lisboa,22 de Junho de 2006

(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)