Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3208/19.1T8OER.L1-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO
RESERVA DE PROPRIEDADE
CLÁUSULA
VALIDADE
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Do disposto no art.º 409, do CC, decorre que o legislador reportou a aposição da clausula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, no pressuposto do domínio do bem com a titularidade da respetiva propriedade. 
2. Assim, carece de validade a cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor do financiador/mutuante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
1. I veio interpor a presente ação com processo comum contra BANCO , S.A., pedindo:
- seja declarada nula a reserva de propriedade registada a favor do Réu, por forma a que a Autora possa continuar o processo executivo, onde se suscitou a presente questão, registando a penhora do veículo em causa a seu favor.
2. Alega para tanto que o ex-cônjuge celebrou com um stand de automóveis um contrato de compra e venda do automóvel identificado, recorrendo ao financiamento, em contrato de mútuo celebrado com o Réu, resultando dessa situação a reserva de propriedade para este último.
No âmbito de execução de ação de alimentos que instaurou, foi determinado o registo provisório da penhora a seu favor, na sequência da qual suscitou a nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do Réu, sendo remetida para os meios comuns.
3. Citado, o Réu não contestou, tendo sido julgados confessados os factos articulados pela Autora.
4. O Réu apresentou alegações, pugnando pelo reconhecimento da validade da reserva de propriedade constituída a seu favor.
5. Foi proferido despacho que julgou verificada a exceção da ilegitimidade passiva, absolvendo o Réu da instância.
6. A Autora requereu a intervenção principal provocada de H, enquanto interessado.
7. Admitida, foi ordenada a sua citação tendo contestado, defendendo a admissibilidade da constituição da reserva de propriedade a favor do Réu mutuante.
8. Realizada audiência prévia, foi proferida decisão que julgou a ação procedente, declarando a nulidade da reserva de propriedade registada a favor do Réu Banco.
9. Inconformado veio o Réu Banco, interpor recurso, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões:
A. O Réu é uma sociedade comercial, cuja sua principal atividade se traduz no financiamento automóvel.
B. O Réu celebrou com H, ex-cônjuge da Autora e 2.º Réu, um contrato de financiamento para aquisição de um automóvel.
C. Do qual resultou a reserva de propriedade, conforme previsto nas condições particulares do referido contrato.
D. Refere o artigo 409.º do Código Civil que «Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.»
E. A cláusula de reserva de propriedade é entendida como um meio de acautelar e proteger aquele que coloca o bem à disposição de outrem, mediante a contrapartida da entrega do preço.
F. Refere o Acórdão do STJ, de 30/09/2014 - Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1 que a expressão contida na norma "qualquer outro evento", é suscetível de incluir o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, afinal, o credor do preço da venda.
G. Relembra ainda que a reserva de propriedade surgiu, historicamente, não só, mas também para garantir o pagamento do preço ao vendedor.
H. Situação que atualmente não acontece, visto que nenhum stand de automóveis ou concessionária assume o risco de vender um automóvel a prestações ficando do lado deles o risco do crédito.
I. Ainda o Acórdão do STJ de 30/09/2014 - Proc. 844/09.8TVLSB.L1.S1 reforça tal ideia dizendo que «Hoje, o financiamento de aquisições a crédito é geralmente assegurado por uma instituição financeira especializada. (...) E, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, o intérprete tem de tomar em consideração as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, estando a interpretação atualista legitimada pelo Código Civil e pela teoria do direito, conforme prevê o artigo 9.° do CC.
(...) Com efeito, a reserva da propriedade, sendo tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada das modalidades de contratação entretanto surgidas, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo cujo objeto e finalidade é financiar a aquisição de um determinado bem.»
J. A cláusula de reserva de propriedade foi constituída a favor do vendedor, tendo a mesma sido transmitida para o 1.º Réu, conforme consta do contrato na cláusula 10.5. das cláusulas gerais do mesmo.
K. Reserva de propriedade essa com vista a garantir o cumprimento das prestações a que o 2.º Réu se vinculou.
L. Refere Paulo Ramos de Faria que «a sub-rogação é uma modalidade de transmissão do crédito baseada no cumprimento da obrigação ou em ato equivalente, por força da qual o pagamento não tem por efeito a extinção da obrigação, sendo antes translativo do crédito.
M. Relativamente a esta sub-rogação e a validade da mesma, pronuncia-se o Acórdão do STJ, de 30/09/2014, dando a conhecer os seus argumentos:
1) A natureza da propriedade reservada como um direito que assume uma função de garantia do crédito.
2) Uma interpretação atualista que, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, atribua à norma um sentido exigido pelas necessidades atuais de uma economia mais célere na aquisição de bens de consumo, e tenha como consequência a extensão da previsão do artigo 409.°, que se refere a "contratos de alienação", à compra e venda financiada por um terceiro.
3) O princípio da liberdade contratual, pilar de todo o direito privado, permite que as partes possam, dentro dos limites da lei, celebrar um contrato de cessão da reserva de propriedade ao terceiro financiador, da mesma forma que permite a celebração de contratos inominados, atípicos ou mistos, que surgem habitualmente por iniciativa dos agentes económicos, só vindo a ser regulamentados na lei posteriormente.
4) A natureza dispositiva, e não imperativa, das normas dos artigos 408.º e 409.º do Código Civil.
N. Assim, é de entender que face às alterações socioeconómicas que ocorreram desde 1966, publicação do Código Civil e data desde a qual o referido artigo 409.° não sofreu alterações, implica que se recorra à aplicação do artigo 9.° do mesmo diploma legal para uma interpretação à luz do que hoje ocorre, aplicando assim a denominada a interpretação atualista.
O. Neste sentido, também as conservatórias aceitam o presente entendimento, motivo pelo qual fazem também o respetivo registo de propriedade a favor das entidades financiadoras.
P. É importante aclarar a diferença entre a constituição de cláusula a favor do mutuante e a transmissão dessa mesma cláusula para o mutuante.
Q. De facto grandes diferenças existem entre dar direitos e garantias a um terceiro que não é parte no contrato de compra e venda e que não tem nem nunca vai ter o direito à propriedade do bem que financiou, situação bem diferente é esses direitos e garantias sejam cedidos a quem financia por meio de uma sub-rogação, para que o mesmo encontre proteção na sua posição de entidade financiadora.
R. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/03/2013 - Proc. 2368/16.8T8VNG.P1 refere que o mutuante que cumpre a obrigação, pode ser colocado na posição do alienante.
S. Também a Ilustre Dra. Isabel Menéres de Campos refere que o «financiador, quando entrega o preço ao comprador, sub-roga-se nos direitos do vendedor, transmitindo-se os créditos e os seus acessórios, incluindo a cláusula de reserva de propriedade constituída em favor deste».
T. Neste sentido, é do entendimento do Réu ser válida a transmissão da cláusula de reserva de propriedade para o mesmo,
U. Não podendo a reserva de propriedade transmitida ao 1.º Réu ser declarada nula, sob pena de colocar em risco a garantia do mutuante sobre o mutuário.
10. Cumpre apreciar e decidir.
*
II –  Enquadramento facto - jurídico
1. da factualidade
Na sentença sob recurso, foram consignados como provados, os seguintes factos:
1. O Banco, S.A. (1.º Réu) é uma instituição de crédito cujo objeto social se traduz no exercício da atividade bancária.
2. H (2.º Réu), ex-cônjuge da Autora, adquiriu em 2012, a um stand de automóveis, o automóvel de marca Peugeot, modelo 208, com a matrícula …..
3. Para adquirir o veículo o 2.º Réu recorreu ao 1.º Réu para que este lhe emprestasse uma determinada quantia monetária, o que foi aceite, tendo ambos acordado que no âmbito da sua atividade comercial o 1.º Réu entregava €10.428,72, ao 2.º Réu, ficando este obrigado a devolver essa quantia em 60 prestações mensais de €214,95 cada.
4. Entre os Réus ficou acordado que o 1.º Réu ficava com a reserva de propriedade sobre o veículo adquirido pelo 2.º Réu, para garantir o pagamento total das prestações do empréstimo referido em 3 dos factos provados.
5. A Autora intentou no Juízo de Família e Menores do… uma ação de alimentos contra o 2.º Réu que correu termos sob o n.º3922/17.6T8BRR e, tendo obtido sentença condenatória contra aquele, executou a mesma nos próprios autos.
6. No processo executivo (Processo n.º 3922/17) foi determinada a penhora sobre o veículo identificado em 2 dos factos provados, que foi registada provisoriamente a favor da Autora em 21/03/2019.
7. Nessa sequência, a Autora invocou nessa ação executiva a nulidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do 1.º Réu.
8. Por despacho de 29/04/2019, proferido nesses autos do Juízo de Família e Menores do… as partes foram remetidas para os meios comuns para apreciação da questão da validade da cláusula.
2. do direito
3. Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 635.º, 608.º e 663.º, do CPC, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 5.º, n.º 3, do mesmo diploma legal.
A questão a dilucidar prende-se, tão só, em aferir da (in)validade da cláusula de reserva de propriedade referenciada nos autos.
Como se sabe, trata-se de uma questão que não tem merecido unanimidade de entendimento, numa divergência vinda de há muito, importando, em conformidade, lançar um breve olhar pela argumentação das posições assumidas e vertidas nos presentes autos, na necessária procura da solução que se configura, não só face ao factualismo apurado, mas com aquela que parece ser a legalmente considerada, numa hermenêutica de acordo com os ditames legais e a realidade social a que os mesmos se aplicam, inculcando assim a imposição do aplicador rever o seu posicionamento, nomeadamente quando exista um largo espaço de tempo entre a formulação de juízos interpretativos[1], sempre com o respeito devido a entendimentos diferentes, e respetiva fundamentação.    
Vejamos.
Acompanhando a decisão sob recurso, tendo em conta que se mostra apurado, e assim desde logo delineado um contrato de compra e venda, com efeitos jurídicos constantes do art.º 879, do CC[2], ressaltando o real, a transferência de propriedade, sublinhado no art.º 408, permite-se o seu deferimento no tempo, sujeito a um evento futuro e incerto, a saber, o pagamento do preço, com a aposição de uma cláusula de reserva de propriedade, art.º 409.
Não entrando aqui na discussão quanto à natureza suspensiva ou resolutiva da cláusula de reserva de propriedade[3], salienta-se, a existência de situações, como a sob análise, em que tal cláusula, como garantia de bom cumprimento do contrato, surge associada a um contrato mútuo, enquanto financiamento da aquisição, celebrado entre a instituição bancária, não alienante, e o comprador.
Em tal âmbito, questiona-se, se o financiador que celebrou um contrato com o comprador do veículo, contrato esse que não tinha como objeto tal aquisição, nunca tendo estado na posse do bem vendido, pode reservar para si a respetiva propriedade, até ao cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo que efetivamente celebrou.
A resposta decorre da interpretação do já aludido art.º 409, que sob a epígrafe, reserva de propriedade, consigna “1- Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. 2 – Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a clausula constante do registo é oponível a terceiros”.
A saber está, assim, se tendo o legislador reportado a aposição da clausula de reserva de propriedade aos contratos de alienação, dizemos nós no pressuposto do domínio do bem com a titularidade da respetiva propriedade, permite ao intérprete entender que poderá ser colocada em contratos diversos, caso do mútuo.
Não se desconhece o entendimento que admite a inserção e validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, assente no princípio da liberdade contratual, com apelo a uma interpretação atualista do mencionado art.º 409, abrangendo assim o contrato de mútuo, em termos de união de contratos, bem como a aplicação do instituto de sub-rogação, no que concerne aos direitos do alienante a favor do financiador ou cessão da posição contratual a favor deste último, como defende o Recorrente e melhor se verá à frente, contra a posição “tradicionalista” que aqui se propugna[4].
Com efeito, do dispositivo legal resulta de forma expressa que a garantia do bom cumprimento, configura-se como uma autêntica retenção do direito de propriedade, destinada a assegurar o vendedor contra os efeitos da aplicação da regra geral estabelecida no art.º 408, n.º1, afastada ficando, pela natureza, o contrato mútuo, conforme o art.º 1142, até porque sendo a propriedade da coisa o pressuposto do estabelecimento de tal garantia, o comprador só podia limitar a sua propriedade plena, dando ao mutuante essa garantia de reserva de propriedade, depois de adquirir e porque adquiriu a propriedade plena da coisa.
E não se afigura que se possa convocar o princípio da liberdade contratual, conforme o disposto 405, n.º1, pois apenas “ Dentro dos limites da lei”, as partes dispõem da faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contatos, celebrar contratos diferentes dos legalmente previstos ou incluir neles as cláusulas que lhe aprouverem, e tais limites mostram-se, como se aludiu, balizados aos contratos de alienação.
Por outro lado, pretendendo-se proteger os interesses do financiador/mutuante, na medida que estaria desembolsado do montante mutuado destinado à aquisição do bem, pode-se dizer que existem outros mecanismos legais para tanto, a que o mesmo possa recorrer, no atendimento até de constituir, em geral, uma entidade organizada dispondo de recursos, e saber, muito mais amplos que o comprador consumidor, quer em termos de tipologia do negócio a efetuar, quer nas possíveis garantias pessoais ou reais que entenda exigir.
O Recorrente discorda, pugnando pela validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, conforme desenha a situação nos autos, elencando um conjunto de argumentos.
Desde logo aponta para o elemento literal do art.º 409, n.º1, no que concerne a “qualquer outro evento”, incluindo em tal âmbito o pagamento das prestações de um contrato de mútuo ao financiador, enquanto credor do preço da venda, na medida em que a reserva de propriedade surgiu para garantir o pagamento do preço ao vendedor, bem como a realidade atual de no negócio automóvel, porquanto nenhum concessionário assume o risco de vender um carro a prestações ficando com o risco do crédito.
Ora, face ao já aludido surge-nos inviável tal entendimento, pela falta de um pressuposto prévio, a existência de um contrato de alienação, caso em que pode haver reserva de propriedade.
Diversamente seria, se conforme pretende o Recorrente, tomando em linha de conta as circunstâncias do tempo em que a lei é aplicada, e as regras de boa interpretação nos termos do art.º 9, fosse efetuada uma interpretação atualista do art.º 409, respeitando a vontade do legislador e a finalidade da lei, face às exigências atuais da economia, fazendo a extensão da previsão que se refere a contratos de alienação, à compra e venda financiada por terceiro.
Assim, conforme resulta do mencionado art.º 9, na atividade hermenêutica a desenvolver, deverá ser necessariamente atendido o elemento literal da lei, no sentido dos respetivos termos e devida correlação, excluindo desse modo a interpretação que não tenha na letra da norma um mínimo de correspondência, não podendo, contudo, ser esquecidos os elementos lógicos, isto é, o sistemático, o histórico e o teleológico, reportados essencialmente à unidade do sistema jurídico e à justificação social da lei.
Com efeito, vertem-se neste último preceito legal os princípios gerais sobre o método de interpretação das leis, visando o legislador, desse modo, conciliar, o interesse da retidão e do progresso da ordem jurídica, mediante a presunção que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, assim como a certeza do direito, com a decorrente segurança do comércio jurídico, assentes na presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados[5].
Presentes tais princípios orientadores, não se enjeita que se aquando da início da vigência do Código Civil, sem prejuízo das posteriores reformas e alterações pontuais, a realidade social de obtenção de bens de consumo com recurso ao crédito bancário não fosse algo muito difundido e comummente realizado, antes se verificando como no caso do comércio automóvel a venda a prestações, com o correspondente e compreensível  estabelecimento de reserva de propriedade a favor do alienante, é certo que tal fenómeno foi crescendo, de forma exponencial, num crescente consumismo, a que não foi estranho o fácil acesso ao crédito.
Entende-se assim, o surgimento do DL 359/91, de 23.09, estabelecendo regras relativas ao crédito ao consumo, face ao desenvolvimento do fenómeno, a que correspondia, um crescimento notório da oferta e a adoção de novas formas de crédito, transpondo para ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 87/102/CEE, de 22.12.1986 e 90/88/CEE, de 22.02,1990, mostrando-se necessário instituir regras mínimas de funcionamento, de modo a assegurar o cumprimento do objetivo constitucional e legalmente fixado da proteção dos direitos dos consumidores, definindo-se os requisitos do contrato de crédito, constituindo um conjunto de garantias adicionais para os mesmos[6].
No art.º 6, desse diploma, nos requisitos do contrato de crédito, consignava-se no n.º 3, que o tendo por objeto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante o pagamento em prestações devia indicar, para além do mais, o acordo sobre a reserva de propriedade, alínea f), sob pena de inexigibilidade, art.º 7, n.º 3, mais se prevendo um regime específico para a venda de bens por terceiro, no art.º 12, no pressuposto de relações de exclusividade entre o credor mutuante e o vendedor, e a respetiva colaboração na preparação ou conclusão do contrato de crédito. 
Poder-se-ia então, compreender que existiria um caminho em curso, autorizando a final a pretendia interpretação atualista, do disposto no art.º 409, que permanecia inalterado.
Acontece que o DL 133/2009, de 2.06[7], veio expressamente revogar o DL 359/91, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/48/CE, do Parlamento e do Conselho, de 23.04, relativa a crédito dos consumidores, considerando uma evolução profunda – social, política e económica – no espaço europeu, com a transformação do mercado, com consumidores mais informados e exigentes, novos atores e agentes intermediários, novos métodos e novas ferramentas, surgindo assim a necessidade de uma nova legislação comunitária, que refletisse a nível jurídico, a evolução do mercado, destacando-se, para além do mais, a obrigatoriedade, por parte do credor, de avaliar a solvabilidade do consumidor em momento prévio à celebração do contrato[8].
Percorrendo o diploma, com as respetivas alterações decorrente do DL n.º72-A/2010, de 17.06, DL 42-A/2013, de 28/03, DL 74-A/2017, de 23.06, e Lei 57/2020, de 28/08, não se descortina qualquer referência ao estabelecimento de reserva de propriedade a favor do mutuante, pese embora o minucioso e abrangente enunciado de informações e requisitos do contrato de crédito, sendo certo que também do mesmo não resulta uma assimilação com o contrato de alienação, mas tão só uma unidade económica, art.º 4.º, j), sem prejuízo da repercussão de eventuais vicissitudes ocorridas relativamente a cada um desses contratos que possam afetar essa unidade, art.º 18, sendo certo que o disposto no art.º 409, continua inalterado.
Daí, que no atendimento dos apontados elementos interpretativos, e sobretudo tendo presente a necessária harmonização da ordem jurídica, não se atenda a invocada interpretação atualista do art.º 409, maxime, com as consequências acima aludidas em termos de validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador.
Em mera nota, quanto à aceitação para efeitos registrais junto das Conservatórias, não suscita dúvidas que o registo não tem natureza constitutiva, mas essencialmente declarativa[9], sem prejuízo de possíveis presunções, sempre passíveis de ser ilididas nos termos do art.º 350, n.º 2.
Numa distinção entre a constituição da cláusula a favor do mutuante e a transmissão dessa cláusula para este último, pugna ainda o Recorrente pela cedência por meio de uma sub-rogação, com apelo ao disposto no art.º 591, “ O devedor que cumpra a obrigação com dinheiro ou outra coisa fungível emprestada por terceiro pode sub-rogar este nos direitos do credor, n.º1. A sub-rogação não necessita de consentimento do credor, mas só se verifica quando haja declaração expressa no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor, n.º2.”.
Reporta-se ao que consta do contrato de mútuo celebrado, cuja cópia se mostra junta aos autos, e não foi impugnada, no que no mesmo se consigna em termos de garantias, na cláusula 10.ª, n.º 5, no sentido de que estando prevista nas condições particulares a reserva de propriedade, o cliente, o consumidor, declara expressamente que a quantia mutuada se destina ao cumprimento da obrigação de pagar o preço do bem identificado nas cláusulas particulares ao fornecedor, e que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do fornecedor, transmitindo-se para este todas as garantias e acessórios do fornecedor, designadamente a reserva de propriedade estipulada sobre o bem alienado.
Ora, e brevemente,  o reconhecimento e aceitação unilateral, por parte do mutuário não permite sem mais concluir pela sub-rogação expressa da vendedora do bem a favor do Recorrente, nem até que tenha sido constituída a reserva de propriedade a favor da vendedora na qual se possa apoiar agora a reserva de propriedade invocada pelo mutuante, sendo que não resulta dos autos que o mesmo tenha intervindo no contrato de alienação.
Mas, sobretudo, pela inviabilidade de sub-rogação, pois a cláusula de reserva de propriedade, sendo própria de um instituto específico – a propriedade e a sua transmissão, não pode ela própria ser objeto de transmissão para garantir um crédito que não respeita à transferência da propriedade, tendo presente que o alienante ao receber o preço da compra deixa de gozar do direito conferido pelo art.º 409, não podendo transmitir ao mutuante a reserva de um direito de propriedade que já não detém, por ter sido já transmitido para o comprador/mutuário.
Em conformidade, na sequência do aludido, não se vislumbra a possibilidade legal de transmitir a reserva de propriedade do alienante para um terceiro, no caso o Recorrente, por via de sub-rogação, pois se reporta a transmissão de créditos e de dívidas a que são alheios direitos ou os efeitos de natureza real.
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Improcedem, assim, e na totalidade, as conclusões formuladas pelo Recorrente.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
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Lisboa,  9 de março de  2021
Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo
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[1] A agora aqui relatora, nesse esforço de revisitar e pensar a questão e soluções encontradas, após dez anos sem se ter pronunciado sobre as mesmas, alterou o seu posicionamento, conforme o entendimento aqui explanado.
[2] Diploma a que se fará referência, se nada mais for dito.
[3] Também controversa, como se dá igualmente notícia na decisão sob recurso.
[4] São múltiplas as referências jurisprudenciais e doutrinárias neste âmbito, defendendo umas ou outra. Apenas como mera nota ilustrativa, referencia-se, a favor, Acórdão do STJ de 16.09.2014, com voto de vencido, Acórdão da RL de 26.01.2009, de 21.03.2019, de 9.01.2020, com voto de vencido, ampla nota jurisprudencial,  Acórdão da RP de 18.12.2013, com voto de vencido, todos acessíveis em www.dgsi.pt.; Maria Isabel Menéres Campos, “A reserva de propriedade: do vendedor ao financiador”;  contra, Acórdão do STJ de 31.03.2011, de 12.07.2011, Acórdão RP de 15.01.2007, com ampla nota jurisprudencial, de 8.03.2016, de 8.10.2018, de 14.05.2020, Acórdão RL, de 31.03.2009, de 15.05.2012, com voto de vencido, extensa nota jurisprudencial, de 23.04.2013, de 28.12.2013, extensa nota jurisprudencial e doutrinária, de 19.11.2019, amplíssimas referências jurisprudenciais e doutrinárias,  Acórdão da RC de 14.02.2012, amplas referências jurisprudenciais e doutrinárias e de 17.12.2014, todos acessíveis, in www.dgsi.pt.; Gravato de Morais, in Cadernos de Direito Privado, n.º 6, 2004 e Contratos de Crédito ao Consumo, 2007; Paulo Ramos de Faria, “A reserva de propriedade constituída a favor de terceiro financiador”, Revista Julgar, n.º 16, 2012; Teresa Maria Borges Silva Pereira, “A cláusula de reserva de propriedade no contrato de mútuo”, Universidade Católica, Faculdade de Direito de Lisboa, 2.04.2012; Ana Rita Sequeira Francisco, “A (in)admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador”, Universidade Católica Porto, Dissertação de Mestrado em Direito Privado, Junho de 2015; Micaela Alexandra Santos Miranda Batista, “A validade da cláusula de reserva de propriedade a favor do mutuante”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Janeiro de 2016; João Carlos Gonçalves Godinho, “Da admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor de terceiro financiador”, Universidade Católica, Porto, dissertação de mestrado, em direito privado, maio de 2019, dissertações acessíveis por consulta informática.
[5] Cfr. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, fls. 38 e seguintes.
[6] Preâmbulo do DL 359/91, de 23.09.
[7] Estabelecendo o seu art.º 36, a avaliação da sua execução, no primeiro ano e bianualmente, nos anos subsequentes, pelo Banco de Portugal.
[8] Preâmbulo do DL 133/2009, 02.06.
[9] Na fórmula sintética, o registo não dá nem tira direitos, cfr. Oliveira Ascensão, in Direitos Reais, pag. 359.