Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
156/08.4TACSC.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CAUSA JUSTIFICATIVA
DECISÃO INSTRUTÓRIA
INDÍCIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-O crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social (artº 107º, nº 1, do RGIT) constitui um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida.
II-A “não entrega da prestação” é que constitui elemento objectivo do tipo e não a “apropriação”- certo é que a não entrega das contribuições pode consubstanciar-se numa operação meramente contabilística, não correspondente a liquidez existente, sendo por isso totalmente irrelevante que não tenha ocorrido uma verdadeira retenção monetária daquilo que corresponde ao registo contabilístico.
III-A obrigação legal de entregar as contribuições à segurança social, sendo um interesse de natureza pública, sobrepõe-se ao dever funcional de manter a empresa a funcionar, de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores, não constituindo a impossibilidade de cumprimento da prestação tributária causa de justificação ou de exclusão da culpa.
IV-O juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto da decisão instrutória, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase de julgamento.
(CG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

1.Nos presentes autos com o NUIPC 156/08.4TACSC, do 3º Juízo Criminal, do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, após abertura da Instrução a requerimento dos arguidos “I…., S.A.” e R…., foi proferida, aos 3 de Julho de 2012, decisão instrutória de não pronúncia dos mesmos pela prática, em co-autoria, do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1 e 107º, nº 1, do RGIT, por que se mostram acusados pelo Ministério Público.

2. O Ministério Público não se conformou com esse despacho e dele interpôs recurso, impetrando que seja substituído por outro que pronuncie os arguidos nos exactos termos que constam da acusação que oportunamente deduziu.

2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

a) Nos presentes autos, findo o inquérito, foi proferido despacho de acusação no qual se imputava aos arguidos “I…, L.da” e R… a prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelo disposto no artigo 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, sendo a imputação à sociedade sustentada pela disposição constante do artigo 7.º, nº 1 do mesmo diploma legal.
b) Requerida a abertura da fase instrutória, por parte dos arguidos foram efectuadas as diligências requeridas e realizado debate instrutório, tendo sido, em 3 de Julho de 2012, proferido despacho de não pronúncia no qual, após análise das questões levantadas pelo arguido no que respeita à prescrição do ilícito, se afirma inexistirem elementos da prática do ilícito e, como tal, se determina o oportuno arquivamento dos autos.
c) É deste despacho, que não pronunciou os arguidos pelo crime imputado em sede de despacho de acusação que ora se recorre, uma vez que o mesmo se mostra violador do constante nos artigos 283.º do Código de Processo Penal, 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e 35.º do Código Penal.
d) Cumpre referir que o ilícito em causa – crime de abuso de confiança contra a Segurança Social -, em contraposição com o seu homónimo simples – crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º do Código Penal –e tendo em consideração o elemento histórico que levou à consagração do texto actual da norma, não impõe a verificação da “apropriação” dos valores, bastando-se o mesmo com a retenção e a não entrega.
e) Ora, de facto, os arguidos retiveram, dos salários auferidos pelos trabalhadores os valores respeitantes às cotizações que os mesmos deveriam entregar à Segurança Social, não tendo efectuado entrega desses valores, como a tal se encontrava obrigado.
f) A retenção é feita do salário do trabalhador – contribuição que deve ser prestada pelo mesmo e que será aliada à própria contribuição que incumbe ao empregador – e visa precisamente permitir-lhe, como a qualquer trabalhador, garantir a expectativa razoável de vir a beneficiar de prestação de protecção de desemprego ou pensão de reforma.
g) Acrescente-se que não deve ser aqui aplicada a causa de exclusão da culpa do estado de necessidade desculpante, uma vez que não se verificam os pressupostos identificados no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal, pelo que, não poderia concluir-se no sentido da sua verificação.
h) Como também não têm aplicação qualquer outra das causas de exclusão previstas – direito de necessidade e conflito de deveres, previstas nos artigos 34.º e 36.º do Código Penal –, em face dos interesses em causa, como tem vindo a ser defendido maioritariamente pela jurisprudência e pela doutrina.
i) O despacho recorrido, o qual deve ser revogado e substituído por outro que pronuncie os arguidos pela prática do ilícito identificado na acusação, nos termos na mesma enunciados, violou o disposto nos artigos 283.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido, só assim se fazendo a esperada e costumada JUSTIÇA!

3. Os arguidos não apresentaram resposta à motivação de recurso.

4. Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, louvando-se no teor da motivação deste.


5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.


6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


Cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

- Se existem indícios suficientes da prática pelos arguidos dos factos imputados na acusação pública.

- A existirem, se integram eles a prática pelos arguidos, em co-autoria, do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1 e 107º, nº 1, do RGIT.

2. A Decisão Recorrida

2.1. A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):
Na sequência da participação que deu origem aos presentes autos, enviada pelos Serviços da Segurança Social e depois de realizado e findo o inquérito, a Digna Magistrada do M°P° deduziu acusação contra os arguidos "I…, S.A." e R…, pelos factos descritos a fls. 254 a 278, imputando-lhes a autoria material de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 7.°, n.° 1 e 107.°, n.° 1 do RGIT, em conjugação com o constante no art. 30.°, n.° 2 do C. Penal.
Inconformados com a acusação, os arguidos requereram a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos expressos a fls. 298 e segs., que aqui se reproduzem.
Durante a instrução e como diligências de prova, foram inquiridas as testemunhas P… e V…. (fls. 335) e foram requeridas ao IGFSS e juntas aos autos as informações que constam de fls. 348 a 355.
Realizou-se o debate instrutório. Cumpre proferir decisão instrutória.
O Tribunal é o competente.
O M°P° tem legitimidade para exercer a acção penal e nada obsta a que os arguidos sejam demandados penalmente.
No seu requerimento de abertura de instrução, vieram os arguidos invocar a prescrição, para além dos factos referidos no despacho de arquivamento de fls. 250 a 252 (Janeiro de 2000 e Março de 2000 a Março de 2002), relativamente aos factos referentes a Março de 2003 a Dezembro de 2003.
Não assiste, contudo razão aos arguidos, uma vez que os factos pelos quais foi deduzida acusação respeitam ao período ininterrupto de Março de 2003 a Julho de 2004, sendo-lhes, por isso, imputada a autoria material de um crime na forma continuada. Assim, a data a ter em conta para efeitos prescricionais é a de Julho de 2004 (cuja entrega das retenções à Segurança Social deveria ocorrer até 15 de Agosto do mesmo ano, havendo, ainda, a considerar os 90 dias subsequentes a esse prazo, a partir dos quais a conduta dos arguidos é susceptível de integrar a prática de ilícito criminal).
De resto, não ocorreu, ainda a prescrição da totalidade dos factos, atendendo à interrupção operada com a constituição de arguidos e com a notificação da acusação, não se tendo completado o prazo previsto no n.° 3 do art. 121.° do C. Penal, por força do período em que foi determinada a suspensão provisória do processo, durante o qual não corre a prescrição, conforme decorre do disposto no art. 282.°, n.° 2 do CPP.
Pelo exposto, indefere-se a requerida declaração da prescrição.
Não existem outras excepções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Visando a instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, importa apreciar se, face à matéria de facto indiciada, há ou não possibilidade razoável de vir a ser aplicada aos arguidos, em sede de julgamento, uma pena ou medida de segurança (arts. 308°, n.° 1, 286°, n.° 1, 283°, n.° 2, todos do CPP).
Encontram-se os arguidos acusados da autoria material de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, na forma continuada
Nos termos da acusação deduzida e em breve síntese, o arguido R..., na qualidade de sócio e gerente da arguida pessoa colectiva, durante o período de Março de 2003 a Julho de 2004, na sequência de desígnio por si formulado, não entregou as contribuições descontadas aos salários dos trabalhadores que mantinha ao seu serviço e que deveriam ser entregues à Segurança Social, apesar de tais quantias terem sido deduzidas dos vencimentos pagos pela sociedade aos trabalhadores da mesma, passando a dispor desses montantes, que fez seus, utilizando-os em proveito próprio e da sociedade arguida que geria, não obstante saber que tais quantias pertenciam à Segurança Social.
Com a presente instrução, insurgem-se os arguidos contra tal acusação, defendendo, em suma, que por força do cumprimento de obrigações declarativas, sem qualquer correspondência com a realidade dos factos, a sociedade arguida declarou haver retido verbas sem que tivesse as mesmas na sua posse para reter.
Aliás, acrescenta, ao invés da situação descrita na acusação, o arguido tudo fez para não falhar ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores, tendo deixado de receber os seus próprios salários como administrador e tendo-se socorrido de todos os seus bens e património pessoal para fazer face aos compromissos financeiros da empresa, pelo que entende não se encontrarem reunidos os pressupostos do crime que lhe vem imputado.
A prova produzida em instrução consistiu na inquirição de duas testemunhas, que trabalhavam na empresa, que entretanto já cessou a actividade em 2005.
A primeira testemunha ouvida, desempenhou as funções de TOC da empresa, desde 1997 até ao fim da actividade da empresa e esclareceu que, no início da actividade, a tendência era o crescimento da empresa, tendo tal tendência começado a inverter-se, o que se começou a reflectir na falta de liquidez. Além disso, houve problemas com os sócios iniciais e, a partir de 2000, começou a sentir-se uma maior pressão nos pagamentos. Apesar disso, os salários foram sendo mantidos em dia.
Mais afirmou esta testemunha que o arguido sabia das dívidas aqui reclamadas e que "sempre deu a cara", tudo fazendo para lutar pela sobrevivência da empresa, para o que foi sempre fazendo acordos, tendo feito entradas de dinheiros próprios para fazer face a pagamentos da empresa na ordem dos 400 a 500 mil euros, tendo deixado de receber os seus próprios ordenados.
A segunda testemunha, mulher do arguido, embora separada de facto do mesmo, foi Directora Técnica da empresa, tendo chegado a ser sócia, embora sem qualquer intervenção directa na gestão da mesma. Referiu brevemente a sequência dos factos desde a criação da empresa, que tinha como sócia uma empresa brasileira que foi comprada por um grupo alemão, altura em que acabaram por perder vários clientes. Vivenciou, deste modo, as dificuldades económicas que começaram em 2001, afirmando que mesmo os salários dos trabalhadores chegaram a andar significativamente atrasados. O seu marido tinha conhecimento destas dívidas, mas não as podia pagar, tendo sido a família da depoente a sustentá-los durante muitos anos. O arguido injectou na empresa todo o património dos dois, tendo o marido tudo tentado para manter a empresa, coisa que não conseguiu, prejudicando tanto o património do casal, como as próprias relações familiares, que culminaram na separação de ambos.
Esta, em breve resumo, a prova produzida em instrução.
A fls. 329 e segs., os arguidos vieram juntar certidão emitida pela Secção de Processo Executivo de Lisboa, segundo a qual, já não há nenhum valor em dívida.
Solicitada confirmação desta situação, foi obtida a informação de fls. 348 a 355, segundo a qual e em síntese, a totalidade da dívida foi declarada prescrita em 16 de Novembro de 2011, encontrando-se por liquidar apenas as custas do processo.
Já em sede de debate instrutório, a Digna Magistrada do M°P° defendeu, e bem, segundo entendemos, que a prescrição das prestações devidas não implica a prescrição do crime.
Resta, no entanto, ponderar, se a conduta dos arguidos, ao deixar de pagar as verbas relacionadas na acusação, implicou, para além do mais, comportamento sancionável do ponto de vista criminal.
Apreciada a prova produzida nos autos, conclui-se não se encontrar suficientemente indiciado que, conforme consta da acusação, tenha o arguido formulado um desígnio de não pagar as quantias devidas à Segurança Social e que tenha chegado a reter essas quantias que sabia pertencer à Segurança Social, utilizando-as em seu proveito e da empresa.
Na verdade, neste caso como em tantos outros semelhantes, em circunstâncias de extremas dificuldades económicas das empresas, estas não geram rendimentos suficientes para satisfazer todas as obrigações, tendo os seus responsáveis que optar por aquelas que são mais prementes, em geral, o pagamento dos salários e, eventualmente, os fornecedores de matéria prima que permita a continuação da laboração. Não chegam, por conseguinte, a ser efectivamente retidas as importâncias devidas ao Estado por não chegarem a ser geradas.
Aliás, ficou indiciado durante a instrução, que o arguido terá utilizado património próprio da família, que utilizou em beneficio da empresa; deixou de receber os próprios salários e fez as tentativas que estiveram ao seu alcance para tentar cumprir com os seus deveres para com o Estado.
O crime aqui em causa, como todos os outros, para se consumar exige, para além de uma actuação típica objectiva, o preenchimento dos elementos subjectivos.
Não se indicia aqui uma vontade esclarecida do arguido no sentido do não cumprimento das obrigações para com a Segurança Social para, dessa forma, utilizar essas verbas de forma indevida. O que se indicia, pelo contrário, é uma actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações, o que configura, como vem sendo entendido por alguma doutrina e jurisprudência a que aderimos, um verdadeiro estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa dos agentes.
Tal facto não afasta a obrigação da satisfação para com a Segurança Social dos pagamentos devidos, o que, neste caso, já não será possível em razão da declarada prescrição das prestações devidas.
Porém, não se indicia, pelas razões expostas, conduta susceptível de ser perseguida penalmente.
Entende-se, assim, não se justificar a apresentação da presente causa a julgamento, por não ser previsível uma futura condenação dos arguidos.
Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerandos e remetendo para as razões de facto e de direito enunciadas no requerimento de abertura de instrução, decido não pronunciar os arguidos pelo crime de abuso de confiança à Segurança Social na forma continuada que lhes vinha imputado, determinando o oportuno arquivamento dos autos.
Notifique.

Apreciemos.

Estabelece o artigo 308º, nº1, do CPP, que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” - nº 1.

E, esclarece-se no artigo 283º, nº 2, do mesmo diploma legal, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Está em causa a apreciação de todos os elementos de prova produzidos no inquérito e na instrução e a respectiva integração e enquadramento jurídico, em ordem a aferir da sua suficiência ou não para fundamentar a sujeição a julgamento dos arguidos.

Nessa aferição o tribunal aprecia a prova (indiciária, obviamente) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.

Figueiredo Dias afirma que “(...) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E acrescenta ainda: “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação” - Direito Processual Penal, 1º vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pág. 133.

Como sustenta Carlos Adérito Teixeira, no conceito de indícios suficientes “liga-se o referente retrospectivo da prova indiciária coligida ao referente prospectivo da condenação, no ponto de convergência da “possibilidade razoável” desta, por força daqueles indícios e não de outros” - Indícios suficientes: parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação” (…) Revista do CEJ, 2º semestre 2004, nº 1, pag. 189.

Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; tal ocorre quando a possibilidade de condenação, em função deles, for razoável.

No que concerne à dedução de acusação ou de pronúncia, constitui uma garantia fundamental de defesa, manifestação do princípio da presunção de inocência constitucionalmente consagrado, que ninguém seja submetido a julgamento penal senão havendo indícios suficientes de que praticou um crime. E o conteúdo normativo a conferir a esse conceito de indícios suficientes não pode alhear-se do mencionado princípio.

No desenvolvimento deste entendimento, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 439/2002, de 23 de Outubro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, considerou que “a interpretação normativa dos artigos citados (286º nº 1, 298º e 308º nº1, do CPP) que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art. 32º nº 2, da Constituição”.


Face ao que, o juízo sobre a suficiência dos indícios, no contexto probatório em que se afirma, deverá passar pela fasquia da probabilidade elevada ou particularmente qualificada, correspondente à formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de condenação, que será aquela que, num juízo de prognose, manifestar a potencialidade de vir a ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento.

Em todo o caso, o referente da condenação respeita ao crime que é imputado e em relação ao qual o juízo de indiciação suficiente se reporta.

Regressando à matéria dos autos, há que questionar se, com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito e na instrução, é de formular um juízo de probabilidade elevada de que, em julgamento, os arguidos venham a ser condenados pelos factos e incriminação legal imputados.

E, esse juízo, há-de atender para a sua formação não só à prova directa (em que o facto probatório - meio de prova - se refere imediatamente ao facto probando), como também à prova indirecta ou indiciária, que igualmente é admissível pelo nosso ordenamento jurídico – cfr. neste sentido, Acs. do STJ de 11/12/2003, Proc. nº 03P3375; 07/01/2004, Proc. nº 03P3213; 09/02/2005, Proc. nº 04P4721; 04/12/2008, Proc. nº 08P3456; 12/03/2009, Proc. nº 09P0395 e de 18/06/2009, Proc. nº 81/04PBBGC.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt – e reporta-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o recurso às regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.


Mas analisemos então o caso concreto.

Antes de mais, cumpre que se diga que no despacho colocado em crise não foram indicados quais os factos que indiciariamente estão provados, em manifesto desrespeito pelo estabelecido no artigo 283º, nº 3, alínea b), do CPP ex vi artigo 308º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Contudo, em nosso entender, a não narração dos factos, ainda que sintética, que constituem fundamento da decisão de não pronúncia, não acarreta a nulidade do despacho.

Com efeito, tal vício não vem cominado na lei como nulidade insanável, não integra os elencados nas alíneas do artigo 119º, do CPP, nem é reconduzível à situação prevista no nº 2, do artigo 379º, pelo que, não tendo sido arguida perante o tribunal recorrido, como se impunha, não pode ser agora conhecida por este tribunal de recurso, tendo de se considerar sanada – assim, Ac. R. do Porto de 07/07/2010, Proc. nº 102/08.5PUPRT.P1 e Ac. R. de Coimbra de 23/02/2011, Proc. nº 258/09.0GAFZZ.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.

Porque assim é, importa que se tenham de considerar como suficientemente indiciados todos os factos constantes da acusação pública, com excepção daqueles em relação aos quais no despacho recorrido se toma posição em sentido contrário.

Os indícios suficientes terão de se reportar aos factos e à infracção criminal cuja prática se imputam, ou seja, a prática, em co-autoria, do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 7º, nº 1 e 107º, nº 1, do RGIT.

De acordo com o entendimento retro expresso, mostra-se suficientemente indiciado, designadamente, que:
“A representação da sociedade “I…., S.A.” à data da prática dos factos era assumida, de forma efectiva, pelo arguido R..., sendo sócio e gerente na data dos factos e posteriormente administrador único, obrigando-se a sociedade com a assinatura do mesmo” - ponto 2 da acusação.

Os salários dos trabalhadores eram pagos pela 1ª arguida pontualmente e dentro do respectivo mês a que respeitavam” – ponto 4.

“No decurso da actividade que exercia, a 1ª arguida encontrava-se obrigada a efectuar a entrega na Segurança Social das folhas de remuneração, a pagar aos trabalhadores que tinha ao seu serviço os salários, retendo as contribuições a eles descontadas, o que cumpriu, e a entregar esses valores à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguintes àquele a que as contribuições respeitavam” – ponto 5.

Mais se tem de considerar suficientemente indiciado, porque no despacho revidendo se não referiu que o não esteja e consta da acusação pública, que desde Março de 2003 até Julho de 2004 o arguido R... não entregou na Segurança Social os descontos das contribuições legalmente imputáveis aos trabalhadores e que ali deveriam ser entregues, nem na altura em que a sua entrega era obrigatória – até ao dia 15 do mês seguinte a que diziam respeito – nem nos 90 dias subsequentes a esse prazo.
Entendeu-se na decisão recorrida que “conclui-se não se encontrar suficientemente indiciado que, conforme consta da acusação, tenha o arguido formulado um desígnio de não pagar as quantias devidas à Segurança Social e que tenha chegado a reter essas quantias que sabia pertencer à Segurança Social, utilizando-as em seu proveito e da empresa. Na verdade, neste caso como em tantos outros semelhantes, em circunstâncias de extremas dificuldades económicas das empresas, estas não geram rendimentos suficientes para satisfazer todas as obrigações, tendo os seus responsáveis que optar por aquelas que são mais prementes, em geral, o pagamento dos salários e, eventualmente, os fornecedores de matéria prima que permita a continuação da laboração. Não chegam, por conseguinte, a ser efectivamente retidas as importâncias devidas ao Estado por não chegarem a ser geradas. Aliás, ficou indiciado durante a instrução, que o arguido terá utilizado património próprio da família, que utilizou em benefício da empresa; deixou de receber os próprios salários e fez as tentativas que estiveram ao seu alcance para tentar cumprir com os seus deveres para com o Estado (…) Não se indicia aqui uma vontade esclarecida do arguido no sentido o não cumprimento das obrigações para com a segurança social para, dessa forma, utilizar essas verbas de forma indevida. O que se indicia, pelo contrário, é uma actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações, o que configura, como vem sendo entendido por alguma doutrina e jurisprudência a que aderimos, um verdadeiro estado de necessidade desculpante, que afasta a culpa dos agentes”.

Consagra-se no artigo 107º, nº 1, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho), que “as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidos com as penas previstas nos nº 1 e 5 do artigo 105º”.

Como se salienta no Acórdão desta Relação e Secção, de 20/03/2012, Proc. nº 5209/04.5TDLSB.L1-5, consultável em www.dgsi.pt, “estamos perante um crime omissivo puro, que se consuma com a não entrega da prestação devida. Neste sentido, atente-se que o agente detém o montante, na qualidade de depositário, possuindo-a e detendo-a licitamente, se bem que a título precário e temporário. Com a sua não entrega ao Estado, o agente altera o título da posse ou detenção, passando a dispor da coisa, como se a mesma estivesse sob seu domínio, na sua disponibilidade” – no mesmo sentido, vd. por todos, Ac. R. de Coimbra de 25/05/2011, Proc. nº 472/04.4TAAGD.C1, no sítio mencionado.

E, conforme se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 15/02/2007, citado no aludido aresto “no crime de abuso de confiança em relação à segurança social (art. 27.°-B do Dec.-Lei n.° 20-A/90, de 15.01) o acto de entrega não translativo da propriedade, traduz-se na circunstância da entidade empregadora estar legalmente investida do poder de deduzir e reter, nos vencimentos do seus trabalhadores, os montantes pecuniários correspondentes às contribuições devidas à segurança social; A apropriação não tem de ser necessariamente material, podendo ser - como quase sempre é - apenas contabilística”.

Embora se não concorde que o artigo 107°, do RGIT, para o preenchimento da conduta típica, não prescinde do elemento “apropriação”, designadamente por se confundir esta com dar-se outro destino aos valores retidos dos salários dos trabalhadores, que não o destino legal – pois elemento do tipo objectivo do crime é a “não entrega da prestação” e não a “apropriação” - certo é que a não entrega das contribuições e respectiva afectação a finalidades diferentes pode consubstanciar-se numa operação meramente contabilística, não correspondente a liquidez existente.

Na verdade, como se defende no Ac. R. de Évora de 25/09/2012, Proc. nº 9/09.9TAVRS.E1, consultável em www.dgsi.pt, entendimento que perfilhamos, “para efeito do preenchimento dos elementos do tipo legal do crime em apreço, é totalmente irrelevante que não tenha ocorrido uma verdadeira retenção monetária daquilo que corresponde ao registo contabilístico e sendo certo que a parte correspondente ao salário devido foi paga aos trabalhadores”.

Acrescentando-se ainda que “se o arguido, em vez de entregar as contribuições “deduzidas” (que deviam ser deduzidas, que foram contabilizadas como tal, tendo os salários sido pagos) do valor das remunerações pagas aos trabalhadores, por decisão sua, não as entregou, por que motivo fosse, seja por dificuldades financeiras da sociedade arguida, seja por que não correspondiam a liquidez existente (eram meros registos contabilísticos), seja para pagar os salários dos seus empregados, seja para despesas de laboração relativas à actividade da arguida sociedade, naturalmente que se assumiu como “dono” dessas contribuições devidas à segurança social, ou, pelos menos, não as entregou como devia, preferindo, ao que resulta da própria motivação do recurso, pagar os salários aos trabalhadores e satisfazer, na medida das possibilidades, outras obrigações da sociedade arguida. Porém, em substância, o arguido detinha tais contribuições, “desviando” o dinheiro (correspondente às deduções registadas, mas inexistente) para fins diversos, a que sentiu necessidade de acorrer.

Ora, afirmou o arguido R…., nas declarações prestadas em sede de Inquérito (em que foi assistido pela sua mandatária Sr.ª Dr.ª …) que “foram feitas as retenções nos salários pagos, as mesmas não foram entregues à Segurança Social em virtude de não haver dinheiro suficiente em caixa e de se estar a dar prioridade aos pagamentos dos salários e das necessidades essenciais para manter a sociedade activa” constando ainda do respectivo auto que, perguntado “sobre quem tomou a decisão de não entregar à segurança social as cotizações imputadas aos trabalhadores e a executou, respondeu que a decisão foi do ora depoente”.

Com base nestas declarações do arguido, conjugados com os documentos de suporte ao pagamento dos salários em relação aos quais são devidas as quotizações, não pode deixar de se concluir ter havido pagamento de salários por parte da arguida sociedade no período em análise nos presentes autos.

E, mesmo no que tange a o arguido R... ter deixado “de receber os próprios salários”, em momento algum das suas declarações referiu ele essa circunstância, sendo certo que tal menção pelo tribunal recorrido é vaga, não revelando recorte suficiente para uma identificação dos respectivos períodos com um mínimo de precisão e para a concretização dos montantes em causa.

Considerando as mencionadas declarações, é também manifesto estar suficientemente indiciado que, tal como consta do ponto 6 da acusação pública “o arguido, a partir de Março de 2003, formulou o desígnio de não proceder à entrega das contribuições descontadas aos salários dos trabalhadores que mantinha ao seu serviço e que deviam ser entregues à segurança social”, contrariamente ao entendimento vertido no despacho revidendo que, aliás nem sequer menciona quais os elementos probatórios constantes dos autos em que se alicerça a convicção a que chegou.

E dessas mesmas declarações resulta que o arguido não só estava consciente da sua conduta omissiva, como tinha o conhecimento da factualidade necessária para o preenchimento do tipo objectivo do crime e a consciência de que a mesma era criminalmente punível pois, conforme se pode ainda ler nas suas declarações “questionado se a JCM – empresa que efectuava a contabilidade da sociedade arguida – lhe tinha dado conhecimento que o facto de não entregar à Segurança Social as cotizações dos trabalhadores poderia ser crime, respondeu que lhe deram conhecimento de tal facto, não no início da dívida mas após cinco meses do decurso da mesma”.

Consistindo o dolo na vontade livre e consciente de não entregar as contribuições legalmente devidas e que quanto à consciência da ilicitude basta a consciência de que essas contribuições são devidas à Segurança Social, está verificada a existência de dolo genérico e tanto basta, pois no tipo em causa não existe referência alguma a elementos concernentes a um dolo específico ou elemento subjectivo da ilicitude.

Mas, considerou-se na decisão revidenda verificar-se situação de estado de necessidade desculpante, nomeadamente por ser “a actuação do arguido no sentido de satisfazer obrigações para com os trabalhadores, mais prementes de todos os pontos de vista, do que as demais obrigações”.

A obrigação legal de entregar as contribuições à Segurança Social é superior ao dever funcional de manter a empresa a funcionar e de pagar os salários aos trabalhadores e as dívidas aos fornecedores, porquanto os valores que se visam salvaguardar com as prestações à segurança social entroncam directamente nas atribuições do Estado, no sentido de salvaguardar os cidadãos assistência e protecção na velhice, na invalidez, viuvez, e orfandade, bem como outras situações de perda de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

E, é manifesto que estes interesses, de natureza pública, se sobrepõem aos interesses dos particulares, pois se elegeu até um tipo criminal para a sua protecção, quando vero é que o não pagamento de salários ou a fornecedores se traduz em mero incumprimento de obrigações contratuais.

Mas, concretamente quanto ao estado de necessidade desculpante, estabelece-se no artigo 35º, do Código Penal:

“1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena”.

Não se alcança qual o perigo que estava ameaçando a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do arguido R... ou de terceiro que fosse afastado pela não entrega à Segurança Social das prestações devidas e temos por seguro que o não pagamento de salários aos trabalhadores o não configura.

Mas, mesmo que se entendesse que estava em causa a continuação da “vida”, entendida como existência, da sociedade arguida, o comportamento omissivo em causa não pode ser visto como o único com potencialidade ou capacidade para afastar esse perigo pois, perante a sua situação deficitária, o arguido tinha sempre a possibilidade legal de optar pela respectiva extinção, bem como pelo não pagamento dos salários – cfr. Ac. R. de Guimarães de 14/03/2005, Proc. nº 131/05-1 e Ac. R. de Évora de 20/03/2012, Proc. nº 213/09.0TAETZ.E1, em www.dgsi.pt.
Também Carlos Adérito Teixeira e Sofia Correia Gaspar, em Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. II, UCE, Lisboa 2011, pag. 479, nos dão a conhecer que é entendimento de significativa jurisprudência “que a impossibilidade de cumprimento da prestação tributária não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança contra a segurança social nem causa de justificação ou de exclusão da culpa”, enunciando alguns desses arestos.

Conclui-se, pois, que não se verificam os pressupostos do estado de necessidade desculpante.

Termos em que, existindo indícios suficientes de que o arguido R…., enquanto gerente da sociedade arguida “I…, S.A.”, não entregou, no prazo legal, as quantias devidas à Segurança Social, afectando-as a outro destino que não o legal, fazendo-o de forma voluntária, livre e consciente, não se verificando causa alguma de exclusão da ilicitude ou da culpa, mormente o estado de necessidade desculpante, mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social que lhes é imputado.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso pelo Ministério Público interposto e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida de não pronúncia que deve ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pelos factos e incriminação constantes da acusação pública.

Sem tributação.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2012

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário - artigo 94º, nº 2, do CPP).

Artur Vargues
Jorge Gonçalves