Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14358/21.4T8SNT-B.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: ACÇÃO NÃO CONTESTADA
NÃO REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE DA SENTENÇA
PROVA DOCUMENTAL
AQUISIÇÃO DE BENS PELO CÔNJUGE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Não sendo deduzida contestação, se, por força do disposto no artigo 568º, alínea d) do CPC, a acção tiver de prosseguir, não há lugar à realização de audiência prévia (artigo 592º, nº 1, alínea a) do CPC).
II – Por isso, a falta de notificação da autora para se pronunciar sobre a não realização da audiência prévia, não torna a sentença nula, por violação do princípio do contraditório.
III - Estando em causa interesses de terceiros, impõe-se ao cônjuge (casado no regime de comunhão de adquiridos) que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um determinado bem provieram do seu património, que apresente a prova documental exigida pela norma imperativa da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, ou seja, título aquisitivo donde conste a declaração da proveniência do dinheiro, ou documento equivalente assinado por ambos os cônjuges.
IV – Se tal documento não foi junto com a petição nem posteriormente, a falta de contestação do réu não leva à confissão dos factos (demonstrativos que os valores utilizados na aquisição de um determinado bem provieram do seu património), em virtude de não ser aplicável a cominação prevista no artigo 567º, nº 1 para a revelia do réu, “quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. MF., veio, por apenso ao processo de insolvência nº 14358/21.4T8SNT,  propor a presente acção de reconhecimento do direito à separação ou restituição de bens nos termos do disposto no artigo 146º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), contra PS., insolvente nos autos principais, MASSA INSOLVENTE DE PS., representada pelo administrador da insolvência, e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE, pedindo a separação da massa e restituição da fracção autónoma designada pela Letra “G”, correspondente ao 3º andar Esquerdo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Travessa …, Dafundo, freguesia de Cruz Quebrada-Dafundo, concelho de Oeiras, que foi adquirido na constância do casamento, mas que é de sua propriedade exclusiva, devendo ainda ser declarada sua única e exclusiva proprietária.
Alegou, em síntese, que não obstante a fracção ter sido adquirida na constância do casamento com o insolvente, a verdade é que foi adquirida com dinheiro que o pai lhe doou, que ainda suportou os custos relacionados com impostos, escritura e registos.
Apesar de regularmente citados nenhum dos RR. deduziu contestação.
Findos os articulados, entendendo o tribunal que o processo permitia, sem necessidade de mais provas, conhecer do mérito da causa, proferiu despacho saneador-sentença que terminou pela procedência parcial da acção: a) reconhecendo o direito da A. à separação da massa insolvente do direito à sua meação na fracção G do prédio urbano, descrito na 2ª CRP de Oeiras sob o nº 516/20110105-G, sito na Travessa …, 3º andar esquerdo, freguesia Cruz Quebrada – Dafundo, concelho de Oeiras; e, b) absolvendo os RR. do pedido de declaração da A. como única e exclusiva proprietária da fracção acima descrita, separando-a da massa insolvente.
Inconformada com este saneador-sentença, dele interpôs recurso a Autora, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a) Os factos alegados na petição (prova de pagamento nos termos que foi alegada), não careciam de documento escrito admitindo confissão ou outro meio de prova.
b) A falta de contestação dos réus originou a confissão absoluta dos factos articulados na petição inicial nos termos previstos no nº 1 do art.º 567º do CPC, resultando uma confissão absoluta inexistindo as situações excepcionais previstas no art.º 568º do CPC;
c) O pagamento do imóvel, quem o pagou e como foi feito, deve ser dado como provado nos termos alegados na petição inicial através da confissão dos réus resultante da não impugnação da afirmação desse facto;
d) Em consequência, as als. a) e b) dos factos não provados devem ser considerados provados e ser aditados à matéria de facto provada os factos constantes dos artigos 8.º a 10.º da petição inicial, pois foram admitidos por confissão;
e) Ao abster-se de analisar os elementos probatórios invocados na petição, desprotegendo os seus direitos, a decisão em crise incorreu em erro de julgamento;
f) Uma vez que a produção da prova indicada era essencial para a descoberta da verdade – aliás, os factos que a sustentam, apenas podiam ser provados através de prova testemunhal ou confissão;
g) Neste sentido, o depoimento de parte, declarações de parte e a prova testemunhal indicada na Petição Inicial deveriam ter sido consideradas, independentemente sobre qual a parte que recaia o ónus da sua produção respeitando o princípio do inquisitório e da aquisição processual constantes do art.º 411.º e 413.º do CPC;
h) Pois eram pertinentes e pretendiam provar factos relevantes para a resolução do litígio.
i) O direito à prova tem consagração constitucional – art.º 20.º, n.º 1, 1ª parte da CRP e tem como conteúdo essencial o direito de a parte apresentar as provas das quais se pretende fazer valer para demonstrar o fundamento factual do direito que se arroga, desde que essas provas sejam relevantes.
j) Inexistiu prova dos factos alegados na petição porque o tribunal coarctou a possibilidade da sua produção;
k) A decisão fez ainda uma errada interpretação e aplicação do direito nomeadamente do art.º 1723.º, al. c) do Código Civil, pois estão em causa bens de titularidade de ambos os cônjuges, tem aplicação os artigos 740º e 786º, do CPC, visando a separação de bens e discussão da titularidade dos mesmos;
l) O n.º 3 do art.º 3.º do CPC ao abrigo do contraditório determina que não pode o Juiz decidir questões de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, não podendo igualmente decidir com base em qualificação substancialmente inovadora que as partes não hajam considerado, sem antes lhes ter dado a possibilidade de produzirem as suas alegações.
m) Na petição inicial a Recorrente requereu que fosse a fracção autónoma em causa separada da massa insolvente, considerando-se esta como única e exclusiva proprietária do mesmo.
n) Aduziu a razões de facto, juntou prova documental e requereu prova testemunhal, tendo sido arroladas várias testemunhas, bem como foi requerida prova de declarações e depoimento de partes;
o) A sentença recorrida, surpreendeu a Recorrente, uma vez que dos autos não decorriam quaisquer indícios que seria proferida decisão, transformando-se numa decisão-surpresa;
p) A decisão deveria ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar;
q) A omissão de um acto que a lei prescreva e que possa influenciar na boa decisão da causa gera nulidade processual nos termos do art.º 195.º n.º 1 do CPC, que se invoca.

Não foram deduzidas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pela Recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
- verificar se a decisão impugnada padece de nulidade em resultado da alegada violação do princípio do contraditório, nomeadamente por as partes não terem sido notificadas das razões da não realização da audiência prévia;
- caso não ocorra essa nulidade, decidir se os factos dados como não provados na sentença devem ser considerados provados, em razão de terem sido confessados pelos RR., que não contestaram; e
- verificar se ocorreu uma errada interpretação e aplicação do direito nomeadamente do artigo 1723º, alínea c) do Código Civil.

3. Na sentença deram-se por assentes os seguintes factos:
1. Por sentença proferida a 11/10/2021, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de PS., sendo nomeada administradora de insolvência AG..
2. Por auto de apreensão elaborado em 14/12/2021 e junto aos autos em 04/01/2022, a administradora da insolvência procedeu à apreensão da fração G do prédio urbano, descrito na 2ª CRP de Oeiras sob o nº …-G, sito na Travessa …, 3º andar esquerdo, freguesia Cruz Quebrada – Dafundo, concelho de Oeiras.
3. Mediante carta registada com aviso de recepção, datada de 22 de Agosto de 2022, a administradora da insolvência citou a ora A. nos termos do disposto no art.º 740º e 786º, do CPC, para esta requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa de pendência de acção em que a separação já tivesse sido requerida, sob pena da venda do imóvel, apreendido, prosseguir pela totalidade.
4. A ora A. casou civilmente com o insolvente em 27 de Dezembro de 2013, sob o regime de comunhão de bens adquiridos.
5. Por escritura pública outorgada em 22 de Janeiro de 2014, no Cartório Notarial da Dra. APF, e exarada de fls. 49 a fls.51-v do Livro de Notas 110, “P. – Construções e Urbanizações, Lda.” declarou vender a MF., no estado de casada sob o regime da comunhão de adquiridos com PS., que aceitou comprar, pelo preço de €37.000,00 que recebeu da referida MF., a fração autónoma identificada em 2. supra.
6. Pela Ap. 2274 de 2014/01/22 encontra-se inscrita a favor da A. e do insolvente a aquisição do direito de propriedade relativa à fração autónoma mencionada supra, descrita na 2ª CRP de Oeiras sob o n.º …-G.
7. Foram reconhecidos provisoriamente créditos sobre a insolvência no montante total de €68.806,09, de natureza comum.
Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:
a) que foi a Autora que, unicamente, o pagou com a ajuda financeira do seu pai – sendo um bem próprio do mesmo;
b) que o imóvel foi comprado com dinheiro doado pelo pai da Autora, exclusivamente a esta.

4. Perante a factualidade dada por provada, cumpre agora analisar e resolver as questões supra anunciadas.
4.1. A Recorrente inicia as suas alegações acusando a decisão impugnada de padecer de nulidade, por violação do princípio do contraditório, em virtude de o Tribunal não a ter notificado para se pronunciar sobre a não realização da audiência prévia. No seu entendimento “a decisão deveria ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar” (alínea p) das Conclusões).
Cremos, salvo o devido respeito, que tal alegação carece totalmente de fundamento.
Vejamos porquê.
O princípio do contraditório está actualmente enunciado no artigo 3º, nº 3 do CPC, em obediência ao qual cada uma das partes deve ser “chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultado de umas e de outras”.[1]  Assenta na ideia de que “repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra de que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”.[2]
E, com efeito, determina o referido nº 3 do artigo 3º do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta necessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Pretendeu-se com esta regra que, ao abrigo do princípio da liberdade de aplicação das regras de direito (artigo 5º, nº 3 do CPC), as partes sejam colocadas perante soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão.
Contudo, decorre da mesma norma, que a audição das partes pode ser dispensada em casos de manifesta desnecessidade (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), quando se trate de indeferimento de nulidades (artigo 201º) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa fé, alegar o desconhecimento de questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências (TRL, Acórdão de 24/04/2018, proc. 15582/17.0T8LSB.L1-7). Ou, nas palavras de LOPES DO RÊGO, “a audição excepcional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela.”
Em síntese, como sustenta o mesmo autor, não deverá “banalizar-se a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do preceito ora em análise, de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela actuação do preceituado no art.º 3º, nº 3. Na verdade, a negligência da parte interessada que, v. g. omite “quaisquer razões de direito”, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal – movendo-se, no momento da decisão, dentro dos próprios institutos jurídicos em que as partes no essencial haviam situado nas suas pretensões – a, sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa.”[3]
No caso dos autos, não se impunha a obrigação de o Tribunal ouvir as partes sobre uma eventual não realização da audiência prévia ou para, querendo, alegarem por escrito, desde logo porque, dada a situação de revelia inoperante dos RR., nem sequer havia lugar à tal diligência instrutória.
Com efeito, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 567º do CPC, quando o réu “não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”. Trata-se da chamada revelia operante, isto é, aquela em que o comportamento omissivo do réu tem por efeito a chamada confissão tácita ou ficta. Nestes casos, o processo segue a seguinte tramitação prevista no nº 2 do artigo 567º: a) na hipótese de o réu, apesar de não ter contestado, tiver juntado procuração passada a advogado, o processo é facultado para exame pelo prazo de 10 dias ao advogado do autor e do réu, que alegarão por escrito sobre a questão de direito e, em seguida, é proferida sentença, julgando-se a causa conforme for de direito; b) caso o réu nem sequer tenha juntado procuração passada a advogado, o juiz profere sentença julgando a causa conforme for de direito, sendo usual, no entanto, conceder ao advogado do autor a possibilidade de alegar por escrito.
Mas, em determinadas circunstâncias, mesmo que o réu não tenha contestado, ainda assim não se consideram confessados os factos articulados pelo autor. São as designadas situações de revelia inoperante, previstas no artigo 568º do CPC, entre as quais se contam aquelas em que se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito, seja por disposição legal, seja por iniciativa das partes (artigos 568º, alínea d) do CPC e artigos 354º, alínea a), 223º e 364º do Código Civil).
Apesar de inoperante, a revelia produz alguns efeitos. Assim, nas hipóteses previstas nas alíneas b) e c) do artigo 568º do CPC não haverá lugar a réplica, nem a realização de audiência prévia, mas não se dispensa a enunciação dos temas da prova, dado que não se consideram confessados os factos articulados pelo autor, que, por isso, devem ser objecto de instrução e prova (artigos 592º, nº 1, alínea a) e 596º, nº 1 do CPC).[4] Já o caso da alínea d) do artigo 568º -  que é o que nos interessa para a situação dos autos – tem um âmbito mais circunscrito. Como a inoperância da revelia resulta da falta de um determinado documento, logo que o juiz verifique a sua falta, deverá notificar o autor para proceder à respectiva junção, e caso este o junte, ficará então em condições de julgar o mérito da causa.[5] Mas, caso resultasse do articulado na petição que esse documento não existia, seria de todo inútil essa notificação. Por conseguinte, seguir-se-ia, sem mais, a decisão sobre o mérito da causa. Em suma, apesar de ser uma situação de revelia inoperante, da fase dos articulados passar-se-ia para a da sentença, por não haver lugar nem a audiência prévia, nem a audiência final.
No caso dos autos, tendo a acção prosseguido nos termos do disposto no artigo 568º, alínea d) do CPC, não tinha de se realizar a audiência prévia, como, aliás, impõe a alínea a) do nº 1 do artigo 592º do CPC. Por isso, se é a própria lei que a exclui, não tinha a Autora de ser notificada para se pronunciar sobre a não realização da audiência prévia. Acresce que, pese embora tal omissão não tenha sido imputada à sentença, não haveria lugar a uma eventual notificação para junção de documento comprovativo da proveniência do dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges (documento equivalente à escritura pública e assinado por ambos os cônjuges), uma vez que tal documento nunca teria existido, como se deduz das alegações da Recorrente (cfr. nºs 20 e 21).
Não ocorreu, pois, qualquer omissão por parte do Tribunal, que, na verdade, se limitou a seguir a tramitação prevista na lei processual.
Não se pode, assim, designar o saneador-sentença que conheceu do mérito da causa como uma decisão-surpresa, uma vez que nada impedia que o juiz proferisse logo decisão de mérito, tendo em conta que a procedência da acção dependeria sempre do preenchimento das condições de prova exigidas pela alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, condições essas que as provas requeridas pela Autora não preenchiam, como infra se demonstrará. Além do mais, a surpresa que o nº 3 do artigo 3º do CPC pretendeu evitar não se prende com o conteúdo ou o sentido da decisão em si, mas antes com a circunstância de se decidir uma questão não prevista, o que, claramente, não é a situação dos autos. Como já se decidiu, “o respeito pelo contraditório não implica que haja que apresentar às partes um projecto de decisão para que sobre ele se pronunciem ou que devam ser ouvidas fora dos momentos processuais previstos sobre questões que as suas pretensões coloquem habitualmente na jurisprudência e sejam por isso conhecidas na comunidade jurídica.[6]
Em suma, não se verifica a apontada nulidade da decisão impugnada, por violação do princípio do contraditório, nem por qualquer outra causa, designadamente, por omissão de qualquer acto processual prescrito por lei.
4.2. A Recorrente considera ainda que o Tribunal a quo deveria ter dado como provados os factos constantes das alíneas a) e b) dos “factos não provados”, por efeito da cominação prevista no nº 1 do artigo 567º do CPC, dado que “a falta de contestação dos réus originou a confissão absoluta dos factos articulados na petição inicial (…), resultando uma confissão absoluta inexistindo as situações excepcionais previstas no artigo 568º do CPC” (cfr. alínea b) das conclusões de recurso), acrescentando que “o pagamento do imóvel, quem o pagou e como foi feito, deve ser dado como provado nos termos alegados na petição inicial através da confissão dos réus resultante da não impugnação da afirmação desse facto” (cfr. alínea c) das conclusões de recurso).
Mas, também aqui lhe falece a razão, desde logo porque os factos referidos – designadamente o que consta da alínea b), porque o da alínea a), não passa de um misto de conclusão e alegação de direito – exigiam prova documental, tal como determina a alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, norma que preceitua que conservam a qualidade de bens próprios “os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.”
Trata esta norma da chamada sub-rogação real indirecta de bens próprios que abrange os bens adquiridos na constância do casamento (celebrado no regime supletivo de comunhão de adquiridos), com bens ou dinheiro, desde que, neste último caso, a proveniência conste do título aquisitivo ou de documento equivalente. Este requisito formal (de a declaração da proveniência do dinheiro constar no título aquisitivo ou em documento equivalente assinado por ambos os cônjuges), originou divergências, quer na doutrina, quer na jurisprudência, quanto à interpretação da referida alínea c) do artigo 1723º. Havia os que entendiam que a omissão daquele requisito “determina uma presunção juris et de iure de comunicabilidade do bem comprado, aplicável quer nas relações entre cônjuges, quer nas relações entre cônjuges e terceiros, sem prejuízo da compensação do cônjuge lesado a efectuar à custa do património comum” e os que “fazendo uma distinção entre relações entre cônjuges e relações entre cônjuges e terceiros, admitem que o cônjuge que empregou dinheiro ou valores próprios (ou maioritariamente próprios) na compra se possa socorrer de quaisquer meios de prova para afirmar a natureza de bem próprio, vendo-se estabelecida, no aludido preceito legal, uma presunção juris tantum de comunicabilidade, conquanto limitada às relações entre cônjuges.”[7] Entretanto, o STJ acabou por uniformizar a jurisprudência no sentido de que “estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”[8].Este acórdão, que mereceu críticas da doutrina[9], não é aplicável à situação dos autos, porque, para além dos interesses da ora Recorrente, estão aqui em causa, sobretudo, os interesses de terceiros, que são os credores da insolvência.
Assim, independentemente da posição adoptada àcerca da interpretação a dar à alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, estando em causa interesses de terceiros, como acontece nos presentes autos, impõe-se ao cônjuge (casado no regime de comunhão de adquiridos) que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um determinado bem provieram do seu património, que apresente a prova documental exigida pela norma imperativa da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, ou seja, título aquisitivo donde conste a declaração da proveniência do dinheiro, ou documento equivalente assinado por ambos os cônjuges.  Não sendo apresentado tal documento, não fica afastada a qualificação desse novo bem adquirido como bem comum, qualificação essa que resulta, precisamente, da inobservância dos requisitos estabelecidos no artigo 1723º, alínea c) e que, em última análise, assenta na presunção de comunhão do artigo 1724º do Código Civil.[10]
Por isso, dependendo a prova dos factos em causa – designadamente, “o pagamento do imóvel, quem o pagou e como foi feito” – da apresentação daquele documento, e não sendo este junto com a petição nem posteriormente, a falta de contestação dos réus nunca poderia levar respectiva confissão, em virtude de não ser aplicável a cominação prevista no artigo 567º, nº 1 para a revelia do réu, “quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.
Cremos que o que supra se disse responde simultaneamente às duas últimas questões colocadas nas alegações de recurso.
Consequentemente, improcede totalmente a apelação.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a presente apelação, confirmando assim a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 30/05/2023
Nuno Teixeira
Rosário Gonçalves
Manuel Marques
_______________________________________________________
[1] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1993, pág. 379.

[2] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 21,

[3] Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 25/26. No mesmo sentido pronunciou-se recentemente o STJ, no Acórdão de 12/01/2021 (proc. 3325/17.2T8LSB-B.L1.S1), ao sustentar que “só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso (…) entendimento que este Tribunal vem afirmando repetidamente decidindo no sentido de que só há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e sem alicerce na matéria factual ou jurídica, enveredar por uma solução que os sujeitos processuais não tinham a obrigação de prever.”

[4] No caso da alínea a) do artigo 568º, beneficiando o réu revel da contestação apresentada pelo co-réu, a tramitação processual não sofre qualquer alteração.

[5] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Ob. Cit., pág. 659.

[6] TRP, Acórdão de 02/12/2019, proc. 14227/19.8T8PRT.P1.

[7] Cfr. EVA DIAS COSTA, O caso dos espeleólogos: (ainda) a propósito do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 12/2015, de 2 de Julho de 2015, in https://www.direitoemdia.pt/magazine/show/88.

[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2015, de 13 de Outubro (DR, Série I, de 13/10/2015).

[9] Cfr. entre outros, RITA LOBO XAVIER, “Omissão das formalidades exigidas pela norma da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil para a sub-rogação real indirecta de bens próprios no regime de comunhão de adquiridos: o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 12/2015 e as novas dimensões do problema”, Julgar, 2020, nº 40, pp. 13-31.

[10] Cfr. FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito de Família, volume I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 519.