Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8625/2007-4
Relator: JOSÉ FETEIRA
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
I- O art. 112º, nº 1, do Cod. Proc. Trabalho, ao exigir que do auto de não conciliação conste se as partes estiveram ou não de acordo acerca da existência e caracterização do acidente e da relação de causalidade só pode ter querido referir-se aos factos que definem a existência e caracterização do acidente e o nexo causal entre o evento e a lesão.
II - Para se considerar como sendo acidente de trabalho, por ter ocorrido no trajecto de ida e de regresso para o local de trabalho, nos termos do artº 6º, nº 2, al. a), da LAT e do artº 6º, nº 2, da RLAT, não basta que se tenha demonstrado que a vítima, no momento do sinistro, circulava para o seu local de trabalho, sendo necessário que o sinistrado ou o beneficiário demonstre que a vítima o fazia a partir de qualquer dos locais referidos nos mencionados dispositivos legais.
Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção (Social) do Tribunal da Relação de Lisboa.


            I – RELATÓRIO

            Nos presentes autos de acção emergente de acidente de trabalho, com processo especial, que corre termos no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira sob o n.º 76/04.1TTVFX e em que são Autores A…., por si e em representação de suas filhas B..., e C..., tendo-se frustrado a tentativa de conciliação realizada no final da respectiva fase conciliatória, deduziram petição contra a Ré “IMPERIO BONANÇA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, alegando, em síntese e com interesse que, no dia 21 de Dezembro de 2003, pelas 19h40m, o sinistrado D..., respectivamente marido e pai das Autoras, foi vítima de um acidente de viação (despiste), ocorrido no IC-2 ao Km. 51,933, em Marés – Alenquer, quando conduzia a viatura de matrícula …. na dependência hierárquica, direcção, ordens e a fiscalização da firma “E... ”, no âmbito de um contrato de trabalho com esta celebrado.

            Em consequência do referido acidente o D... sofreu as lesões traumáticas descritas no relatório de autópsia de fls. 54 e 55, as quais foram determinantes da sua morte ocorrida naquele mesmo dia.

            À data do sinistro o D... auferia a retribuição de € 1996,00 X 14 meses a título de vencimento base e a que corresponde a remuneração anual de € 27.944,00.

            À data do acidente, a entidade patronal do sinistrado tinha a sua responsabilidade civil, emergente de acidentes de trabalho, transferida para a Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º AT 21405297 em função daquela retribuição auferida pelo sinistrado.

            O sinistrado vivia em comunhão de mesa e habitação com as Autoras.

            O funeral do sinistrado, com transladação, foi suportado pela Autora A… e importou em € 2.852,80.

            Não obstante a Ré concordar coma caracterização do acidente como sendo de trabalho e aceitar a existência de nexo de causalidade entre as lesões sofridas pelo sinistrado e a sua morte, bem como o montante da retribuição auferida por este, não aceitou ser responsável pelo pagamento de qualquer quantia, uma vez que entende que o acidente resultou do excesso de álcool no sangue apresentado pelo sinistrado – 1,48 gr/l.

            Nada alega, no entanto, que demonstre que o referido acidente ocorreu como consequência do sinistrado conduzir a aludida viatura com o mencionado grau de alcoolemia e, para além disso, a Ré não invoca imperícia ou outras anomalias na condução do sinistrado que, supostamente, pudessem estar na génese do acidente ao qual, aliás, ninguém assistiu.

            Concluiu pedindo que a Ré seja condenada a pagar:

            A) À beneficiária A...:

a) a pensão anual e vitalícia de € 8.383,20, desde o dia seguinte ao da morte do sinistrado, ou seja, desde 22 de Dezembro de 2003, até perfazer a idade de reforma por velhice e a pensão anual e vitalícia de € 11.177,65 a partir da data da concessão de tal reforma ou no caso de doença física ou mental que a afecte sensivelmente na sua capacidade de trabalho

b) as despesas de funeral, ou seja, o montante de € 2.852,80;

c) o montante global de € 4.279,21, por subsídio de morte.

            B) Para as beneficiárias B... e C...:

- A cada uma a pensão anual no montante de € 5.588,80, com efeitos a partir de 22 de Dezembro de 2003 até perfazerem 18 ou 22 ou 25 anos, enquanto frequentarem, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade se afectadas por doença física ou mental que as incapacite sensivelmente para o trabalho.

            Tendo sido proferido despacho de aperfeiçoamento a fls. 87, vieram as Autoras apresentar uma nova petição, suprindo as deficiências apontadas mas mantendo na íntegra o pedido que na primeira haviam formulado.

            Citada a Ré, contestou, alegando, em resumo e com interesse, que, tal como afirmara na tentativa de conciliação, aceita a existência de um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho com a “E..., S.A.”, bem como a transferência para si do salário de € 1.996,00 X 14 meses, a título de vencimento-base.

            Não aceita, porém, a responsabilidade pela reparação do acidente, uma vez que, na posse dos elementos apurados, se conclui que o acidente de viação se ficou a dever a uma atitude temerária por parte do sinistrado, a qual consubstancia a descaracterização do mesmo, por negligência grosseira e violação do Código da Estrada, dado que aquele optou por iniciar a condução do veículo sob o efeito do álcool – no caso uma taxa de 1,48 gr/l.

            Na verdade, na data do acidente, o sinistrado, acompanhado de sua mulher, deslocaram-se a casa de um colega daquele, sita em Espinheira, a fim de confraternizarem num almoço, o qual se prolongou por todo o dia, tendo o sinistrado saído por volta das 19h30m com destino à “E...”, tendo o acidente dos autos ocorrido nesse percurso.

            Nos termos do art. 81º n.º 2 do Código da Estrada, considera-se sob a influência do álcool o condutor que apresenta uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l e, nos termos da al. m) do art. 146º do mesmo diploma constitui contra-ordenação grave a condução sob a influência do álcool.

            No caso em apreço, a embriaguez do sinistrado não se pode considerar independente da vontade do mesmo, uma vez que optou, voluntariamente, pela ingestão de álcool não obstante saber que, nesse mesmo dia, tinha de conduzir o veículo automóvel com destino às instalações da sua entidade patronal.

            A condução sob a influência do álcool nas circunstâncias verificadas, não pode deixar de ser considerada como um comportamento temerário em alto e relevante grau atendendo aos riscos de acidente que envolve, não podendo deixar de se formular, nessa medida, um juízo de negligência grosseira quanto à conduta adoptada pelo sinistrado, o que contribui para a descaracterização do acidente.

            Por outro lado, o facto do sinistrado conduzir com uma taxa de alcoolemia que representava mais do dobro do permitido por lei, constitui, por si só, factor descaracterizador do acidente.

            Os factos descritos pelas Autoras no art. 25º da p.i. reflectem, claramente, que litigam com manifesta má-fé, já que ninguém presenciou o acidente.

            Conclui pela total improcedência da acção, com a consequente absolvição da Ré do pedido, pedindo ainda que a Autora seja condenada como litigante de má-fé.

            Respondeu a Autora A... alegando, em resumo e com interesse, que a Ré não põe em causa a ocorrência do acidente no local e tempo de trabalho, nem a existência de causalidade entre as lesões e a morte do sinistrado. Apenas invoca a descaracterização do acidente como acidente de trabalho, dado o grau de alcoolemia apresentado por aquele.

            Contudo, in casu, a Ré teria sempre de provar o nexo causal entre a taxa de alcoolemia do sinistrado e o acidente, aspecto que o alegado pela Ré, manifestamente desconsidera, já que esta sustenta que basta a suposta prova da taxa de alcoolemia para afastar a sua responsabilidade.

            Conclui que o pedido que formula deve ser julgado procedente.

            Por despacho de fls. 221, a Mmª Juíza considerou não escrita a matéria dos artigos 1º a 13º (praticamente toda) da aludida resposta à contestação.

            Seguidamente foi lavrado despacho saneador do processo, foi fixada a matéria de facto assente e foi organizada a base instrutória.

            Por requerimento de fls. 227 e 228, a Autora requereu a concessão de pensões provisórias, quer a si, quer às suas filhas.

            Por requerimento de fls. 239 apresentado pela Ré, esta deduziu reclamação relativamente à base instrutória.

            A Autora opôs-se à aludida reclamação.

            Por decisão de fls. 252 e 253 foi a Ré condenada no pagamento de pensões provisórias no montante anual de € 8.383,20 à Autora A... e de € 11.177,60 às Autoras B... e D....

            Por decisão de fls. 254 foi indeferida a reclamação deduzida pela Ré relativamente à base instrutória.

            Por despacho de fls. 342 foi indeferido o requerimento de desentranhamento de documento apresentado pela Ré em audiência de julgamento e foi admitida a junção de dois documentos apresentados pela Autora.

            Finda a audiência de discussão e julgamento, a Mmª Juíza respondeu aos quesitos formulados na base instrutória, nos termos de fls. 406 a 409.

            Seguidamente proferiu sentença, na qual se julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados pelas Autoras e condenando estas no pagamento de uma multa no montante de 3 UCs como litigantes de má fé.

            Inconformadas com esta sentença, dela vieram as Autoras interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando alegações, que terminam mediante a formulação das seguintes:

            Conclusões:

            (…)

            Contra-alegou a recorrida, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

            Cumpriu-se o disposto no art. 87º do C.P.T.

            Colhidos os vistos legais, cabe agora apreciar e decidir.

            II – APRECIAÇÃO

            Face às conclusões delimitadoras do recurso interposto (arts. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1, ambos do C.P.C.), suscitam-se, à apreciação deste Tribunal, as seguintes:

            Questões:

٠ Reapreciação de matéria de facto:

٠ Existência ou não de acidente de trabalho;

٠ Descaracterização desse acidente.

(…)

Consideram-se, pois, como não escritos os mencionados quesitos e, consequentemente, as respostas que sobre eles recaíram da parte do Tribunal a quo, mantendo-se aqui, com as ressalvas referidas supra, a restante matéria de facto considerada como assente por aquele Tribunal e que é a seguinte:

1. No dia 21 de Dezembro de 2003, pelas 19h40, quando conduzia um veículo ligeiro de mercadorias ao km 51,933 do IC – 2, em Marés, concelho de Alenquer, no sentido sul/norte, D... foi vítima de um acidente de viação, tendo embatido numa árvore sobre a berma da sua faixa de rodagem, capotando [al. A) da mat. de facto assente];

2. No local do acidente referido em A) a via configura uma recta [al. B) da mat. de facto assente];

3. No momento do acidente o piso estava seco e em razoável estado de conservação [al. C) da mat. de facto assente];

4. À hora do acidente já era noite [al. D) da mat. de facto assente];

5. O veículo conduzido pelo Sinistrado D... foi o único interveniente no acidente referido em A) [al. E) da mat. de facto assente];

6. Aquando do acidente referido em A) o Sinistrado não ia acompanhado [al. F) da mat. de facto assente];

7. Na altura do acidente referido em A), não circulavam, nos dois sentidos de trânsito, quaisquer viaturas [al. G) da mat. de facto assente];

8. O acidente referido em A) traduziu-se num despiste do veículo conduzido pelo Sinistrado (resposta ao quesito 1º);

9. Aquando do acidente referido em A) o Sinistrado conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,48 g/l (resposta ao quesito 6º);

10. No dia 21 de Dezembro de 2003, o Sinistrado esteve na casa de um seu colega, sita na localidade da ….., onde se deslocara para confraternizar num almoço (resposta ao quesito 7º);

11. No dia 21 de Dezembro de 2003 o Sinistrado ingeriu voluntariamente álcool (resposta ao quesito 11º);

12. Sabendo que nesse mesmo dia tinha de conduzir um veículo automóvel com destino às instalações da “E... ” a fim de ali ligar a unidade industrial (resposta ao quesito 12º);

13. O acidente deu-se num local situado entre a casa do colega do Sinistrado e as instalações da “E...” (resposta ao quesito 10º);

14. O Sinistrado trabalhava como electricista, em regime de turnos, sob as ordens, direcção e fiscalização de “E...”, competindo-lhe acudir à manutenção e a eventuais avarias das instalações eléctricas desta empresa [al. I) da mat. de facto assente];

15. O acidente referido em A) ocorreu quando o Sinistrado se deslocava para o seu local de trabalho, sito em … [al. J) da mat. de facto assente];

16. À data do acidente referido em A), o Sinistrado auferia a título de vencimento base a quantia de € 1.996,00 x 14 meses [al. K) da mat. de facto assente];

17. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº AT 21405297 do ramo acidentes de trabalho, a “E...” transferiu para a “Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A.” a responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho ocorridos com o A., pela remuneração referida em K) [al. L) da mat. de facto assente];

18. Do acidente referido em A) resultaram para D... directa e necessariamente as lesões examinadas e descritas no relatório de autópsia junto a fls. 54 e 55, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e que lhe determinaram a morte em 21 de Dezembro de 2003 [al. H) da mat. de facto assente];

19. A... suportou as despesas com o funeral do Sinistrado, tendo havido lugar a transladação [al. M) da mat. de facto assente];

20. Na data referida em A) o Sinistrado D... era casado com A... [al. N) da mat. de facto assente];

21. C... nasceu em 25 de Setembro de 1997, sendo filha de D... e A... [al. O) da mat. de facto assente];

22. B... nasceu em 23 de Maio de 1989, sendo filha de D... e A... [al. P) da mat. de facto assente];

Passando agora à segunda das suscitadas questões de recurso, prende-se a mesma com saber se, in casu, se pode concluir que o acidente que vitimou o sinistrado D... em 21 de Dezembro de 2003 se trata de um acidente de trabalho.

A sentença recorrida pronunciou-se em sentido negativo, com fundamento na não verificação dos pressupostos legais de caracterização de um tal acidente como acidente de trabalho, extraindo daí, como consequência, a total improcedência da acção e absolvição da Ré/Apelada do pedido formulado pelas Autoras/Apelantes.

Por seu turno, estas entendem que, no caso em apreço, nem sequer se discute entre as partes a qualificação do acidente dos autos como acidente de trabalho mas apenas a descaracterização do mesmo.

Vejamos, antes de mais, se assim é.

Estabelece o art. 112º n.º 1 do Cod. Proc. Trabalho que «Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída».

Esta norma corresponde, na prática, ao art. 114º n.º 1 do anterior Código do Processo do Trabalho aprovado pelo Dec. Lei n.º 272-A/81 de 30-09 e, a respeito deste, escreveu Alberto Leite Ferreira que «... o art. 114º do Código, ao exigir que do auto de não conciliação conste se as partes estiveram ou não de acordo acerca da existência e caracterização do acidente ... e da relação de causalidade só pode ter querido referir-se aos factos que definem  a existência e caracterização do acidente ... e o nexo causal entre o evento e a lesão.

Perante os factos constantes da participação pode a entidade responsável tomar uma de duas atitudes:

- não os considera (todos ou alguns) como exactos, porque não se teriam passado como o participante os apresenta;

- considera-os como exactos, mas entende que não autorizam a tutela jurídica pretendida.

No primeiro caso a parte discordante apresentará a sua versão; no segundo, dirá porque razões não podem os factos alegados produzir o efeito jurídico pretendido.

Em qualquer das hipóteses o acordo ou desacordo incide sobre factos.

Dizer se, num e noutro caso, esses factos integram e caracterizam ou não um acidente de trabalho ... é já um problema de qualificação jurídica que apenas ao julgador compete resolver. Da mihi factum, dabo tibi jus.

Conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são actividades que transcendem a vontade das partes.

Por isso, o que da tentativa de não conciliação deve constar não é o acordo ou o desacordo das partes acerca da existência e caracterização do acidente ... ou acerca do nexo de causalidade – que são conceitos jurídicos – mas, sim, o acordo ou desacordo acerca dos elementos de facto que definem e caracterizam o acidente ... e o nexo causal.

São estes os elementos de facto que, no caso de acordo, o juiz deve levar à especificação nos termos do art. 134º para depois os tomar em consideração na sentença final».

Ora, no caso vertente, o que se verifica do auto de não conciliação de fls. 73 a 78 é que a responsável seguradora e ora Apelada apenas se pronunciou expressamente, aceitando, a existência de um contrato de seguro entre si e a “E...”[1], bem como o salário de € 1.996,00 X 14 meses, auferido pelo sinistrado, a título de vencimento base.

Do referido auto de não conciliação nada consta quanto a acordo das partes no tocante aos factos susceptíveis de levarem à conclusão jurídica de se estar perante um acidente de trabalho aquele de que foi vítima o sinistrado D... em 21 de Dezembro de 2003. Aliás, ainda que, legalmente, o não pudessem fazer, face ao disposto no aludido art. 112º n.º 1 do Cod. Proc. Trabalho e pelas razões aduzidas por Alberto Leite Ferreira[2], que continuam pertinentes e com as quais concordamos, o que é certo é que, contrariamente ao que deixa subentender a Apelante nas suas alegações de recurso, do referido auto de não conciliação nada consta relativamente a um acordo das partes sobre a caracterização do referido acidente como acidente de trabalho. Sobre isso a responsável seguradora não se pronunciou, limitando-se a deixar consignadas nesse auto as razões pelas quais declinava a sua responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente sofrido pelo sinistrado.

Deste modo, não estava a Mmª Juiz do Tribunal a quo impedida – impondo-se mesmo que o fizesse face à controvérsia atinente ao local donde provinha o sinistrado quando se dirigia para o seu local de trabalho – de levar à discussão da causa em audiência de julgamento (através da base instrutória oportunamente elaborada nos autos), matéria de facto susceptível de, uma vez provada, permitir que se extraísse a conclusão de se estar perante um efectivo acidente de trabalho, nos termos em que este surge legalmente definido pelo art. 6º da Lei de Acidentes de Trabalho n.º 100/97 de 13-09 e art. 6º do respectivo Regulamento, ou seja, do Dec. Lei n.º 143/99 de 30-04. Foi o que fez a Srª Juiz, razão pela qual nada há a censurar quanto a esse aspecto.

Importa, pois, apreciar se, perante a matéria de facto provada, se pode ou não concluir, ou melhor, caracterizar o acidente que vitimou, mortalmente, o sinistrado D... em 21 de Dezembro de 2003 como um acidente de trabalho, susceptível, portanto, de conferir às aqui Autoras/Apelantes o direito de reparação que reclamam através dos presentes autos.

Ora, depois de no n.º 1 do art. 6º da referida LAT se definir acidente de trabalho como «aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte», estipula-se no n.º 2 al. a) do mesmo preceito que «Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: a) No trajecto de ida e de regresso para o local de trabalho, nos termos em que vier a ser definido em regulamentação posterior».

De acordo com esta determinação legal, estipulou-se, posteriormente, no art. 6º n.º 2 do Regulamento da mencionada LAT que «Na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º da lei estão compreendidos os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:

 a)Entre a sua residência habitual ou ocasional, desde a porta de acesso para as áreas comuns do edifício ou para a via pública, até às instalações que constituem o seu local de trabalho;

b) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e os mencionados nas alíneas a) e b) do n.º 4[3];

c) Entre o local de trabalho e o local da refeição;

d) Entre o local onde por determinação da entidade empregadora presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual».

No caso em apreço, o que se provou foi que no dia 21 de Dezembro de 2003, pelas 19h40, quando conduzia um veículo ligeiro de mercadorias ao km 51,933 do IC-2, em Marés, Concelho de Alenquer, no sentido sul/norte, o D... foi vítima de um acidente de viação, despistando-se e tendo embatido numa árvore sobre a berma da sua faixa de rodagem, capotando, resultando para ele, directa e necessariamente, as lesões examinadas e descritas no relatório de autópsia junto a fls. 54 e 55, as quais determinaram a sua morte ocorrida nesse dia 21 de Dezembro de 2003.

Provou-se também que o sinistrado trabalhava como electricista, em regime de turnos, sob as ordens, direcção e fiscalização de “E... .”, competindo-lhe acudir à manutenção e a eventuais avarias das instalações eléctricas dessa empresa e que o mencionado acidente ocorreu quando o sinistrado se deslocava para o seu local de trabalho.

Finalmente e com interesse para a apreciação desta questão, provou-se que, nesse dia 21 de Dezembro de 2003, o sinistrado esteve na casa de um seu colega, sita na localidade de …., onde se deslocara para confraternizar num almoço e que o aludido acidente se deu num local situado entre a casa do colega do sinistrado e as instalações da “E...”.

Ora, competindo às Autoras/Apelantes o ónus de demonstração dos factos constitutivos do direito por elas invocado na presente acção – art. 342º n.º 1 do Cod. Civil – o que é certo é que, perante esta matéria de facto provada, não poderemos concluir que o acidente que vitimou, mortalmente, o sinistrado D... no mencionado dia 21 de Dezembro de 2003, se trate de um dos acidentes de trajecto ou de percurso previstos nos mencionados normativos legais e como tal se deva caracterizar como um acidente de trabalho merecedor de tutela à luz da referida LAT e respectivo Regulamento.

Na verdade, não basta que se tenha demonstrado que o mesmo, no momento do sinistro, circulava para o seu local de trabalho. Era necessário que as Autoras tivessem demonstrado que o fazia a partir de qualquer dos locais referidos nos mencionados dispositivos legais, designadamente e como foi alegado mas não demonstrado, a partir da sua residência sita em …..

É certo que as Apelantes invocam em seu favor o disposto no n.º 3 do referido art. 6º do Regulamento da LAT (Dec. Lei n.º 143/99 de 30-04) e que estabelece que «Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito». Sucede, porém, que, da matéria de facto assente, nada resulta demonstrado em termos de podermos concluir que, no momento do acidente, o sinistrado efectuava um qualquer desvio ao trajecto normal da sua residência para o seu local de trabalho e muito menos que o mesmo havia sido determinado por qualquer sua necessidade atendível.

Deste modo e tal como se verificou na sentença recorrida, também nós não podemos aqui concluir que o acidente que vitimou o sinistrado D... no dia 21 de Dezembro de 2003 se trata de um acidente de trabalho com danos merecedores da tutela do direito à luz da referida Lei de Acidentes de Trabalho, circunstância esta que prejudica a apreciação da última das suscitadas questões de recurso.

Não merece, por isso, censura a sentença recorrida.

III – DECISÃO

Termos em que se acorda em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo das Apelantes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam.

Registe e notifique.

                                                                      Lisboa, 2008/01/16

José Feteira

Ramalho Pinto

Duro Mateus Cardoso

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[1] Entidade patronal do sinistrado
[2] Código de Processo do Trabalho Anotado – 4ª Edição pagª 527
[3] Local de pagamento da retribuição e local onde ao trabalhador deva ser prestada assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente