Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5636/2005-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: ARRESTO
NOTIFICAÇÃO À PARTE
ESTADO ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Consistindo o arresto numa apreensão judicial de bens que se rege pelas normas relativas à penhora (art. 406º nº 2 do CPC), em tudo o que não contrariar as disposições próprias relativas ao procedimento cautelar, o arresto de um crédito é efectuado nos termos previstos no art. 856º do CPC.
Apesar do devedor do crédito cujo arresto foi requerido ter a sua sede num outro Estado Membro da EU, não estava a Mª Juiz impedida de ordenar a respectiva notificação nos termos e para os efeitos do art. 856º do CPC, face ao regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho de 29/%/2000 (publicado no Jornal Oficial de 30/672000) relativo à citação e notificação dos actos judiciais e extra-judiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros.
E ainda que o devedor, devidamente notificado, não proceda ao depósito nos termos do art. 860º nº 1 do CPC, o facto de ter a sua sede em França não significa que não lhe possa ser movida a execução a que se refere o nº 3 do mesmo preceito, uma vez que de acordo com o art. 26º da Convenção de Bruxelas de 27/9/68, tal como a Convenção de Lugano de 16/9/88, ambas relativas à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, em vigor entre nós desde 1//92, “as decisões proferidas num Estado Contratante são reconhecidas nos outros Estados Contratantes, sem necessidade de recurso a qualquer processo…”
Decisão Texto Integral:    Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

           (P) requereu no Tribunal do Trabalho das Caldas da Rainha contra “PASTORET – Indústria de Cerâmica, Ldª”, com sede nas Caldas da Rainha, o arresto preventivo de um crédito da requerida sobre a empresa “GIFI”, com sede em Zi La Barbiere, BP 79, Villeneuve sur Lot, Cedex 47301, France, no valor aproximado de € 250 000, relativo ao pagamento de mercadorias vendidas em Janeiro, sendo a venda efectuada a 60 dias, factos de que o requerente tem conhecimento por a encomenda ter sido feita quando ainda trabalhava para a requerida.
Para fundamentar a sua pretensão alega ter trabalhado sob as ordens, direcção e fiscalização da requerida desde 1 de Novembro de 2003 até Dezembro de 2004, tendo rescindido o contrato por mútuo acordo.
Para pagamento das férias relativas  ao ano de cessação do contrato e respectivo subsídio o sócio gerente da requerida emitiu a favor do requerente dois cheques sobre a Caixa Geral de Depósitos no montante de € 3243,5  cada um, com datas de 30/1/2005 e 28/2/2005.
   Apresentados a pagamento respectivamente em 25/1/2005 e 4/2/2005, foram ambos devolvidos com fundamento no facto de a conta se encontrar bloqueada.
Apesar das diversas tentativas do requerente, a requerida ainda não pagou aquelas quantias, pelo que o requerente é credor das mesmas e dos juros de mora, à taxa legal, liquidando em €14,93 os vencidos, bem como de € 7,8 debitados pelo banco como despesas de devolução, vendo-se na necessidade de obter o respectivo pagamento coercivo.
Receia o requerente que, instaurando a execução, não consiga obter a cobrança do crédito, devido à precária situação económica em que a requerida se encontra (em sério risco de insolvência), receio que fica demonstrado pelo facto de a requerida não ter pago o subsídio de Natal nem os vencimentos de Janeiro aos respectivos trabalhadores, a respectiva dívida à Segurança Social ascender a um milhão de euros, o que originou a penhora dos bens da empresa, tendo ainda dívidas de elevadas quantias a diversos fornecedores, como por exemplo a “Pastceram – Pasta de Cerâmica, S.A.” e de nada mais se poder socorrer, em termos de património da requerida.
A Srª Juíza indeferiu liminarmente a providência nos seguintes termos: (P) requer o arresto de um crédito localizado em França.
Os poderes do Estado, entre os quais se integra o poder judicial, têm como limite o seu próprio território.
Assim, tendo embora o Estado Português e este Tribunal em particular, competência para conhecer da providência, tal competência está limitada ao território português. Na verdade, não há como impor a força pública pressuposta pela decisão a tomar por este tribunal fora dos limites daquele território.
Significa isto que o Estado Português carece de jurisdição fora dos limites das suas fronteiras.
Logo, não pode ordenar providências de carácter executivo, cuja força não pode impor.
Assim, por falta de jurisdição sobre o território francês, este Tribunal está impedido de conhecer do pedido.
Razão pela qual indefiro liminarmente a petição inicial.”
Inconformado, agravou o requerente, que formula nas respectivas alegações as seguintes conclusões:
“1. O recurso incide sobre a sentença que indeferiu liminarmente o requerimento inicial com vista ao arresto de um crédito.
2. A sentença não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão, registando-se a ausência de indicação da fonte normativa que sustenta o conteúdo da mesma.
3. A sentença assente no princípio de que as decisões judiciais dos tribunais portugueses são destituídas de força executória em país estrangeiro, sem invocar as normas que sustentam a decisão, ou que fundamentam a existência do alegado princípio que envolve;
4. A sentença ao indeferir liminarmente o requerimento inicial impede a prossecução da acção principal, e consequentemente que haja uma decisão no sentido de se proceder à execução do respectivo direito, não permitindo desse modo que a decisão obtenha força executiva, por forma a obter um efeito perante um devedor que se encontra noutro país da EU;
5. Assim, a decisão impede a obtenção de um efeito possível de decisão, com o fundamento incorrecto de que tal decisão nunca poderia obter esse efeito; Mas o mesmo só passa a estar impedido com a respectiva decisão, que, por isso, deve ser alterada;
6. A sentença assenta em fundamentos contrários aos artigos 26° e 31° da Primeira Convenção de Bruxelas, que estabelecem o reconhecimento automático das decisões dos tribunais de um dos Estados-Membros nos outros Estados-Membros, e a força de uma decisão executória num outro Estado-Membro da EU diferente daquele que proferiu a decisão, após o Exequatur, respectivamente;
7. A decisão é ainda contrária ao Regulamento (CE) n.° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004, que institui o título Executivo Europeu permitindo a atribuição de força executória imediata de um título executivo em qualquer Estado-Membro da EU;
8. Ambas as fontes gozam de aplicabilidade directa de acordo com o art. 8° Constituição da República Portuguesa;
9. O presente arresto pretende obter a antecipação do efeito executivo da acção executiva que há-de ser intentada;
10. Pelo arresto pretende-se a execução de um direito de crédito que o executado é titular perante um devedor com domicílio em França;
11. O crédito refere-se ao fornecimento de mercadorias adquiridas em Caldas da Rainha, Portugal, devendo ser liquidado nesta localidade;
12. Com o arresto pretende-se a notificação do devedor para que efectue o pagamento à ordem do agente de execução nos termos do art. 856°, do C.P Civil,
13. O crédito não está sedeado no estrangeiro, o devedor é que tem domicílio em França, país da EU;
14. Nos termos das regras de cooperação judiciária em matéria civil e comercial aprovados pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000 e publicados no Jornal C 12, de 15.01.2001, determina-se a cooperação entre os países da EU;
15. A decisão de indeferimento do requerimento inicial colide com as normas referidas e o princípio enunciado;
16. Razão pela qual se requer que a decisão do tribunal a quo seja revogada e que a respectiva providência cautelar prossiga, mais se requer decisão urgente para assegurar o efeito útil da decisão nele contida, atendendo a que o respectivo crédito que se pretende arrestar vence dentro de poucos dias, havendo o risco de ser efectuado o pagamento antes do arresto ser decretado, o que tornaria o mesmo absolutamente inócuo;
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, com todas as demais consequências legais e assim se fará a costumada JUSTIÇA.”
A Srª Juíza sustentou tabelarmente o seu despacho.
Subidos os autos a este Tribunal, foi emitido pelo M.P. o parecer de fls.37 vº, no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Foram dispensados os vistos dos Exºs Adjuntos.
Nada obsta ao conhecimento do recurso que tem por objecto a reapreciação da decisão de indeferimento liminar do arresto.
           
Cumpre apreciar e decidir
Se bem que nas primeiras conclusões o agravante impute à decisão falta de fundamentação jurídica, porque não arguiu expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso a correspondente nulidade (art. 668º nº 1 al. b) CPC), conforme preconizado pelo art. 77º nº 1 do CPT, de acordo com a orientação dominante na jurisprudência, não haveria que conhecer da questão.
Todavia, sempre se dirá que apenas ocorre tal nulidade quando a falta de fundamentação é total e absoluta e não quando, como é o caso, é sintética e sumária. Não se verifica, pois tal nulidade.
A Srª Juíza considerou que, sendo requerido o arresto de um crédito localizado em França, porque a decisão a tomar pressupunha a imposição da força pública que o Tribunal, órgão do Estado Português, só pode exercer dentro dos limites do território nacional, carecia de jurisdição sobre o território francês, o que a impedia de conhecer  do pedido.
O agravante põe desde logo em causa que o crédito cujo arresto requereu – relativo ao pagamento do preço de mercadorias vendidas nas Caldas da Rainha – esteja localizado em França, alegando que se localiza em Portugal, porquanto, tratando-se de obrigação de pagamento de mercadorias compradas nas Caldas da Rainha, tem por objecto uma quantia certa, devendo, nos termos do art. 774º do CC, ser executada no domicílio do credor.
Afigura-se-nos que lhe assiste razão, embora não por força do preceituado no art. 774º do CC, mas antes do disposto pelo art. 885º nº 2 do mesmo código, nos termos do qual o lugar do pagamento do preço, na compra e venda quando, por estipulação das partes ou por força dos usos, não o tiver sido no momento da entrega, será a residência do credor ao tempo do cumprimento, ou seja, no caso, a sede da requerida, nas Caldas da Rainha.
Assim, contrariamente ao afirmado no despacho recorrido, não vem requerido o arresto de um crédito localizado em França, mas de um crédito localizado em Portugal, embora o devedor seja uma sociedade com sede em França.
Consistindo o arresto numa apreensão judicial de bens que se rege pelas normas relativas à  penhora (cfr. art. 406º nº 2 do CPC), em tudo o que não contrariar as disposições próprias relativas a tal procedimento cautelar, é efectuado nos termos previstos no art. 856º do CPC, isto é, por notificação ao devedor, com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução, cumprindo-lhe (ao devedor), declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução. Não podendo ser feitas no acto da notificação, serão tais declarações prestadas por meio de termo ou simples requerimento no prazo de dez dias, prorrogável com fundamento justificado, entendendo-se, se nada disser, que reconhece a existência da obrigação nos termos da indicação do crédito à penhora.
Logo que a dívida se vença, o devedor que não haja contestado é obrigado a depositar a respectiva importância em instituição de crédito à ordem do solicitador de execução, ou na sua falta, da secretaria e a apresentar no processo o documento de depósito (art. 860º nº 1). Não sendo cumprida a obrigação pode o exequente exigir a prestação, servindo de título executivo a declaração de reconhecimento do devedor, a notificação efectuada e a falta de declaração (art. 860º nº 3).
Se é certo que a jurisdição dos tribunais portugueses é exercida dentro dos limites territoriais do Estado Português, importa, todavia, ter em atenção também os instrumentos comunitários relativos a cooperação judiciária em matéria civil, aplicáveis na ordem interna por força do disposto no art. 8º da Constituição.
Como se pode ler no site http://europa.eu.int/comm/justice... “Em 1999, com o Tratado de Amesterdão, a cooperação judiciária em matéria civil passou a ser da competência comunitária, o que permitiu, por um lado, a utilização de métodos de trabalho comunitários neste domínio e, por outro, que os textos adoptados segundo estes métodos se tornem instrumentos jurídicos comunitários (regulamentos, directivas e decisões).
… Com vista a criar as bases concretas dos objectivos de Maastricht e de Amesterdão, os Chefes de Estado e de Governo reuniram-se em Tampere, na Finlândia, em Outubro de 1999. Nessa ocasião, afirmaram que «Num verdadeiro espaço europeu de justiça, os cidadãos e as empresas não deverão ser impedidos ou desencorajados de exercerem os seus direitos por razões de incompatibilidade ou complexidade dos sistemas jurídicos dos Estados-Membros».
Confirmaram também o seu empenho em criar um verdadeiro espaço de justiça «onde as pessoas possam recorrer aos tribunais e às autoridades de qualquer Estado-Membro tão facilmente como o fariam no seu próprio país».
No Conselho Europeu de Bruxelas de 4 e 5 de Novembro de 2004, os Chefes de Estado e de Governo adoptaram o Programa de Haia visando reforçar a justiça no espaço comunitário. Nesta ocasião foi constatado que «um determinado número de medidas foram já concretizadas» mas que «esforços suplementares deveriam ser feitos por forma a facilitar o acesso à justiça e à cooperação judiciária, assim como a utilização plena do reconhecimento mútuo»”
Entre as medidas já concretizadas conta-se  o Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho de 29/5/2000 (publicado no Jornal Oficial de 30/6/2000) relativo à citação e notificação dos actos judiciais e extra-judiciais em matérias civil e comercial nos Estados-Membros. Este regulamento, em vigor desde 31/5/2001 - cuja matéria se insere no âmbito do art. 65º do Tratado -  considerando, além do mais, o objectivo da União de manter e desenvolver um espaço de liberdade, de segurança e de justiça e considerando que a eficácia e celeridade dos processos judiciais no domínio civil implica a transmissão dos actos judiciais e extrajudiciais seja efectuada directamente e através de meios rápidos entre as entidades locais designadas pelos Estados-Membros, acompanhado de um formulário preenchido na língua do local onde a citação ou notificação tem lugar, dispõe no sentido de agilizar esses procedimentos.  
Portanto, atento este Regulamento Comunitário, apesar de o devedor do crédito cuja arresto foi requerido ter a sua sede num outro Estado-Membro de UE, não estava a Srª Juíza impedida de ordenar a respectiva notificação nos termos e para os efeitos do disposto pelo art. 856º do CPC, aplicável ex-vi do art. 406º nº 2 (caso considerasse verificados os pressupostos do arresto definidos no nº 1), ambos do CPC, devendo a notificação ser executada em conformidade com o ali definido.
E ainda que porventura o devedor, devidamente notificado, não proceda ao depósito nos termos referidos no art. 860º nº 1, o facto de ter a sua sede em França não significa que não lhe possa ser movida a execução a que se refere o art. 860º nº 3 do CPC, uma vez que, de acordo com  o art. 26º da Convenção de Bruxelas de 27/9/68[1], tal como a Convenção de Lugano de 16/9/88, ambas  Relativas à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, em vigor entre nós desde  1/7/92 (Dec. Presidente da República nºs 52/91 e 51/91 de 30/10) “As decisões proferidas num Estado Contratante são reconhecidas nos outros Estados Contratantes, sem necessidade de recurso a qualquer processo …” sendo que, nos termos do art. 25º “Para efeitos da presente Convenção, considera-se «decisão» qualquer decisão proferida por um tribunal de um Estado Contratante, independentemente da designação que lhe for dada, tal como acórdão, sentença, despacho judicial ou mandado de execução, bem como a fixação pelo secretário do tribunal do montante das custas do processo”.
No mesmo sentido dispõem os art. 33º e 32º do Regulamento (CE) nº 44/2000, do Conselho, de 22/12/2000, cujo art. 38º nº 1 dispõe “As decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer interessado”.
Refere ainda o agravante o Regulamento (CE) nº 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21/4/2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados, mas, salvo o devido respeito, não dispõem os autos de elementos que permitam considerar que esteja em causa um “crédito não contestado” tal como definido no art. 3º do dito Regulamento.
Em todo o caso, o que ficou exposto afigura-se-nos suficiente para concluir que o agravante tem razão e que a decisão recorrida não pode merecer acolhimento, havendo por conseguinte que a revogar a fim de que, depois de produzida a prova oferecida, seja conhecido o pedido, uma vez que, os instrumentos comunitários referidos permitem efectuar a notificação do devedor em França, directamente, através de meios rápidos e, se necessário, a execução deste, no respectivo país, nos termos do art. 860º nº 3 do CPC, desde que ali seja obtido o exequatur.

Decisão
Pelo exposto se acorda em dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando que, após a produção da prova oferecida, seja conhecido o pedido formulado.
Sem custas.
   Lisboa, 13 de Julho de   2005                
       Maria João da Graça Romba
      Maria Paula Sá Fernandes
     José Féteira
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[1] Com as alterações introduzidas nas três Convenções de Adesão, de 9/10/78, 25/10/82 e 26/5/89., publicada no J.O de 28/7/90.