Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3831/15.3T8LSB.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
USO ANORMAL DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe os nºs 1 e 2 do artigo 33º do C.P.C., quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

2.Para uma concepção mais ampla, o efeito útil normal afere-se pela insusceptibilidade de contradição lógica, teórica ou técnica de julgados. Ao invés, para uma concepção mais restrita, o efeito útil afere-se pela insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão.

3.O nº 2 do artigo 33º do nCPC (tal como sucedia com o art.º 28.º do aCPC) adopta pela noção mais restrita de efeito útil normal, já que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas.

4.Incumbe ao juiz, ao abrigo do disposto nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, a prolação de despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento de um pressuposto processual susceptível de sanação, como é a excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados.

5.O uso anormal do processo previsto do artigo 612º do CPC, quer na vertente de simulação processual, quer na vertente fraude processual, pressupõe o conluio entre as partes, com alegação de uma versão fáctica não correspondente à realidade, com o fim de enganar ou prejudicar terceiros.

6.O julgador só deve absolver os réus da instância, por ser inadmissível a pronúncia de uma decisão de mérito, devido ao uso anormal do processo, caso seja evidente que as partes pretendem atingir uma finalidade diversa da função processual.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–RELATÓRIO:

ALEXANDRA ......., residente na Rua …….., e RENATO ......., residente na ….., intentaram, em 06.02.2015, contra  HOLDINGS, LIMITED, com sede em Gibraltar e  SIMÕES ....E MARIA ......, residentes na ….., acção declarativa, com processo comum, através da qual pedem a condenação dos réus a:
a)- reconhecer que a fracção autónoma identificada pela letra "O", a que corresponde o sexto andar esquerdo do prédio urbano, sito na ……, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 1826 e inscrito na matriz sob o art. 1826,; o prédio urbano sito em Gois, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gois sob o nº 4241 e inscrito na matriz sob os arts. 2223 e 3258 e o prédio urbano sito em Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº 2889 e descrito na matriz sob o nº 2723, são efectiva e exclusiva propriedade dos AA., sendo declarado que os AA. adquiriram os mesmos prédios por usucapião;
subsidiariamente,
b)- ser declarada a nulidade das transmissões dos mesmos fracção autónoma e prédios, efectuadas entre os RR por via de simulação, regressando, em consequência, os mesmos imoveis ao património dos RR., pais dos AA.

Fundamentaram os autores esta sua pretensão, na forma seguinte:
1.–Os RR.  SIMÕES ....e MARIA ......, casados no regime da comunhão geral de bens, eram donos e legítimos proprietários dos seguintes prédios urbanos:
a)-fracção autónoma identificada pela letra "O" a que corresponde o sexto andar esquerdo do prédio urbano sito …., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 1826 e inscrito na matriz sob o art. 1826;
b)-prédio urbano sito em Gois, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gois sob o nº 4241 e inscrito na matriz sob os arts. 2223 e 3258;
c)-prédio urbano sito em Torres Vedras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras sob o nº 2889 e descrito na matriz sob o nº 2723.
2.–Em 1993, através de doação verbal, não titulada, os mencionados RR.  SIMÕES ....e mulher, transmitiram a posse dos referidos prédios para os AA., seus filhos, que, a partir dessa data, passaram a ter efectivos possuidores de tais prédios.
3.–Desde essa referida data que os AA., de forma pública e pacífica, ininterruptamente, á vista de todos, passaram a actuar como efectivos proprietários dos referidos prédios, procedendo á sua exploração e utilização, suportando os encargos dele decorrentes, fazendo obras de conservação, retirando os inerentes dividendos.
4.–Praticando todos aqueles actos como sendo proprietários de tais prédios, na convicção, firme convicção, de que actuavam nessa qualidade, de proprietários.
5.–Sendo, por todos, reconhecidos como efectivos e exclusivos proprietários dos mesmos imóveis.
6.–Com efeito, na fracção autónoma sita em Lisboa, desde 1993, os AA. permitiram que os seus referidos Pais, ora RR. Simões e mulher, permanecessem a habitar os mesmos, por mera tolerância, em termos de comodato, reconhecendo e aceitando os referidos RR. Pais dos AA. que a fracção é propriedade dos mesmos.
7.–O que aconteceu em atenção ao facto de estes não terem qualquer outro local para habitar e dada a relação familiar existente.
8.–Sendo, porém, os AA. quem suporta os encargos com a fracção, dispondo da mesma daquela forma.
9.–Quanto ao prédio sito em Gois, o mesmo é ocupado pelos AA. que utilizam o mesmo em férias, viabilizando, a titulo precário, que terceiras pessoas ali permaneçam durante pequenos períodos em lazer e férias dos mesmos, a título gratuito.
10.–A manutenção, utilização e disponibilidade do mesmo é, igualmente desde a indicada data de 1993, exclusivamente efectuada pelos AA.
11.–Que igualmente são reconhecidos como seus exclusivos proprietários, comportando-se como tal e na convicção de que o são.
12.–No prédio sito em Santa Cruz, igualmente desde 1993 que os AA. passaram a explorar uma unidade hoteleira ali existente, por sua conta e risco, com exclusão de outrem, assumindo os encargos, inclusive com pessoal do estabelecimento de hotelaria e demais inerentes á exploração daquela unidade e recebendo os AA. os proventos decorrentes de tal exploração.
13.–Tendo, quando da doação aos AA., o seu outro irmão, de seu nome Francisco .....recebido, por sua própria opção, uma compensação em dinheiro, entregue pelos RR. Pais dos AA. de forma faseada, mas no total de escudos 40.000$00, por não figurar junto dos seus dois outros irmãos como proprietário dos prédios supra descritos.
14.–Aceitando o mesmo irmão, igualmente, os AA. como donos e legítimos proprietários dos prédios objecto dos presentes autos desde 1993.
15.–Nunca tendo os AA. exigido a formalização da doação aos RR. seus Pais dada a absoluta e completa confiança que sempre neles tiveram.
16.–Até que, por motivos de necessidade de inscrição predial para efeitos fiscais, por forma a poderem efectuar a dedução do seu IRS de despesas por si suportadas com os imóveis, os AA. solicitaram ao R. seu Pai que fosse a doação formalizada por via do competente documento particular ou escritura pública.
17.–E verificaram, então, quando pediram as competentes certidões para instruir a escritura pública, em Janeiro do corrente ano de 2015, que os RR. seus Pais, em nome de quem julgaram estar registados os imóveis supra descritos, haviam vendido os mesmos á R. sociedade em 1999 e 2000, tal como decorre das competentes descrições prediais e inscrições matriciais que se juntam como Docs. nºs 1 a 4.
18.–Algo que desconheciam em absoluto, desde logo porque os pagamentos da contribuições e impostos eram efectuadas pelo seu Pai, ora R. Simões, a quem os AA. procediam á entrega dos valores necessários a fazer face a tais despesas.
19.–Procedendo o R. Pai dos AA. ao pagamento em nome da R. sociedade, o que os AA., reitere-se, desconheciam.
20.–Confrontado com a situação, veio o R., pai dos AA. a, inovadoramente, relatar aos AA. que, sem os consultar, a conselho de um amigo, havia vendido, de forma fictícia, á sociedade R., os prédios objecto dos presentes autos, sem que tivesse intenção efectiva de o fazer, sem haver recebida da mesma os preços declarados nas escrituras de venda.
21.–Sendo, para mais, a R. sociedade detida pelo próprio R. Pai dos AA.
22.–O qual tinha como exclusiva intenção, ao realizar tal venda, fazer transitar registralmente os prédios para a sociedade, procedendo á entrega das acções dessa sociedade aos AA.
23.–Nunca tendo os Pais dos RR. intenção de vender os prédios objecto dos presentes autos á sociedade R., nem esta tinha intenção de os adquirir, como efectivamente não o fez.
24.–Visando o R. pai dos AA, com aquela venda única e exclusivamente obviar a que, em caso de morte, fossem os AA seus filhos, tributados em imposto sucessório, o qual veio a ser extinto em 2003.
25.–E, simultaneamente, a obviar que o irmão dos AA fosse igualmente irmão, em face do pagamento que lhe já havia sido efectuado.
26.–Tal porque os RR pais dos AA se haviam zangado com o mencionado irmão dos AA, tendo cortado relações com ele.
27.–Tratou-se, assim, de uma venda simulada, tendo os RR. Pais dos AA., por si e enquanto legais representantes e detentores da totalidade do capital da sociedade R., acordaram fazer com o exclusivo intuito de obstar ao pagamento do imposto sucessório e á intervenção do irmão dos AA. como herdeiro caso os mesmos falecessem.
28.–Sem, reitere-se, que os RR. Pais dos AA. tivessem intenção de vender ou por qualquer forma alienar os prédios e a sociedade R. intenção de comprar ou por qualquer forma de os adquirir, nunca tendo sido pago o preço declarado nas mesmas escrituras.
29.–Situação que foi realizada com absoluto desconhecimento dos AA.
30.–Os quais, não obstante, se encontravam na posse dos mesmos imóveis, desde 1993, sem que a mesma tivesse sido contestada.
31.–Facto é que, atenta a natureza da sociedade R., o R. Pai dos AA. teria de proceder a um pagamento anual para manutenção de gestão da mesma, o que não fez.
32.–O que determinou que a sociedade tivesse sido cancelada, deixando de operar, no centro de registo offshore de Gibraltar - local onde a mesma foi constituída.
33.–Tornando-se impossível proceder á anulação da venda efectuada a favor da sociedade R. por via notarial ou contratual.
34.–Por outras palavras, tornou-se inviável anular algo que, de génese, é nulo.
35.–Pois que, de facto, tendo as vendas efectuadas pelos RR., Pai dos AA., á sociedade R. sido simuladas, na acepção do art. 240º do Cod. Civil, as mesmas são nulas.
36.–O que, porém, não prejudica, ou sequer belisca, a aquisição originaria decorrente da posse pelos AA., na forma descrita, há mais de 20 anos, relativamente aos prédios supra identificados.
37.–Com efeito, os AA. sempre se comportaram como efectivos proprietários dos mesmos prédios, o que sempre foi reconhecido por todos e nunca contestado por ninguém, reconhecimento que abrange, inclusivamente os seus familiares directos.
38.–E sempre o fizeram na firma convicção de que eram seus efectivos e exclusivos proprietários.
39.–Posse essa exercida de forma ininterrupta e continuada, dispondo dos prédios como bem entenderam e entendem, procedendo as obras de conservação e reparação que os mesmos necessitam, suportando os custos inerentes, suportando os encargos fiscais e os consumos deles decorrentes, determinando a utilização que aos mesmos sempre foi dada, determinando quem podia utilizar e usufruir dos mesmos, retirando daí os devidos dividendos e benefícios.
40.–Desde 1993.
41.–Posse essa exercida pelos AA. de boa-fé.
42.–Na firme convicção de que sempre foram, desde 1993, únicos, exclusivos e efectivos proprietários dos prédios.
43.–(…)
44.–(…)
45.–(…)
46.–Tanto mais que sempre os próprios RR. afirmaram pública e peremptoriamente que os prédios objecto dos autos eram propriedade plena dos AA.
47.–Sempre sendo os AA. as únicas pessoas que dispunham do acesso, por si ou a quem facultasse, aos prédios dos autos.
48.–Fazendo-o conscientes de serem seus proprietários, sem reclamação de terceiros e cientes que não ofendiam direito de terceiro.

Citados os réus, sendo a ré  HOLDINGS, LIMITED, atenta a sua extinção, citada na pessoa do 1º réu, seu sócio, não tendo estes apresentado contestação.

Por despacho de 03.05.2016, proferido pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Local Cível de Lisboa (Tribunal onde foi proposta a acção) e, após audição das partes, foi declarada a incompetência relativa em razão do território, pelo que foram os autos remetidos à Secção de Competência Cível do Torres Vedras do Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, por ser o competente.

Neste Tribunal foi proferido despacho, de 02.06.2016, no qual se fixou o valor da causa em € 945.590,00, após o que se declarou a incompetência do Tribunal para conhecer da acção, determinando-se a remessa do processo para a secção cível da Instância Central de Loures do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.

Neste Tribunal foi proferido, em 13.09.2016, o seguinte Despacho:
“Atento o teor da p. i. e o facto de a ação não ter sido contestada, notifique os autores para esclarecerem o seguinte:
- existe na realidade algum litígio com os réus, ou os mesmos estão de acordo com o que se alega na p. i., tendo, nomeadamente, dado o seu acordo à instauração da ação?
- a ausência do irmão dos autores, expressamente referido na p. i., nesta ação foi propositada ou simplesmente nem sequer consideraram que a sua presença pudesse ser necessária?
- das certidões prediais relativas aos prédios em causa nos autos resulta que se encontram registados, relativamente a dois deles, penhora e hipoteca. Os autores consideram que a presença nesta ação dos titulares desses direitos não é necessária?”

Os autores responderam, por requerimento de 15.09.2016, nos seguintes termos:
1.–Quanto á posição dos RR. relativamente á propositura da acção (referindo-se aos RR.  SIMÕES ....e mulher, exclusivamente), os mesmos nada disseram aos AA. Quando procederam á transferência do património para a sociedade também R. aos AA., julgando que, para efeitos de transmissão posterior para os seus filhos, tal seria a melhor maneira, pois que apenas lhes entregariam as acções da sociedade.
2.–Evitando, desde logo, que o irmão dos AA. tivesse de intervir na transmissão dos bens, uma vez que o mesmo não apenas nunca contribuiu para a manutenção/exploração do património, como, igualmente, foi compensado em termos financeiros pela sua não inserção na transmissão dos bens (o que, desde já se adiante, constitui pronuncia á segunda questão suscitada no despacho a que se responde, sendo certo que, hoje é absolutamente seguro que o irmão dos AA. não coloca a menor reserva em autorizar a aquisição dos bens pelos AA., não se opondo á sua doação aos seus irmãos).
3.–Quando os AA. verificaram que os prédios haviam sido transmitidos para a sociedade R. pelos RR. pessoas singulares, insurgiram-se contra a mesma, insistindo, porém, os RR. que tal seria a melhor maneira de efectivar a doação que lhes havia sido efectivamente realizada.
4.–O que motivou a propositura da presente acção, tendo, contudo, após citação, os AA. e os RR. reconhecido em conjunto que, de facto, os AA. haviam adquirido os prédios por usucapião (e daí não terem contestado a acção).
5.–No que concerne aos ónus que sobre o prédio incidem:
a)- sobre a fracção autónoma letra "O", as penhoras registadas já caducaram;
b)- sobre o prédio sito em Torres Vedras, mostram-se registadas: uma hipoteca, que os AA. tem assegurado o pagamento, desde logo porque se trata de dívida constituída pela sociedade que os mesmos gerem e que explora o prédio; uma penhora decorrente do não pagamento do IMT, que foi já regularizada.
6.–Ainda que, tratando-se de aquisição originária, de facto a intervenção do credor hipotecário, salvo melhor opinião, não assume caracter de necessidade (o registo da mesma incide sobre o prédio, e os AA. disso tem plena consciência, mantendo o credor a sua garantia real), a questão não se coloca relativamente ás demais por não envolverem qualquer ónus real sobre os imóveis”.

(…)

Em 18.11.2016, foi proferida decisão, na qual se entendeu, em suma, que:

(…)

Estando inscritos direitos reais de garantia e penhoras sobre os bens em causa, os titulares dos mesmos têm necessariamente que estar presentes na ação, pois esses direitos, quer por via do pedido principal – aquisição por usucapião – quer por via do pedido subsidiário – nulidade da venda efetuada entre os réus por simulação - seriam afetados por ambos terem como consequência a respetiva extinção, alterando de forma relevante as posições jurídicas dos titulares face aos bens. Ao contrário do que dizem os autores, mesmo o pedido principal afeta os direitos inscritos, porquanto a usucapião, enquanto modo originário de aquisição da propriedade, faz extinguir todos os outros direitos menores sobre a coisa, tendo especialmente em conta que a hipoteca e os demais direitos foram constituídos após o início da posse relevante para efeitos de usucapião, como resulta da alegação dos autores.

Diferentemente se poderia concluir caso esses direitos fossem anteriores a essa posse.

Quanto ao pedido subsidiário, não há dúvida de que os direitos ficam afetados, pois pretende-se a anulação do negócio jurídico pelo qual a ré sociedade adquiriu a propriedade e, por via disso, constituiu a hipoteca e foram inscritas as penhoras.

Os titulares desses direitos têm pois interesse em contradizer a pretensão dos autores (cfr. artº 30º/1 e 2 do CPC) e pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos os interessados é necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal (artº 33º/2 do CPC). Existe por isso litisconsórcio necessário.

O segundo aspeto que conduz ao não prosseguimento da ação é a intenção, claramente assumida na p. i., de prejudicar o irmão dos autores quanto aos seus direitos sucessórios. A própria venda à sociedade ré já teve esse objetivo, para além de visar também furtar-se às obrigações fiscais decorrentes da sucessão.

(…)

Esta intenção de prejudicar quem com os autores concorre à herança dos réus constitui fundamento para considerar que se verifica um uso anormal do processo. É claro que esta decisão não faria caso julgado face ao referido irmão dos autores, mas não deixar o Tribunal de atender à intenção subjacente à presente ação, que contém em si a prática de atos que a lei civil considera serem ilícitos.

A ilegitimidade é uma exceção dilatória que impede o conhecimento do mérito da causa e tem como consequência a absolvição do réu da instância (artºs 576º/2 e 577º, al. e), ambos do CPC). Consideramos que o uso anormal do processo configura também uma exceção dilatória, que impede que seja proferida decisão de mérito e que conduz também á absolvição da instância


Consta, assim, do Dispositivo da Sentença, o seguinte:
Face ao exposto, por se verificarem as exceções dilatórias de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário passivo e de uso anormal do processo, absolvo os réus da instância.
Custas pelos autores (artº 527º/1 e 2 do CPC).
Nos termos do artº 6º/7 do RCP, atendendo à fase em que o processo cessou, dispenso os autores do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Registe e notifique.

Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram, em 14.12.2016, recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES dos recorrentes:
i.Em qualquer dos pedidos inexiste litisconsórcio necessário passivo, na acepção do art. 33º, nº 2, do Cod. Proc. Civil, não sendo os credores (no caso, o credor hipotecário, único subsistente) prejudicados na sua garantia real constituída sobre os imoveis, tanto mais que os AA. nem sequer peticionaram o cancelamento de qualquer ónus, nem ocorrendo, por outro lado, o risco de ser proferida decisão contraditória, desde logo porque os AA. estão cientes do ónus hipotecário e das responsabilidades que para si dele deriva;
ii.mas mesmo que assim se não entenda, em face dos arts. 261º, 590º, nº 3 e 4, 6º e 411º do Cod. Proc. Civil, sempre teria de ser conferida, após um pré saneador, a possibilidade de os AA. suprirem tal preterição de litisconsórcio por via de chamamento quer dos credores com garantia real sobre os imóveis, quer mesmo do seu irmão;
iii.inexistindo concluio entre as partes, tendo sido feito um relato real dos acontecimentos e prosseguindo-se um fim legal (a declaração de aquisição originária pelos possuidores de um prédio), não se verifica o uso anormal do processo, por forma a fazer accionar a previsão do art. 612º do Cod. Proc. Civil;
iv.sendo que a situação presente (de os prédios estarem registados em nome de uma sociedade) é que determina, quer para os AA., quer para o seu irmão, um decisivo prejuízo, não sendo intenção mínima dos AA. prejudicar, por qualquer forma, o seu irmão (prejuízo de derivou de acto que os mesmos impugnam e veementemente refutam);
v.a sentença recorrida, salvo melhor opinião, viola os comandos legais assinalados nas presentes conclusões de recurso.

Pedem, por isso, os apelantes, que o recurso seja julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.


Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II.–ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO.

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
i.- DA PRETERIÇÃO DE LITISCONSÓRIO NECESSÁRIO;
ii.- DO USO ANORMAL DO PROCESSO.     

III.–FUNDAMENTAÇÃO.


A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido e ainda que:
1.–Os prédios identificados no petitório estão inscritos no Registo Predial a favor da sociedade Holdings Limited;
2.–Sobre o prédio identificado na alínea a) do pedido formulado na petição inicial, incidem penhoras que foram inscritas por natureza e dúvidas, resultantes de execuções em que é executado o 1º réu;
3.–Sobre o prédio identificado na alínea c) do pedido formulado na petição inicial, incide hipoteca para garantia das responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade Actividades Hoteleiras, Lda. (Ap. 54 de 2003/09/19) e penhora em execução fiscal de que é executada a sociedade Holdings Limited (Ap. 2627 de 2012.12.04).

B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
i.-DA PRETERIÇÃO DE LITISCONSÓRIO NECESSÁRIO

Como é sabido, o requisito da legitimidade é entre nós, um pressuposto processual e exprime a posição pessoal do sujeito em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que aquele sujeito possa ocupar-se em juízo desse objecto do processo – v. neste sentido CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II, 153.

Também MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, 82, explica que a legitimidade não é uma qualidade pessoal das partes, «mas uma certa posição delas face à relação material que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual»

Com o requisito da legitimidade tem se em vista que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, como refere CASTRO MENDES, como um reflexo do princípio da autonomia da vontade, já que é o titular do interesse o único que pode prossegui-lo, em juízo ou fora dele, salvo quando a lei disponha diversamente – v. ob. cit., II, 157.

Para que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, necessário se torna que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas que são titulares da relação jurídica em causa.

Nos termos do artigo 30º, nº 1 do C.P.C., autor e réu são partes legítimas quando têm interesse directo respectivamente, em demandar e em contradizer, interesse esse que se afere, de acordo com o nº 2 daquele mesmo preceito legal, pela utilidade derivada da procedência da acção ou pelo prejuízo que daí advém.

Mas, como o critério assente no interesse directo em demandar e em contradizer presta-se a dificuldades no âmbito da sua aplicação prática, a lei fixou, no n.º 3 do mencionado artigo 30.º do CPC, uma regra supletiva na determinação da legitimidade, aí se estatuindo que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo Autor”.

Têm, pois, legitimidade para a acção os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida.

Ao apuramento da legitimidade interessa ter em consideração o pedido e a causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram essa causa de pedir, visto que legitimidade ad causam, como pressuposto processual que é, não se prende com o mérito do pedido formulado na acção com base em determinada causa de pedir, pois quando se decide da questão da legitimidade, não tem o julgador - nem deve fazer - um julgamento antecipado da questão substancial que lhe é submetida. 

A questão que se coloca é a de saber se a acção aqui em causa, tal como foi configurada pelos autores pressupõe e exige uma situação listisconsorcial.

Com efeito, o litisconsórcio exige uma pluralidade de sujeitos e também, segundo uns, uma única relação jurídica material (artigo 32º do CPC) ou, segundo outros, uma unidade de pedidos (artigo 36º do CPC), neste ponto residindo o critério de distinção da figura jurídica da coligação e, sendo certo que a lei processual civil parece utilizar indistintamente, nos citados normativos, estes dois critérios.

O facto de a relação jurídica material controvertida afectar directamente os interesses de várias pessoas não determina, só por si, a necessidade de intervenção de todos os interessados.

A regra é a do litisconsórcio voluntário em que os sujeitos da relação podem intervir ou não em conjunto, tendo carácter excepcional o litisconsórcio necessário, dados os graves embaraços que para a parte representa a sua imposição. E, assim, apenas se exigirá a presença de todos os interessados nos casos em que a lei colocou acima dos interesses das partes e dos respectivos custos, a unidade da decisão - v. ANSELMO DE CASTRO, Dir. Proc. Civil Declaratório, II, 199.

O litisconsórcio é necessário, segundo dispõe o nº 1 do artigo 33º do C.P.C., quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica. 

Decorre do nº 2 do artigo 33.º do Código de Processo Civil, que "é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza  o  seu  efeito  útil  normal", esclarecendo  o  nº 3 do mesmo   preceito que "a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado".

Prevê o artigo 33º, nº 2 do CPC o chamado litisconsórcio natural, ao expressar ser necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal.

O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material - ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, I, p. 111.

Esclarece ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., 203, que a sentença produzirá o seu efeito normal quando defina uma situação jurídica que não só não poderá mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda seja de molde a poder subsistir inalterada, não obstante ser ineficaz em confronto dos outros co-interessados, como quer que uma nova sentença venha a definir a posição ou situação destes últimos”.

Refere ANTUNES VARELA, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 117, p. 383, que, a parte final do n.º 2 do art.º 28.º [actual artigo 33º com idêntica redacção] “admite claramente a possibilidade de, nas relações plurais, a acção ser instaurada apenas por algum ou alguns dos seus titulares, ou contra algum ou alguns deles. Essencial é que a decisão a proferir em tais circunstâncias possa regular definitivamente as pretensões formuladas pelas partes»  

Para entender o sentido do conceito de «efeito útil normal» agora consagrada no artigo 33.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, existem duas orientações doutrinárias. Uma tese ampla, que afere o efeito útil normal pela insusceptibilidade de contradição lógica, teórica ou técnica de julgados.

E, ao invés, uma tese mais restrita, defendida por MANUEL DE ANDRADE, Scientia Juridica, VII, n.º 34, 186, que   afere   o   efeito útil à insusceptibilidade de contradição apenas prática entre julgados, em termos de obstar a decisões que não possam definir estavelmente a situação jurídica sem atingir os diversos interessados na decisão – cfr. também neste sentido ANSELMO DE CASTRO, ob. cit., 204.

O nº 2 do artigo 33º do nCPC (tal como sucedia com o art.º 28.º do aCPC) parece adoptar pela noção mais restrita de efeito útil normal, já que o instituto do litisconsórcio necessário natural visa evitar decisões inconciliáveis sob o ponto de vista prático e, consequentemente, obter segurança e certeza na definição das situações jurídicas.

Como esclarece ANSELMO DE CASTRO, o facto de a lei se limitar a facultar, e não a impor, o litisconsórcio nas relações com pluralidade de interessados, como unidade de causa de pedir (artº 32º, nº 1, 1ª parte do CPC), leva a concluir que lhe é indiferente a coexistência de decisões divergentes e logicamente contraditórias e, portanto, que a situação a evitar pela obrigatoriedade do litisconsórcio é tão só a de decisões, além de divergentes, praticamente inconciliáveis – ob. cit., loc. cit.

Sempre que inexista a incompatibilidade dos efeitos produzidos – critério consagrado no nº 2 do artigo 33º do CPC – a decisão produz o seu efeito útil normal, sendo irrelevante a possibilidade de superveniente antagonismo ou conflito teórico de decisões resultantes de os interessados não vinculados ao caso julgado serem partes noutra acção com solução diversa.

Seguindo ainda ANSELMO DE CASTRO, ob.ci., 208, há que compatibilizar entre o princípio da liberdade – cada um tem o direito de propor a acção, sem ser forçado a tal e contra quem quiser – com o princípio da utilidade – a demanda há-de ter utilidade prática, para se concluir que nas relações com pluralidade de sujeitos, se a lei nada disser, é sempre lícito accionar isoladamente ou demandar só um dos interessados, desde que a acção, pelo facto de ser proposta só por um ou apenas contra um, não perca a utilidade prática.

No caso vertente, invocam os autores que, em 1993, os réus transmitiram aos seus filhos, os ora autores, através de uma doação verbal, os três prédios identificados no petitório, com conhecimento e aceitação do outro irmão, que recebeu, por sua opção, uma compensação monetária, visando os autores com a presente acção, o reconhecimento do seu direito de propriedade, alegadamente adquirido por usucapião, sendo que os aludidos prédios se encontram inscritos no registo predial a favor de uma sociedade extinta, que tinha sede em Gibraltar, que terá adquirido os prédios, por força de uma venda efectuada pelos réus, invocando os autores a nulidade da mesma, por vício de simulação, já que visou obviar ao pagamento de obrigações fiscais  decorrentes de futura sucessão e evitar a intervenção do irmão dos autores, como herdeiro desses imóveis, caso estes falecessem.

Acresce que, pela análise das fotocópias do registo predial juntas aos autos, se verifica que os prédios identificados em a) e c) do pedido principal estão registados em nome da identificada sociedade extinta, e sobre eles incidem hipoteca e penhoras posteriores à invocada posse dos autores.

Ademais, e como é sabido, sempre que uma determinada sociedade já se encontrar extinta antes da propositura da acção, são os sócios que têm de ser demandados directamente, na pessoa dos liquidatários, com vista a efectivar a sua responsabilidade pelos débitos sociais dentro dos limites consignados no artigo 163º, nº 1 do CSC, os quais respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha.

Sucede, porém, que face aos pedidos formulados pelos autores – pedido principal e pedido subsidiário -  e à causa de pedir, tendo em consideração os complexos contornos da lide aqui em causa, é manifesto que a intervenção de todos os interessados, titulares de direitos com interesse em contradizer a pretensão dos autores – credor hipotecário, exequentes nas acções executivas pendentes com penhoras registadas e o próprio irmão dos autores - é exigível para que a decisão produza o seu efeito útil normal.

Comunga-se, portanto, do entendimento do Tribunal a quo, ao constatar a verificação de uma situação de litisconsórcio necessário.

Dissentimos, porém, quando ao entendimento subjacente à decisão recorrida de que a preterição de litisconsórcio necessário, acarrete de imediato, a absolvição dos réus da instância.

Senão vejamos.

É certo que compete às partes definir os contornos fácticos do litígio, o que significa que sobre elas recaí o ónus de carrear para os autos os factos em que o tribunal se poderá basear para decidir, sem prejuízo do que decorre do disposto no artigo 5º, nº 2 do CPC. Ao autor incumbirá alegar os factos que consubstanciam a pretensão por si formulada e ao réu incumbirá alegar a factualidade que sustenta a sua defesa.

O julgador poderá, portanto, fundar a decisão nos factos articulados pelas partes, bem como nos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, nos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, dos factos notórios, nos factos de conhecimento do tribunal por virtude do exercício das suas funções (artigo 412ºCPC) e nos factos indiciadores de uso anormal do processo (artigo 612ºCPC).

Por outro lado, dispõe o artigo 6º do CPC, sob a epígrafe “Dever de gestão processual

1—Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2—O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

E, no mesmo sentido, estatui o artigo 590.º, sob a epígrafe Gestão inicial do processo, que:

(…)

2—Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:

a)- Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;

b)- Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;

c)- Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.

3—O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

Resulta, portanto, inequívoco que a situação de ilegitimidade plural passiva é sempre passível de sanação, sendo que, nos termos dos apontados artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, incumbe ao juiz a prolação  de  despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento

da identificada excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados, podendo ainda o julgador, se assim o entender, convidar também os autores a esclarecerem, para melhor compreensão do peticionado, a eventual ligação destes, à sociedade Actividades Hoteleiras, Lda., sem prejuízo de ser junta certidão actualizada do registo predial.

Procede, por conseguinte, nesta parte, a apelação.

ii.DO USO ANORMAL DO PROCESSO     

Estabelece o artigo 612º do CPC que “quando a conduta das partes ou quaisquer outras circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes”.

A simulação do litígio ocorre quando as partes ficcionam um litígio que não existe para obterem uma sentença que, aparentemente tutelando direitos ou interesses legalmente protegidos, na realidade proporcionasse a obtenção de um resultado proibido por lei ou o engano de terceiros sobre a situação jurídica das partes.

Como referem JOSÉ LEBRE DE FREITAS/A. MONTALVÃO MACHADO/RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 661: “Tem lugar a fraude processual quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio para obter uma sentença cujo efeito pretendem, mas que lesa um direito de terceiro ou viola uma lei imperativa predisposta no interesse geral”.

E esclarecem mais à frente “A simulação do litígio (…), passa quase sempre, mediante prévio acordo das partes, entre si conluiadas, pela alegação pelo A., não contraditada ou ficticiamente contraditada pelo R., duma versão fáctica não correspondente à realidade” – cfr. neste mesmo sentido ALBERTO DOS REIS, C. Proc. Civil Anotado, Vol. V, p. 101, ao mencionar a alegação de “facto suposto” ou “ facto que não existia”, e ainda, a título meramente exemplificativo, Acs. TRC de 12.05.2009 (Pº 621/08.3TBLRA.C1) e de 20.11.2012 (Pº 1423/11.5TBGRD.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.

Assim, na vertente de simulação processual é pressuposto que as partes se hajam conluiado, criando a aparência de um litígio inexistente, para obter sentença cujo efeito querem apenas relativamente a terceiros, enganando estes, mas não entre si, visando, nomeadamente através do conluio, subtrair ao património do demandado bens ou direitos em prejuízo dos verdadeiros credores.

E, na vertente de fraude processual, exige-se que as partes se hajam conluiado, criando a aparência de um litígio inexistente, para obterem determinado efeito jurídico, que efectivamente querem, mas que prejudica terceiros.

É evidente que quando o juiz se apercebe da simulação ou fraude processual deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes, visto a causa não ter como suporte um conflito de interesses, antes pretendendo as partes atingir uma finalidade diversa da função processual, o que se reconduz a uma excepção dilatória inominada que acarreta a absolvição da instância, por ser inadmissível a pronúncia de uma decisão de mérito, ou como defendia ALBERTO DOS REIS, ob. cit, 103, em lugar da decisão de mérito, o tribunal deveria declarar sem efeito o processo.

Segundo a decisão recorrida, as partes demonstram, com a sua conduta processual, estarem conluiados na intenção de prejudicar o irmão dos autores que concorre juntamente com estes à herança dos réus, o que constitui fundamento para considerar um uso anormal do processo.

Não se comunga com este entendimento, já que não vislumbra, sem mais, que ocorre uma situação de fraude processual.

É que, se afigura prematuro invocar desde já o disposto nos artigos 2168º e 2170º do Código Civil, quanto à eventual existência de liberalidades inoficiosas ou à proibição de renúncia ao direito de reduzir as liberalidades, quando se desconhece se tal situação ocorre no caso vertente e se a herança dos réus, pais dos autores, se reconduz tão somente aos bens aqui em causa de que os autores invocam doação verbal e cujo reconhecimento do direito de propriedade sobre os mesmos visam com a presente acção (pedido principal)ou mesmo a declaração de nulidade das transmissões invocadas por vício de simulação(pedido subsidiário).

Não se vislumbra que ocorra uma simulação processual, ou seja, que as partes se hajam conluiado para obter sentença cujo efeito se destina apenas a enganar terceiros, ou que se considere que os pedidos formulados visam obter uma finalidade, desde logo, e à partida, proibida por lei, i.e., absolutamente ilegal.

Mas ainda que fosse admissível a dúvida sobre a possível verificação de um acordo de simulação processual para consecução de um fim proibido por lei – como o terá entendido a sentença recorrida - tal objectivo eventualmente prosseguido pelas partes seria votado ao insucesso, por virtude da intervenção dos interessados, por efeito da sanação da preterição do litisconsórcio necessário.

Porém, tal não afastará, evidentemente, e se for caso disso, a ulterior aplicação do disposto nos artigos 531º ou 542º e ss do CPC.

Destarte, procede a apelação, revogando-se a sentença recorrida, a qual se substitui por outra em que se determina a observância, pelo Tribunal a quo do disposto nos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 1, ambos do CPC, através da prolação de despacho vinculado, convidando os autores ao suprimento da excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados.

Não havendo, por ora, vencimento de nenhuma das partes, por efeito da regra da causalidade consagrada no artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, as custas do recurso ficarão a cargo da parte vencida a final.

IV.–DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-se por outra em que se determina a prolação, pelo Tribunal a quo, de despacho, convidando os autores ao suprimento da excepção dilatória de preterição de litisconsórcio necessário passivo, através da adequada intervenção dos terceiros interessados.

As custas do recurso ficarão a cargo da parte vencida a final.


Lisboa, 9 de Novembro de 2017



Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Martins
Arlindo Crua