Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
121676/15.2YIPRT.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
DESCOBERTO BANCÁRIO
CARTÃO DE CRÉDITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) O tribunal da Relação encontra-se impedido de conhecer pela primeira vez da ineptidão do requerimento injuntivo, por falta de causa de pedir – questão apenas suscitada pela recorrente na alegação da apelação deduzida – conhecimento esse que consubstanciaria o julgamento de uma “questão nova”, para além de se mostrar decorrido o momento até ao qual a nulidade correspondente, poderia ser arguida e oficiosamente conhecida (cfr. artigos 186.º, n.ºs. 1 e 2, al. a), 196º, 198.º, n.º 1 e 200.º, n.º 2, do CPC).
II) Não tendo a apelante interposto oportuno recurso, em apelação autónoma, do despacho que consubstanciou o indeferimento da realização de perícia (cfr. artigo 644.º, n.º 2, al. d) do CPC) que requerera, a decisão de indeferimento transitou em julgado, encontrando-se vedada a sua reapreciação no âmbito do recurso de apelação da decisão final.
III) Atento o princípio de aquisição processual – artigo 413.º do CPC - todos os meios de prova têm aptidão a formar a convicção probatória do tribunal sobre um dado facto, independentemente da parte de onde tenha derivado a sua iniciativa ou que tenha requerido a sua produção.
IV) Da decisão judicial a proferir, faz parte a enunciação das questões a decidir pelo juiz (cfr. artigo 607.º, n.º 2, do CPC) a qual, embora pressupondo a prévia pretensão deduzida pelo autor (e a contra-pretensão eventual, deduzida pelo réu), com esta não se confunde, nem se identifica. Uma coisa é o pedido formulado, o qual assenta numa determinada causa de pedir, o que constitui ónus da parte que apresenta a pretensão em juízo; outra, bem diversa, são as questões que, com base nos termos do litígio apresentado ou enunciado e com referência aos temas da prova – se forem fixados – ou aos factos alegados pelas partes, cumpre ao Tribunal fixar aquando da prolação da decisão.
V) Por referência à decisão recorrida e à enunciação que nela foi efetuada sobre as questões a decidir pelo julgador, não ocorre violação do disposto no artigo 10.º, n.º 3, do regime jurídico anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro, cuja previsão se reporta aos elementos objetivos do requerimento injuntivo, aqui se encontrando abrangida a formulação do pedido, com discriminação do capital, juros vencidos e outras quantias e a exposição sumária dos factos que fundamentam a pretensão, mas não, claro está, qualquer antecipada vinculação do julgador sobre as questões que ao mesmo cumpre decidir no pleito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
PROMONTORIA HOLDING 63 B.V., identificada nos autos, apresentou requerimento de injunção contra MC… e MJ…, também identificados nos autos, pedindo a notificação dos mesmos para lhe pagarem a quantia de € 13.482,40 de capital, € 1.400,00 de juros de mora vencidos e dos juros de mora vincendos para além dos compulsórios a calcular nos termos do disposto no artigo 21.º, nº 2, do D.L. n.º 269/98, de 1 de setembro.
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Alegou, em suma, que por contrato de cessão de crédito assinado a 28-06-2013, o Banco Santander Totta, S.A., lhe cedeu os créditos que detinha sobre os requeridos, naquele valor global, que resultam de descoberto de conta à ordem aberta pelos requeridos no banco cedente e que, interpelados para proceder àquele pagamento, os requeridos não o fizeram.
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Cada um dos requeridos deduziu oposição.
MC… impugnou a cessão de créditos em causa, por não ter obrigação de a conhecer; de todo o modo, imputou à Requerida a responsabilidade no pagamento daquela dívida, pois esta resulta de cartão de crédito de que era titular apenas MJ… e que aquele não utilizou, sendo os movimentos da sua única responsabilidade; ainda que se trate de conta de depósito solidária, pelo descoberto em conta responde de forma exclusiva o titular que lhe deu causa.
Concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.
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MJ… impugnou a cessão de créditos em causa, por não ter obrigação de a conhecer; entendeu, ainda, que o descoberto em conta configura uma transmutação unilateral do contrato inicial de abertura de conta num contrato de mútuo, que, no caso, é nulo por vício de forma; invocou, ainda, a prescrição dos juros moratórios, nos termos da alínea d) do art. 310º, do CC.
Concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.
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Na sequência de despacho judicial a tanto dirigido, a requerente foi notificada das oposições e deduziu resposta que concluiu, como no requerimento inicial.
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Após a realização da audiência de discussão e julgamento, em 25-11-2019 foi proferida sentença onde se decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar a requerida a pagar à requerente a quantia global de € 13.482,40, acrescida dos juros de mora comerciais, à taxa supletiva legal em cada momento em vigor, contados desde 07/01/2016, e até integral e efectivo pagamento, acrescidos juros compulsórios à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença transitar em julgado e até integral e efectivo pagamento e, quanto ao mais peticionado pela requerente, absolver os requeridos.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela apela a requerida MJ…, formulando as seguintes conclusões:
“1. O pedido e a causa de pedir, referido no Requerimento de Injunção, prende-se com um alegado saldo a descoberto em conta, no valor de €13.482,40, que encontra-se alegadamente em dívida, estando a Autora a exigir tal pagamento.
2. O requerimento de injunção apresentado contém um enunciado fáctico, não apenas deficiente, por manifestamente insuficiente, mas também impreciso, pois não se sabe a origem do valor em causa, apenas refere que foi um crédito que a Autora comprou junto do BANCO SANTANDER TOTTA S.A., não se sabendo quando o valor em causa foi disponibilizado na conta dos Réus para utilização, nem se discrimina o valor apresentado, não fazendo referência à data em que o Banco estipulou o vencimento da obrigação de pagamento do alegado valor em dívida.
3. Estamos portanto, perante uma causa de pedir, que oculta factos essenciais, tais como a origem do saldo a descoberto, o valor concreto e inequívoco desse saldo, a disponibilidade desse saldo em conta e a data de vencimento do mesmo, pelo que, apesar de estarmos no âmbito de uma injunção, a exigência de exposição sucinta não significa falta de alegação dos factos estruturantes da causa de pedir, sob pena de se aniquilar o principio do contraditório num procedimento que afinal é declarativo.
4. Nos termos do art.º 186º n.º 1 e 2 al. a) do Código do Processo Civil a falta de indicação da causa de pedir importa a ineptidão da petição inicial (neste caso do requerimento injuntivo) e conduz à nulidade de todo o processo, e consequentemente, à absolvição da Ré.
5. Com o devido respeito, a Ré considera que mal andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que decidiu, porquanto o requerimento de injunção é inepto por falta de factos essenciais na causa de pedir, pelo que a Ré deve ser absolvida da instância e do pedido.
6. Sendo inepto o Requerimento de Injunção, a decisão da matéria de facto dada como provada, violou o disposto no art.º 186º do C.P.C, que, caso não tivesse sido violada esta norma, a decisão seria a da absolvição da Ré quer da instância, quer do pedido.
7. Acresce que, o Tribunal a quo ao limitar as questões a decidir neste processo como sendo: 1) da responsabilidade de ambos os titulares da conta DO solidária pelo descoberto da conta e 2) prescrição da dívida de juros, violou o disposto no art.º 10º n.º 3 do anexo ao DL n.º 269/98 de 01/09 que estabelece «Durante o procedimento de injunção não é permitida a alteração dos elementos constantes do requerimento, designadamente o pedido formulado».
8. Ora, o facto que serve de fundamento à injunção que constitui a sua causa de pedir, consubstancia-se na alegação do não pagamento, por parte dos Réus, do valor de €13.482,40, não fazendo então sentido, que os temas a decidir e a serem apreciados pelo Tribunal a quo sejam outros daqueles peticionados pela Autora.
9. O Tribunal a quo, com todo o respeito, errou no enquadramento que fez nas questões a decidir, não tendo sido apreciado, o que era efetivamente, necessário ser apreciado e provado neste processo, que passaria pela prova clara e inequívoca, da existência e o esclarecimento da origem do alegado saldo a descoberto, assim como da discriminação do seu valor, a fim de se julgar pela condenação ou absolvição dos Réus quanto ao pedido pela Autora.
10. Os extratos juntos pela Autora (Doc. 4 Requerimento datado de 24.04.2016), reportados ao período entre 01-05-2002 e 31-08-2002, apenas demonstra que foram lançados na conta juros e imposto de selo, não tendo sido demonstrado através dos extratos, a origem do valor peticionado, nem em que data foi disponibilizado o montante de €13.482,40.
11. Pelo que, não se deveria de ter dado como provado este facto, uma vez que, do documento ora em crise, os extratos bancários junto pela Autora como Doc. 4 (Requerimento datado de 24.04.2016), não se retira a origem do saldo a descoberto, logo não se pode concluir, nem dar como provado um saldo a descoberto e a sua existência, sem ter prova cabal da origem do mesmo, prova essa, que não nos é dada por estes extratos.
12. Também não foi alegado, e nem foi demonstrado que a Ré tenha beneficiado da “falta do saldo” peticionado.
13. Assim como também, não foi provado, nem demonstrado que a Ré tivesse retirado da sua conta a quantia em causa, de modo a deixar a mesma com um saldo negativo a cargo do depositário, de modo que este se tornasse credor da Ré, apenas foi demonstrado pelos extratos que o banco fez lançamentos na conta a título de juros e imposto de selo.
14. Não quadra na figura do “descoberto em conta” o saldo negativo que resulta apenas de débitos levados a cabo pelo banco relativos a juros e despesas bancárias de diversas operações bancárias, designadamente de serviços de avaliação, imposto de selo, IVA e comissões bancárias.”
15. Sendo uma conta que foi aberta em 17/10/1997 e encerrada a 31/08/2002, dever-se-ia ter junto todos os extratos bancários desta conta, referente ao período desde a sua abertura até ao seu encerramento, pois só através da análise de todos os extratos é que se conseguiria chegar à conclusão clara e inequívoca, da origem da dívida e do suposto valor em dívida.
16. Esses extratos não foram juntos, dado que, o banco cedente, já não os tinha na sua posse, por os mesmos terem mais de dez anos (cfr Doc junto pelo banco em 21.11.2018), não havendo prova da origem do alegado saldo a descoberto, nem a discriminação dos seus valores, para chegarmos à quantia peticionada.
17. Não sendo provado, a existência e a origem do saldo a descoberto, não pode ser exigido o pagamento de €13.482,40, nem respetivos juros, por falta de discriminação do montante em causa e da prova da disponibilidade do dinheiro na conta dos réus, factos essenciais, que deveriam de constar da causa de pedir e que não constam.
18. A prova da existência do saldo a descoberto cabia à Autora ou ao banco cedente, nos termos do art.º 342º n.º 1 C.C, que não o fizeram.
19. O Tribunal a quo, a dar como provado a existência do saldo a descoberto, violou o regime do ónus da prova, nomeadamente, violou o disposto no art.º 342º do C.P.C, uma vez que, dá como provado a existência de um saldo a descoberto, sem ter a Autora, trazido para o processo a prova cabal de tal existência, apenas juntou uns extratos (requerimento datado de 27.04.2016), que não demonstram a origem e o porquê de ser €13.482,40 (e não por exemplo uma divida de €1.000,00 ou €100.000,00).
20. Na ausência de prova cabal da origem e consequente existência do saldo a descoberto, o Tribunal a quo deveria ter julgado pela absolvição da Ré.
21. Tratando-se de uma conta solidária, em que é titular a Ré MJ… e o Réu MA…, a referida conta podia ser movimentada pelos dois titulares, conforme ficha de abertura de conta, que foi junta ao processo pela Autora (no seu requerimento datado de 27.04.2016, doc. n.º 3), a qual menciona expressamente tal facto, “C/SOLC. Pode se movimentada com a assinatura de qualquer dos titulares”, exceto “se houver instruções em contrário”, o que não ficou provado que houvesse, tais instruções.
22. Desde o ano de 1982/1983, os Réus viviam juntos, em união de facto, por isso a conta foi aberta em nome dos dois, e os dois poderiam movimentar a mesma.
23. Não ficou provado que fosse apenas a Ré MJ… que utilizava e movimentava a conta bancária, pois única prova são as declarações de parte do Réu, não havendo corroboração com outras provas, sendo que, essas declarações, estão eivadas de interesses pessoais no desfecho da causa.
24. O Tribunal a quo apenas assentou a sua convicção nas declarações do Réu M…, para dar como provado que era apenas a Ré MJ… que movimentava à conta, não dando o devido desconto que se impunha, às declarações do Réu, pois do Réu MA…, não se esperaria certamente que este viesse comprometer a sua posição no processo.
25. Da utilização do referido cartão de crédito “Premier”, mais uma vez, o Tribunal a quo, assentou a sua convicção nas declarações de parte do Réu, que com todo o respeito, que é muito, não cremos que se tratem de declarações livres e espontâneas, para dar como provado o referido cartão de crédito estaria em nome da Ré MJ…, contudo, nunca se fez prova da existência desse cartão, muito menos que se fazia pagamentos com o mesmo.
26. Através de alguns extratos datados do ano de 1998, ano de 1999 e alguns meses do ano 2000, juntos pelo Réu (aquando a sessão de audiência de julgamento, datada de 24.09.2019, como Doc 1 – relativo a um “cartão premier”), pode-se verificar que a conta sempre teve um saldo positivo, não podendo advir da utilização desse cartão, o suposto saldo a descoberto.
27. O Tribunal a quo não poderia ter dado como provado que a origem do saldo a descoberto estaria na utilização do cartão de crédito, dado que, pela análise dos extratos juntos pelo Réu, referido no ponto anterior, não há saldo negativo na conta, logo a origem do saldo a descoberto não está, mais uma vez, provada, o que levaria à decisão de absolvição da Ré.
28. Nem a Autora, nem o banco cedente, confirmaram as declarações do Réu, não havendo prova documental que confirme que o saldo a descoberto advenha da utilização do cartão de crédito.
29. Quanto ao envio dos extratos bancários que supostamente iam em nome da Ré MJ… e para a morada constante na Av. … n.º …, Algés, não foi junto aos autos qualquer documento, quer por parte da Autora, quer por parte da Ré, que efetivamente demonstre que os extratos foram enviados e recebidos pela Ré.
30. O Tribunal a quo, sem uma prova documental, que vise a comprovação efetiva do envio do extrato e o seu recebimento, não pode dar como assente tal facto como comprovado, pelo que, este facto em concreto, deveria ter sido dado como não provado.
31. O “contrato de empréstimo” junto pelo Réu MA… (na sua oposição datada de 21.01.2016, como Doc. 1) e que foi aceite pelo Tribunal a quo, entendemos que o mesmo, não carece de qualquer credibilidade, dado que o mesmo, não tem data, nem se faz prova, que o mesmo tenha sido proposto pelo Banco cedente, dado que, o banco cedente nada referiu quanto a este assunto, apesar de interpelado pelo Tribunal para prestar esclarecimentos (Despacho datado de 31/10/2018).
32. Não havendo prova documental trazida pela Autora ou pelo banco cedente, que corroborasse a prova apresentada pelo Réu, o Tribunal a quo não pode dar como provado a existência e a veracidade deste contrato de empréstimo junto aos autos pelo Réu, na sua oposição datada de 21.01.2016), como deu, nem assentar a condenação na Ré, com base neste documento, deveria ter sido sim, mais criterioso na apreciação da prova e na dúvida absolver a Ré.
33. A assinatura aposta no referido contrato, foi impugnada pela Ré, que afirma não ser sua, tendo requerido perícia a essa assinatura aposta no suposto contrato de empréstimo, (cfr. requerimento datado de 02.12.2016).
34. A Autora também impugna o referido contrato de empréstimo, e requer a perícia à assinatura aposta no mesmo (cfr. Requerimento datado de 11.01.2018).
35. Se confrontarmos as declarações de parte do Réu, com o documento junto (o referido contrato), e partindo do pressuposto (apesar de não ter ficado provado), que este contrato seria verdadeiro, pode-se verificar, que no referido contrato, consta quer do preambulo do mesmo, quer no seu clausulado, o nome dos dois titulares, não há referencia à exclusão da responsabilidade do Réu MA…, e apenas só um é que assina.
36. Assim sendo, ao elaborar este contrato a vontade do Banco e como consta do mesmo, seria que esse contrato fosse assinado pelos dois titulares e não por um, provavelmente, porque se estava a falar de uma conta solidária, com dois titulares.
37. Assim sendo, como pode o Tribunal a quo, assentar a sua convicção num contrato que não exprime a vontade das partes intervenientes,
38. Com todo o respeito, o Tribunal a quo violou os critérios de interpretação e integração do contrato, cuja sua regulação, encontra-se prevista nos art.º 236º e ss. do C.C., pois não analisou de forma criteriosa, por um lado, a suposta vontade do banco, que pretendia a assinatura e a responsabilização dos dois titulares, e por outro, não foi criterioso a ponderar as declarações do Réu, dado que, o mesmo afirma não ter qualquer responsabilidade com a alegada dívida, mas depois é esse mesmo Réu, que apresenta o suposto contrato e toda a restante documentação que juntou.
39. Assim sendo, foram violados os normativos supra referidos, e decidindo o Tribunal a quo, por uma condenação, deveria ser a condenação dos dois Réus e não só da Ré (uma vez que o banco pretendia a assinatura dos dois, a conta era solidária e a Autora peticiona o pagamento de €13.482,40 contra os dois titulares).
40. Se não houvesse a violação da referida disposição legal (art.º 236º e ss,), o Tribunal a quo, não teria dado a relevância que deu ao referido contrato para condenar a Ré.
41. A perícia requerida pelas partes (Autora e Ré), foi aceite pelo Tribunal a quo, por entender que a mesma seria, “pertinente, admissível e necessária para apuramento da verdade”.
42. O posterior indeferimento da perícia, por parte do Tribunal a quo, por falta de apresentação do original da procuração forense passada a favor da Ilustre mandatária da Ré, não é admissível, dado que, o Tribunal poderia se ter socorrido de outros meios e usado outra alternativa para obter a recolha da assinatura da Ré.
43. Não o tendo feito, nem justificado a desnecessidade superveniente da realização da perícia, nem tendo demonstrado a impossibilidade superveniente da mesma, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 411º do C.P.C, que consagra o poder-dever do Juiz de realizar quaisquer diligencias probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade.
44. Estando a cercear o direito que as respetivas partes tinham de produzir prova relativamente a factos que foram trazidos ao processo, dificultando assim, a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa.
45. Considerando o acima exposto, A Apelante considera que a sentença recorrida não ajuizou corretamente segundo o Direito aplicável, e também não se conforma com a matéria de facto que foi dada por assente e provada, impugnando-a de forma expressa”.
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O requerido MC… apresentou contra-alegações concluindo:
“I. O depoimento prestado pelo Recorrido ao Tribunal a quo foi claro e objectivo, respondendo com precisão e rigor, tendo, fundamentalmente, sido sustentadamente confirmado pela prova documental junta aos autos.
II. Com efeito, as declarações prestadas pelo Recorrido foram respaldadas pela evidência da prova documental dos autos.
III. Na verdade, desde os extractos de contas da conta à ordem, onde estão vertidos os movimentos bancários originados pela utilização exclusiva do cartão de crédito “Premier” pela Recorrente e os movimentos bancários a débito com o consequente desconto de cheques assinados exclusivamente por esta última.
IV. Toda a documentação referida prova que o cartão de crédito Premium, de que era a única titular, era apenas utilizado pela Recorrente e a movimentação da conta bancária era exclusivamente da sua responsabilidade, que a utilizava apenas para a sua actividade profissional de medicina omeopática numa loja em Algés.
V. Ademais, a assinatura da Recorrente aposta na ficha de abertura da conta bancária à ordem é a mesma que as assinaturas dos cheques da referida conta (vide assinatura dos cheques anulados) e a mesma que as assinaturas apostas no contrato de empréstimo para regularização da dívida e na respectiva livrança.
VI. A Recorrente poderia ter, no início da audiência de discussão e julgamento, tomado a iniciativa de requerer novamente a produção de prova pericial à sua assinatura, nos termos dos artigos 17.º n.º 1, 3.º n.º 4 e 4.º n.º 5 do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, uma vez que as provas, entre elas, a perícial, são oferecidas na audiência, caso as partes o queiram, o que na presente lide não aconteceu.
VII. Também, a Recorrente não contraditou as declarações do Recorrido porque preferiu não o fazer nem apresentou qualquer prova documental que infirmasse o que foi por ele dito.
VIII. Ao contrário do que a Recorrente alega nas suas doutas alegações, a prova documental junta aos autos (vide Documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4) corrobora ou confirma o que foi dito pelo Recorrido nas suas declarações, sendo que da sua conjugação, o Tribunal a quo firmou a sua convicção.
IX. Não restam, pois, dúvidas que a conta de depósitos à ordem domiciliada no Crédito Predial Português com o n.º … era única e exclusivamente movimentada pela Recorrente no âmbito da sua actividade profissional, como, igualmente o cartão de crédito “Premier” associado à conta era somente utilizado pela sua titular e que Recorrido, apesar de ser segundo titular da conta bancária, não é, pois, responsável pelo descoberto bancário causado unicamente pela Recorrente.
X. A Recorrida Promontoria não juntou aos autos o anexo 4 (carteira de clientes) a que faz referência no contrato de cessão de créditos junto aos autos.
XI. Ora, o contrato de cessão de créditos sem o anexo da lista dos créditos cedidos é um documento que está incompleto, não fazendo prova do crédito cessionado e em discussão na presente lide, devendo V. Exas. tirar as devidas ilações e consequências legais, mantendo-se o decidido, entre o mais, pela douta sentença recorrida no que concerne, pelo menos, ao ora Recorrido (…)”.
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A requerente PROMONTORIA HOLDING 63 B.V. apresentou contra-alegações concluindo:
“A. A Recorrente vem entre outras, alegar a ineptidão do requerimento de injunção, nos termos do art. 186º nº1 e 2 do C.P.C, por falta de indicação da causa de pedir;
B. Ora, a Recorrente, não pode vir alegar factos novos, sem sede de recurso, quando deveria ter alegado em sede de oposição, uma vez que se trata de matéria de excepção do art. 573.º n.º 2 C.PC.;
C. O Tribunal de recurso, não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida, por se tratar de questões novas, que estão vedadas da apreciação do tribunal, nos termos do art. 608º nº 2 C.PC.;
D. O Recurso constitui um instrumento processual para reapreciar questões concretas, quer sejam de facto quer sejam de direito, que tenham sido mal decidas, e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo; Não obstante,
E. Não cabe razão à Recorrente quando indica que o requerimento de injunção está inquinado pelo vício da nulidade;
F. Note-se que Requerimento de injunção está sujeito a um modelo onde apenas é possível expor de forma sucinta os factos em que se baseia, dado o espaço exíguo disponível para tal;
G. Esse modelo não dispensa o Requerente dos ónus de alegação e prova da causa de pedir, mas também não implica, que no requerimento injuntivo devam constar todos os elementos essenciais;
H. O Recorrido, no seu requerimento de injunção incluí todos os elementos essenciais que lhe são exigidos, sejam eles: a identificação do contrato, a data do incumprimento, o período a que se refere, a concreta exposição dos factos que fundamentam a sua pretensão e os montantes em divida;
I. Assim, a petição só será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da cauda de pedir, conforme a letra da lei do art. 186 º nº 2 al. a) do C.P.C, o que não se verifica;
J. Mais, o Recorrido disponibilizou ao longo do processo, sempre que lhe foi solicitado, documentação, que corrobora com a sua pretensão, e em fine completa o já indicado no requerimento de injunção, já que no momento de entrega deste não é possível juntar qualquer documento;
K. Pelo que em suma, a Recorrente escuda-se num argumento desprovido de qualquer sentido, face ao procedimento em causa;
L. A Recorrente vem ainda argumentar a existência de erros na apreciação da matéria de facto a decidir e na apreciação da prova;
M. Nomeadamente, alega que o tribunal não se cingiu a decidir sobre a falta de pagamento do saldo a descoberto, mas sim, foi mais além, e decidiu também qual dos Réus era responsável;
N. Decisão essa que considera que foi mal tomada pelo Tribunal a quo;
O. Ora, estabelece o art. 607º do C.P.C, que o Juiz “(…) aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção de cada facto (…)”;
P. Nesse sentido tempos como ponto assente, que MM. Juiz, não proferiu decisão restringindo-se aos limites delineados pelo Autor, e sim tutelou mais além.
Q. Por outro lado, alega a Recorrente também que nunca ficou provado que os Réus tenham beneficiado da “falta de saldo”;
R. No entanto, ficou claro, para o Recorrido e para o Tribunal a quo que o depoimento prestado por MC… (e aqui transcrito), suportado pela prova documental junta aos autos, explicitam de forma clara e coerente quem utilizava a conta, e a forma que a mesma era utilizada.
S. Sendo que, foi também esta análise transversal que o MM. Juiz teve ao proferir a douta sentença.
T. Já no que diz respeito ao contrato de empréstimo junto por MC…, onde consta a assinatura da Recorrente igual ao contrato de abertura de conta à ordem, aos cheques e livrança.
U. A Recorrente desvaloriza a junção do mesmo, e indica ainda que nem o próprio banco conhece o referido;
V. Esquece-se, porém, que o Banco só é notificado para vir juntar os extractos e não o contrato, sendo que não seria de estranhar que o Banco não o tivesse na sua posse já que o mesmo nunca foi constituído por falta de assinatura de MC…;
W. Esta prova que até a própria assumiu o débito, já que no mesmo consta o exacto valor do descoberto, validando ainda mais a pretensão do Recorrido;
X. Lógica essa, que também o Tribunal a quo adoptou.
Y. Já no que respeita aos depoimentos de parte de MC…, a Recorrente veio considerá-los incoerentes.
Z. Mais uma vez, discordamos deste ponto, concluindo que foram fulcrais para o reconhecimento da existência da divida.
AA. Tendo sido, também com base nestes, para além dos documentos juntos durante o decorrer da acção, que o Tribunal a quo baseou a sua decisão, uma vez que estes são no seu conjunto coerentes quando confrontados uns com os outros.
BB. Para último está, a questão da perícia levantada pela Recorrente;
CC. Esta foi devidamente diligenciada pelo Recorrido, já que lhe cabia esse ónus da prova, e não por um outro motivo, como é indiciado pela Recorrente;
DD. Apesar do Recorrido ter diligenciado, a perícia, e do Tribunal a quo ter impulsionado a mesma, a Recorrente não colaborou, nomeadamente junta veio juntar a procuração forense outorgada pela Ré;
EE. Impossibilitou por isso, a Recorrente a perícia, alegando que o fez porque não entendeu porque tinha que juntar a procuração;
FF. Consideramos por isso, que existe uma inversão do ónus da prova, nos termos gerais dos arts. 417º nº 1 e 2 do C.P.C e 344º nº 2 do C.C.
GG. Assim, deveria ter a Recorrente diligenciado atempadamente por nova perícia, não sendo agora o momento para tal.
HH. Culminando a sua inercia no resultado que contesta”.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir, relativamente ao recurso interposto, são:
I) Questões prévias:
1) Se é admissível o conhecimento do objeto do recurso no que respeita à invocação da ineptidão do requerimento de injunção pela recorrente?
2) Se é admissível o conhecimento do objeto do recurso no que respeita ao invocado impedimento da realização da perícia/violação do disposto no artigo 411.º do CPC?
II) Impugnação da matéria de facto:
3) Se devem ser eliminados dos factos provados os factos constantes das alíneas E), F), G), H), I), J) e L)?
III) Do mérito da apelação:
4) Se o Tribunal recorrido, ao enunciar as questões a decidir, violou o art.º 10º n.º 3 do anexo ao DL n.º 269/98 de 1 de setembro?
5) Se o Tribunal recorrido violou o regime do ónus da prova (art. 342.º do CC)?
6) Se o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 236.º, 238.º e 239.º do CC?
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3. Enquadramento de facto:

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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
A. Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 28 de Junho de 2013, em Lisboa, a sociedade BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., cedeu à sociedade PROMONTORIA HOLDING 63 BV, ora Requerente, os créditos que detinha sobre os ora Requeridos, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias.
B. De tal cessão foi o ora Réu, notificado por via postal.
C. De tal cessão foi a ora Ré, notificada por via postal.
D. A Cedente, no âmbito da sua actividade, celebrou com os ora Requeridos os contratos, aos quais foram atribuído o n.º …-….
E. Foi entre o JA…, MJ…, e o BANCO celebrado um contrato de abertura de conta à ordem, tendo ainda sido sinalizada como “Forma de Obrigar”, a modalidade de “C/SOLID. Pode ser movimentada com a assinatura de qualquer dos titulares”.
F. 09/09/2002, aquela conta … apresentava um saldo negativo de 13.482,46 €.
G. O descoberto em apreço resultou de operações realizadas apenas por MJ….
H. MA… nunca utilizou o referido cartão “Premier”, que estava em nome da MJ….
I. Os extractos bancários iam com o nome da MJ… e para a direcção desta sita na Av. …, n.º …, Algés.
J. Em 2004, o CRÉDITO PREDIAL PORTUGUÊS que passou a ser incorporado no Banco Santander Totta S. A. propôs aos requeridos um contrato de empréstimo do mesmo montante de 13.482,46 €, com vista à regularização de dívida emergente do saldo devedor da conta de depósito à ordem n.º …/… provocado pela utilização do Cartão “Premier”.
L. O requerido, porque entendeu que se tratava de dívida exclusiva de MJ…, não assinou o referido empréstimo.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Tendo esses extractos, sido enviados para a morada sita na Avenida …, …, Porta …, … B, …-… Lisboa, indicada pelo ora Réu na data da celebração do contrato, e a quem competia qualquer comunicação de alteração da mesma.
2. O requerido utilizava o cartão de crédito associado à conta identificada em F).
3. Os requeridos foram interpelados ao pagamento.
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4. Enquadramento jurídico:
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I) Questões prévias:
Sobre a conformação do objeto do presente recurso, suscitam-se duas questões prévias, que se passam a conhecer:
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1) Se é admissível o conhecimento do objeto do recurso no que respeita à invocação da ineptidão do requerimento de injunção pela recorrente?
Na secção A – com o título “DAS NULIDADES” – da alegação da recorrente, esta invoca o seguinte:
“A Autora não mencionou factos essenciais na causa de pedir, pelo que, a falta de indicação da causa de pedir importa a ineptidão do requerimento de injunção, nos termos do art.º 186º n.º 1 e n.º 2 a) do C.P.C. e conduz à nulidade de todo o processo.
Estamos portanto, perante uma causa de pedir, que oculta factos essenciais, tais como a origem do saldo a descoberto, o valor concreto e inequívoco desse saldo, a disponibilidade desse saldo em conta e a data de vencimento do mesmo, pelo que, apesar de estarmos no âmbito de uma injunção, a exigência de exposição sucinta não significa falta de alegação dos factos estruturantes da causa de pedir, sob pena de se aniquilar o principio do contraditório num procedimento que afinal é declarativo.
Sendo o processo nulo, a Ré deve ser absolvida da instância, pelo que, considera a Ré, com o devido respeito, que mal andou o Tribunal a quo ao decidir nos termos em que decidiu. Pelo que, impunha-se ao Tribunal a quo ter conhecido oficiosamente esta nulidade no requerimento de injunção, pois conhecendo esta nulidade, a decisão teria sido a absolvição da Ré”.
Depois, ao longo da alegação do ponto C, invoca a recorrente, nomeadamente, o seguinte:
“(…) Quanto a estas questões dadas como provadas, não podemos esquecer do pedido e da causa de pedir da presente ação, senão vejamos: A Autora peticiona no seu requerimento de injunção o pagamento da quantia de €13.482,40, a título de capital; € 1.400,00, a título de juros de mora vencidos e dos juros de mora vincendos para além dos juros compulsórios a calcular nos termos do disposto no art.º 21º n.º2 do DL n.º 269/98 de 01/09.
Fundamentando o seu pedido no facto de por contrato de cessão de créditos, assinado em 28/06/2013, em Lisboa, a sociedade BANCO SANTANDER TOTTA S.A, cedeu à sociedade Promontoria Holding 63 B.V., com domicilio em Oude Utrecgtseweg 16 0000-000 3743 KN Baarn, , os créditos que detinha sobre MJ…, e sobre MC….
Mais alega a Autora que, o BANCO SANTANDER TOTTA S.A., no âmbito da sua atividade, celebrou com os requeridos os contratos, aos quais foram atribuídos o n.º …-…, tendo os referidos contratos, como objeto uma abertura de conta, e que apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os Requeridos não efetuaram, qualquer pagamento, nem prestaram qualquer justificação.
Mais alegou a Autora, que o capital em dívida indicado corresponde ao valor em dívida à data do saldo a descoberto e não liquidado.
 Concluindo este pedido: O que está em causa é a alegada falta do pagamento do saldo a descoberto, e é o pagamento desse valor, que está a ser exigido pela Autora, no seu Requerimento de injunção e não quem é que tem a obrigação de pagar o montante de €13.482,46, como entende (mal) o Tribunal a quo.
 Quanto ao requerimento de injunção: O requerimento de injunção apresentado contém um enunciado fáctico, não apenas deficiente, por manifestamente insuficiente, mas também impreciso, pois não se sabe a origem do valor em causa, apenas refere que foi um crédito que a Autora comprou junto no BANCO SANTANDER TOTTA S.A., não se sabendo quando o valor em causa foi disponibilizado na conta dos Réus, para sua utilização, acrescendo o facto de que, também não se sabe a data em que o Banco estipulou o vencimento da obrigação de pagamento do alegado valor em dívida.
(…) A pretensão da Autora assenta apenas nisto «por contrato de cessão de créditos, assinado em 28 de Junho 2013, em Lisboa, a sociedade BANCO SANTANDER TOTTA S.A, cedeu à sociedade Promontoria Holding 63 B.V., com domicilio em Oude Utrecgtseweg 16 0000-000 3743 KN Baarn, os créditos que detinha sobre os Requeridos. (…) o Cedente., no âmbito da sua atividade, celebrou com os requeridos os contratos, aos quais foram atribuído o n.º …-…, (…) o referido contrato, tinha como objeto uma abertura de conta. Apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os Requeridos não efetuaram, qualquer pagamento, nem prestaram qualquer justificação. O capital em dívida indicado corresponde ao valor em dívida à data do saldo a descoberto e não liquidado.»
(…) Estamos perante uma causa de pedir, que oculta factos essenciais, tais como a origem do saldo a descoberto, o valor concreto e inequívoco desse saldo, a disponibilidade desse saldo em conta e a data de vencimento do mesmo.
(…) Está em causa um procedimento especial simplificado, de natureza declarativa – o procedimento de injunção- ao qual é aplicável, subsidiariamente, as disposições gerais e comuns do processo declarativo comum do processo civil, nos termos do disposto no art.º 549º n.º 1 C.P.C. (…).
Pelo que, a falta de indicação da causa de pedir importa a ineptidão do requerimento de injunção, nos termos do art.º 186º n.º 1 e n.º 2 a) do C.P.C. e conduz à nulidade de todo o processo. Assim, impunha-se ao Tribunal a quo ter conhecido oficiosamente esta nulidade no requerimento de injunção, no qual existe uma omissão de factos essenciais na causa de pedir”.
E nas conclusões 2.ª a 6.ª da mesma alegação, conclui a apelante:
“2. O requerimento de injunção apresentado contém um enunciado fáctico, não apenas deficiente, por manifestamente insuficiente, mas também impreciso, pois não se sabe a origem do valor em causa, apenas refere que foi um crédito que a Autora comprou junto do BANCO SANTANDER TOTTA S.A., não se sabendo quando o valor em causa foi disponibilizado na conta dos Réus para utilização, nem se discrimina o valor apresentado, não fazendo referência à data em que o Banco estipulou o vencimento da obrigação de pagamento do alegado valor em dívida.
3. Estamos perante uma causa de pedir, que oculta factos essenciais, tais como a origem do saldo a descoberto, o valor concreto e inequívoco desse saldo, a disponibilidade desse saldo em conta e a data de vencimento do mesmo, pelo que, apesar de estarmos no âmbito de uma injunção, a exigência de exposição sucinta não significa falta de alegação dos factos estruturantes da causa de pedir, sob pena de se aniquilar o principio do contraditório num procedimento que afinal é declarativo.
4. Nos termos do art.º 186º n.º 1 e 2 al. a) do Código do Processo Civil a falta de indicação da causa de pedir importa a ineptidão do requerimento injuntivo) e conduz à nulidade de todo o processo, e consequentemente, à absolvição da Ré.
5. mal andou o Tribunal por o requerimento de injunção é inepto por falta de factos essenciais na causa de pedir, pelo que a Ré deve ser absolvida da instância e do pedido.
6. Sendo inepto o Requerimento de Injunção, a decisão da matéria de facto dada como provada, violou o disposto no art.º 186º do C.P.C, que, caso não tivesse sido violada esta norma, a decisão seria a da absolvição da Ré quer da instância, quer do pedido”.
Sobre este ponto, a apelada Promontoria Holding 63 B.V. contra-alegou o seguinte:
“(…) B. (…) a Recorrente, não pode vir alegar factos novos, em sede de recurso, quando deveria ter alegado em sede de oposição, uma vez que se trata de matéria de excepção do art. 573.º n.º 2 C.PC.;
C. O Tribunal de recurso, não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida, por se tratar de questões novas, que estão vedadas da apreciação do tribunal, nos termos do art. 608º nº 2 C.PC.;
D. O Recurso constitui um instrumento processual para reapreciar questões concretas, quer sejam de facto quer sejam de direito, que tenham sido mal decidas, e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo; Não obstante,
E. Não cabe razão à Recorrente quando indica que o requerimento de injunção está inquinado pelo vício da nulidade;
F. Note-se que Requerimento de injunção está sujeito a um modelo onde apenas é possível expor de forma sucinta os factos em que se baseia, dado o espaço exíguo disponível para tal;
G. Esse modelo não dispensa o Requerente dos ónus de alegação e prova da causa de pedir, mas também não implica, que no requerimento injuntivo devam constar todos os elementos essenciais;
H. O Recorrido, no seu requerimento de injunção incluí todos os elementos essenciais que lhe são exigidos, sejam eles: a identificação do contrato, a data do incumprimento, o período a que se refere, a concreta exposição dos factos que fundamentam a sua pretensão e os montantes em divida;
I. Assim, a petição só será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, conforme a letra da lei do art. 186 º nº 2 al. a) do C.P.C, o que não se verifica;
J. Mais, o Recorrido disponibilizou ao longo do processo, sempre que lhe foi solicitado, documentação, que corrobora com a sua pretensão, e em fine completa o já indicado no requerimento de injunção, já que no momento de entrega deste não é possível juntar qualquer documento;
K. Pelo que em suma, a Recorrente escuda-se num argumento desprovido de qualquer sentido, face ao procedimento em causa”.
Em face do exposto, cumpre questionar, desde logo, se é admissível o conhecimento do recurso no que respeita à invocação da ineptidão do requerimento de injunção pela recorrente?
Ora, preliminarmente à questão de saber se ocorreu ineptidão do requerimento injuntivo, importa apreciar, antes de mais, se é admissível a invocação de tal questão pela recorrente, nesta sede de recurso.
É que, conforme resulta da conjugação do disposto no artigo 663.º, n.º 2, do CPC, com o previsto no artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, no presente recurso, este Tribunal conhece de todas as questões suscitadas, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Por outro lado, atenta a sua função no âmbito do conhecimento dos recursos e sob pena de conhecer, em primeira linha, de questões antes não suscitadas no Tribunal de 1.ª instância, ao Tribunal de recurso apenas cumpre conhecer das questões suscitadas e daquelas que, não o tendo sido, sejam de conhecimento oficioso.
O tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas (cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 14-05-93, in CJSTJ, 93, II, p. 62 e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-11-95, in CJ, 95, V, p. 98).
Assim, ressalvada a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso (cfr. Ac. STJ de 23-03-96, in CJ, 96, II, p. 86), encontra-se excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso.
“A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa, pelo que o tribunal ad quem não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, Processo 169487/08.3YIPRT-A.C1, relator HENRIQUE ANTUNES).
Dito de outro modo, conforme se salientou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo 1724/15.3T8VRL.G1, relator JOSÉ AMARAL): “O recurso não é meio próprio para requerer novas provas que deviam ter sido apresentadas ou produzidas no momento processualmente oportuno (muito menos para repetir as que, em 1ª instância, tenham sido indeferidas), ainda que, ao motivar a decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido assinale a sua falta”.
É que, de facto, “os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-04-2019, Processo 10776/15.5T8PRT.P1, rel. MANUEL DOMINGOS FERNANDES).
No caso dos autos, a recorrente vem invocar que a autora não invocou elementos factuais essenciais para a configuração da causa de pedir, o que, em seu entender, conduz à ineptidão do requerimento injuntivo, por falta de causa de pedir.
Sucede que, compulsados todos os termos do processo, analisados os articulados das partes, verifica-se que a apelante não invocou tal questão antes da presente alegação de recurso, configurando-se a invocação da mesma, no momento em que ocorreu, como a dedução de uma “questão nova”.
De facto, conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-11-2018 (Processo 212/16.5T8PTL.G1, rel. AFONSO CABRAL DE ANDRADE), “quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova. Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido”.
Assim, não tendo constituído o objecto da presente lide, a respectiva factualidade que pressuporia a apreciação de tal questão, teria que ter sido, tempestivamente, objeto de oportuna alegação, o que não sucedeu.
E, por outro lado, a mesma questão não é passível de ser conhecida oficiosamente por este Tribunal de recurso.
É que, conforme se assinalou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2019 (Processo 424/13.3T2AVR.P1.S1, rel. OLIVEIRA ABREU), “o que delimita o recurso e constitui o seu ponto de cognoscibilidade é a decisão impugnada, não podendo, o respectivo âmbito, exceder o que foi fixado e delimitado pela actividade cognoscente do órgão jurisdicional. Os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso”.
Na realidade, conforme sublinhado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-10-2019 (Processo 1214/18.2T8MCN.P1, rel. ANA PAULA AMORIM), “no que concerne às nulidades o Código de Processo Civil prevê duas realidades distintas.
A lei prevê, por um lado, as nulidades das decisões (em sentido lato abrangendo sentenças, acórdãos e despachos), que se encontram previstas, taxativamente, no art. 615º CPC.
A sua arguição é feita de harmonia com o nº2, 3, 4 do art. 615º, uma vez no próprio tribunal em que foi proferida a decisão, e outras vezes, em via de recurso, no tribunal ad quem.
Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.
A par destas nulidades, a lei prevê as nulidades processuais que “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“.
Atento o disposto nos art. 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades“, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos.
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art. 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º CPC.
A omissão de pronúncia, na sentença ou em despacho autónomo, sobre requerimento formulado pela parte não consta como uma das nulidades previstas nos art. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art. 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição nos termos previsto no art. 199º CPC.
Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art. 149º/1 CPC. Não sendo atempadamente arguida a eventual irregularidade encontra-se sanada.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art. 196º a 199º CPC”.
Ora, conforme resulta do exposto, a invocação que a apelante apenas ora efetuou, no sentido de concluir que a petição inicial/requerimento inicial apresentado padece do vício de ineptidão, traduz a invocação de uma “questão nova”, que antes não foi suscitada, que não é passível de ser objeto de conhecimento por este Tribunal de recurso.
É que, embora impenda sobre o juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, este poder cognitivo está limitado, por um lado, às questões suscitadas pelas partes e, por outro lado, às questões de conhecimento oficioso, conforme prescreve o art. 608.º, n.º 2, do CPC.
No caso, a invocação da ineptidão do articulado inicial apresentado pela autora constitui uma questão que, no momento em que foi invocada, se encontra vedado ao Tribunal o seu conhecimento.
É que a ineptidão da petição inicial acha-se prevista no artigo 186.º do CPC.
E, quanto aos termos do conhecimento desta nulidade, dispõe o artigo 196.º do CPC que, das nulidades mencionadas nos artigos 186.º e 187.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 191.º e nos artigos 193.º e 194.º pode o tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas; das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso”.
Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 198.º, n.º 1, do CPC, “as nulidades a que se referem o artigo 186.º (…) só podem ser arguidas até à contestação ou neste articulado”.
E, relativamente ao conhecimento oficioso da nulidade conducente à ineptidão da petição inicial pelo Tribunal dispõe o artigo 200.º, n.º 2, do CPC que: “As nulidades a que se referem o artigo 186.º (…) são apreciada no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final”.
Ora, tal arguição pela ora apelante não teve lugar, senão nesta sede de apelação e quanto ao conhecimento oficioso pelo tribunal, “parece contudo que, por decalcada na correspondente nulidade total – não havendo sido esta, ou a ineptidão que a implica, arguida na oposição ao procedimento – tal conhecimento oficioso apenas poderia ter lugar até à sentença final” (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2012, Processo 184229/11.8YIPRT.L1-2, rel. EZAGÜY MARTINS).
Ou seja: diversamente do que ocorre com “As outras nulidades”, a que se refere o n.º 3 do mesmo art.º 200.º do CPC e relativamente às quais, a sua arguição pode ocorrer “a todo o tempo enquanto não deverem considerar-se sanadas” e, relativamente às quais, “não fazia muito sentido que só pudesse ter lugar oficiosamente até ao mesmo despacho (saneador) - ou à sentença da 1.ª instância quando o juiz podia delas não se ter apercebido e o citando ou o Ministério Público mantinha para além dele - ou dela - a faculdade de reclamar. Passa, portanto, inclusivamente, para o tribunal de recurso o poder de conhecer destas nulidades.” (assim, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto; Código de Processo Civil, Anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, p. 357).
“Face ao preceituado no art. 200º, nº1, do CPC a nulidade principal prevista no art. 186º do CPC, é apreciada no despacho saneador, se o não tiver sido antes - podendo conhecer-se dela até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador. Assim, a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-02-2019, Processo 82/10.7TBPTL.B.G1, rel. FERNANDA PROENÇA FERNANDES).
Ou seja: “A ineptidão da petição inicial não pode ser arguida pela primeira vez em sede de recurso. Ao tribunal está vedado também conhecer oficiosamente da questão em sede de recurso” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-12-2018, Processo 1216/09.0TBCTB.C1, rel. EMÍDIO SANTOS).
Assim, no caso dos autos, não tendo havido lugar à prolação de despacho saneador, a questão da ineptidão do requerimento injuntivo apenas poderia ter sido conhecida oficiosamente pelo Tribunal até à prolação da sentença recorrida.
Não tendo sido oportunamente arguida a ineptidão do requerimento injuntivo e encontrando-se, neste momento, precludida a possibilidade de conhecimento oficioso da correspondente nulidade total/exceção dilatória, vedado se encontra ao Tribunal o conhecimento da aludida questão que, apenas em sede recursória, foi arguida.
Por outras palavras: A alegação de nulidade não teve lugar até à prolação da sentença final, não tendo ocorrido previamente à alegação ocorrida em sede da presente apelação, pelo que, a arguição em questão é temporalmente extemporânea, face ao disposto no artigo 198.º, n.º 1, do CPC, porque o não foi até à contestação e, por outro lado, não é passível já de ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal, pois, foi já prolatada sentença final, conforme decorre do n.º 2 do artigo 200.º do mesmo Código.
Tal conduz, pelos motivos expostos, à inadmissibilidade do conhecimento da questão.
Assim, conclui-se não ser admissível a invocação da ineptidão do requerimento de injunção pela recorrente, porque tal determinaria o indevido conhecimento de questão nova, antes não suscitada e de que o Tribunal não pode oficiosamente conhecer.
O objeto do recurso interposto não pode, pois, ser conhecido nesta parte.
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2) Se é admissível o conhecimento do objeto do recurso no que respeita ao invocado impedimento da realização da perícia/violação do disposto no artigo 411.º do CPC?
Invocou ainda a apelante o seguinte:
“O contrato de empréstimo junto aos Autos pelo Réu, mereceu impugnação por parta da Autora e por parte da Ré MJ…, pois em nada, veio provar a existência do saldo a descoberto e a origem detalhada do mesmo.
Acresce que, o próprio contrato na sua redação padece de algumas imprecisões, nomeadamente, é um contrato sem data, não sabemos o ano e o mês do mesmo, pois o referido contrato, que mereceu credibilidade pelo Tribunal a quo, não contêm o dia, nem o mês em que foi supostamente assinado, e pelo que se depreende das declarações do Réu, o mesmo nem chegou a ser entregue ao banco, porque o banco não aceitou por falta de assinatura, assim sendo, custa a entender como o Tribunal a quo deu importância a tal contrato.
Contudo, e o que nos interessa para este recurso, é o facto de que a Autora e a Ré requereram a perícia à assinatura da Ré aposta no referido contrato, pois a realização da perícia seria essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente, para averiguar se um documento junto pelo Réu carecia ou não de alguma veracidade.
Por despacho de 25.01.2018, o Tribunal refere que “a perícia requerida pela 2ª Ré, com a extensão por esta indicada afigura-se-nos pertinente, admissível e necessária para apuramento da verdade, pelo que , será determinada a respetiva realização com a extensão requerida[…]. Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artº. 476º do CPC, fixo como objecto da perícia, o exame de reconhecimento da assinatura da 2º Ré MJ…, destinado a demonstrar se as assinaturas imputadas à mesma foram apostas pelo respectivo punho, nos seguintes documentos a) Contrato de empréstimo cuja cópia consta de fls. 28 verso a 30 verso: b) Livrança cuja cópia consta e fls. 31; c) Ficha de assinaturas de conta bancária cujo original consta de fls. 177”[…]”.
Nesse mesmo despacho, o Tribunal a quo notifica a Ilustre Mandatária da 2ª Ré, “para que, no prazo de 10 dias, junte aos autos o original da procuração forense outorgada pela ré sua constituinte, cuja digitalização foi junta aos autos em 27/01/2016 (fls. 38 verso).”
Como se pode verificar, o Tribunal não mencionou a razão pela qual, solicitava a junção do original da procuração forense passada a favor da Dra. CM…. O pagamento do emolumento exigido para se realizar a perícia, foi efetuado pela Ré, em 30.01.2018, demonstrando o interesse da Ré na realização da mesma.
Por despacho de 21-06-2018, o Tribunal a quo volta a insistir pela junção do original da procuração forense outorgada pela ré à ilustre mandatária, voltando, o Tribunal a quo, a não mencionar os motivos para tal pedido, e no quê, que essa junção iria contribuir para a realização da perícia requerida.
Em 31-10-2018 o Tribunal determina o prosseguimento dos autos sem realização da perícia, invocando a falta de interesse manifestada na realização da mesma, pois não tinha sido junto aos autos qualquer procuração por parte da 2º ré.
Nesse despacho, menciona pela primeira vez a razão pela qual, solicitou o original da procuração forense, passando a transcrever o mencionado no Despacho: “Por despacho proferido em 25/01/2018, foi determinada a realização da perícia requerida pela 2ª Ré, fixando-se o seu objecto no exame de reconhecimento da assinatura da 2ª ré em alguns documentos. A perícia determinada nos autos é realizada através da comparação das assinaturas suspeitas da 2ª Ré com outros autógrafos dessa parte. Ora, apesar de poderem ser recolhidos autógrafos à 2ª Ré, essa recolha nunca será totalmente espontânea pois a parte de antemão que os autógrafos se destinam à realização da referida perícia. Por esse motivo, é de todo conveniente que a comparação seja efectuada com outros documentos nos quais conste a assinatura da 2ª ré em momento anterior à determinação da perícia. Por outro lado, os reconhecimentos da letra e assinatura apenas podem ser efectuados em documentos originais, não bastando a simples cópia. O único documento dos autos em relação ao qual existe certeza que foi a 2ª ré a apor a sua assinatura, porque foi a mesma que o juntou, é a procuração forense outorgada a favor a sua mandatária cuja cópia consta de fls.38 verso e que foi junta em 27/01/2016”.
Com tal decisão de indeferimento, não pode a ora Apelante concordar, atento o disposto no art.º 411 do C.P.C., que consagra o poder-dever do juiz de realizar diligencias probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos, o Tribunal a quo, apenas entendeu que a junção da procuração forense passada a favor da Ilustre Mandatária da Ré iria servir para apuramento da verdade, quando existiam outros meios e outras alternativas para se obter a recolha da assinatura da Ré nos referidos documentos.
Sendo que, e passando a transcrever o Ac.TRL (pº 363/10.0TVLSB-A.L1-6, Relator Maria de Deus Correia); “se o Tribunal a quo deferiu a realização da prova pericial relativamente a determinados factos, foi porque entendeu que a perícia era o meio probatório adequado, por estar em causa a apreciação de factos, relativamente aos quais são necessários conhecimentos especiais que, normalmente os juízes não possuem. Impõe-se concluir que o despacho através do qual o Tribunal a quo deferiu a realização da perícia, foi proferido após um juízo prévio de que tal diligencia se mostrava não só útil como necessária à descoberta da verdade e à justa composição do litigio. […] Assim sendo, mal se compreende que o Tribunal a quo tenha dado por finda a diligencia sem que a mesma se tenha realizado, e sem que tenha sido fundamentado o motivo pela qual a diligencia teria deixado de ser necessária. Na verdade, considerando que a perícia só foi ordenada porque só através dela se poderia obter a prova de factos cuja apreciação exige conhecimentos especiais que os julgadores não possuem e portanto, a realização da mesma mostra-se necessária, não se vê que o Tribunal pudesse decidir, por sua iniciativa, não proceder a tal diligência, a menos que justificasse a sua desnecessidade superveniente ou que a mesma deixasse de ser possível.”
O Tribunal não justificou a desnecessidade superveniente da perícia, nem demonstrou a impossibilidade superveniente da mesma, apenas se limitou a indeferir a perícia, pela falta de junção por parte da 2ª Ré da procuração forense emitida a favor da mandatária, facto que não inviabilizava a concretização da perícia por outros meios e havendo outras alternativas.
Com este indeferimento, o Tribunal a quo não atendeu ao requerido quer pela 2ª Ré, quer o requerido pela Autora, que também mostrou interesse na realização da perícia, estando a cercear o direito que as respetivas partes tinham de produzir a prova relativamente a factos que foram trazidos ao processo.
A perícia à assinatura aposta no contrato de empréstimo junto pelo Réu, foi requerida quer pela Autora, quer pela Ré.
O facto de não ser junto pela Ré, o original da Procuração Forense passada a favor da Ilustre Mandataria, não é motivo impeditivo para não se realizar outras diligências, a fim de se obter a assinatura da mesma.
O Tribunal a quo não justificou a desnecessidade superveniente da perícia, nem demonstrou a impossibilidade superveniente da mesma, apenas se limitou a indeferir a perícia, violando o disposto no art.º 411 do C.P.C., que consagra o poder-dever do juiz de realizar quaisquer diligências probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos”.
E, em conformidade, a apelante expôs nas conclusões 41.ª a 44.ª, que:
“41. A perícia requerida pelas partes (Autora e Ré), foi aceite pelo Tribunal.
42. O posterior indeferimento da perícia pelo Tribunal, por falta de apresentação do original da procuração forense passada a favor da Ilustre mandatária da Ré, não é admissível, dado que, o Tribunal poderia se ter socorrido de outros meios e usado outra alternativa para obter a recolha da assinatura da Ré.
43. Não o tendo feito, nem justificado a desnecessidade superveniente da realização da perícia, nem tendo demonstrado a impossibilidade superveniente da mesma, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 411º do C.P.C, que consagra o poder-dever do Juiz de realizar quaisquer diligencias probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade.
44. Estando a cercear o direito que as respetivas partes tinham de produzir prova relativamente a factos que foram trazidos ao processo, dificultando assim, a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa”.
A apelada Promontoria Holding 63 B.V. contrapôs o seguinte:
“(…) BB. Para último está, a questão da perícia levantada pela Recorrente;
CC. Esta foi devidamente diligenciada pelo Recorrido, já que lhe cabia esse ónus da prova, e não por um outro motivo, como é indiciado pela Recorrente;
DD. Apesar do Recorrido ter diligenciado, a perícia, e do Tribunal a quo ter impulsionado a mesma, a Recorrente não colaborou, nomeadamente junta veio juntar a procuração forense outorgada pela Ré;
EE. Impossibilitou por isso, a Recorrente a perícia, alegando que o fez porque não entendeu porque tinha que juntar a procuração;
FF. Consideramos por isso, que existe uma inversão do ónus da prova, nos termos gerais dos arts. 417º nº 1 e 2 do C.P.C e 344º nº 2 do C.C.
GG. Assim, deveria ter a Recorrente diligenciado atempadamente por nova perícia, não sendo agora o momento para tal.
HH. Culminando a sua inercia no resultado que contesta”.
Face ao invocado, cumpre apreciar se é admissível o conhecimento do objeto do recurso no que respeita ao invocado impedimento da realização da perícia/violação do disposto no artigo 411.º do CPC.
O artigo 411.º do CPC – correspondendo, em parte, ao anterior artigo 265.º do CPC de 1961 – estatui sobre o denominado “princípio do inquisitório” em sede de instrução do processo, prescrevendo que: “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Apreciando este princípio – aliás, expresso ou manifestado perante outros normativos legais (v.g. arts. 6.º, 7.º, 436.º, 452.º, 467.º, 490.º, 526.º, 590.º, n.º 2, al. c) e 3 e 607.º, nº 1) - , refere-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019 (Processo 68/12.7TBCMN-C.G1, rel. CONCEIÇÃO SAMPAIO) que: “O processo é constituído por uma série de atos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, devendo obedecer a formas e requisitos adequados a esse escopo. Sem regras o processo fica sujeito à indisciplina das partes e cria insegurança, e presta-se a manobras que prejudiquem a obtenção da decisão em tempo razoável e útil.
Tem portanto o processo exigências técnicas, designadamente sujeitando as partes a um tecido de ónus necessários à boa administração da justiça.
Um dos princípios do processo civil é precisamente o da auto-responsabilidade das partes, segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco.
O princípio do inquisitório traduz uma ideia de divisão subordinada de trabalhos, dominante em matéria probatória, entre o juiz e as partes (estas num primeiro plano).
Recebeu consagração legal no art. 411.º ao dispor que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
O princípio do inquisitório exerce atualmente, é certo, um importante papel no processo civil português mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido, que se coaduna em par em torno dos dois princípio).
O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova.
Como escreve Mariana França Gouveia esteirada nos ensinamentos dos mais ilustres processualistas, “O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exato limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto. O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar). No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão.”
Compreende-se, assim, por que o princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.
Assim, se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse” (assim, Nuno Lemos Jorge; “Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, in Julgar, nº 3, p. 70).
“Ou seja, o juiz não se encontra obrigado a proceder à inquirição de uma testemunha só porque a parte, que não apresentou oportunamente o rol, invoca a importância daquela inquirição para a descoberta da verdade. (….). Esse uso decorrerá da ponderação feita pelo juiz, em face das circunstâncias concretas que em cada caso se deparem; o que afasta a sua aplicação automática na sequência de simples requerimento, em sede de julgamento, de uma das partes (ou de ambas)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-03-2013 Processo 293/12.0TBVCT-J.G1, rel. ANA CRISTINA DUARTE).
Não pode, pois, o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.
Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-02-2016 (Processo n.º 788/14.1T8VNG, rel. PEDRO MARTINS): “O princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) não pode ser utilizado para, objectivamente, auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do art. 423 do CPC”.
O disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
Assim, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-03-2018 (Processo 14/15.6T8VRL-C.G1, rel.      JOÃO DIOGO RODRIGUES):
“1- De acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade.
2- Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir.
3- Neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia”.
Dito isto, verifica-se que a recorrente se insurge contra o despacho de indeferimento da perícia que tinha requerido.
Tal despacho, prolatado em 31-10-2018 é do seguinte teor:
“(…)Da realização de prova pericial:
Por despacho proferido em 25/01/2018, foi determinada a realização da perícia requerida pela 2ª ré, fixando-se o seu objecto no exame de reconhecimento da assinatura da 2ª ré em alguns documentos.
A perícia determinada nos autos é realizada através da comparação das assinaturas suspeitas da 2ª ré com outros autógrafos dessa parte. Ora, apesar de poderem ser recolhidos autógrafos à 2ª ré, essa recolha nunca será totalmente espontânea pois a parte sabe de antemão que os autógrafos se destinam à realização da referida perícia. Por esse motivo, é de todo conveniente que a comparação seja efectuada com outros documentos nos quais conste a assinatura da 2ª ré em momento anterior à determinação da perícia. Por outro lado, os reconhecimentos de letra e assinatura apenas podem ser efectuados em documentos originais, não bastando a simples cópia.
Ora, o único documento constante dos autos em relação ao qual existe certeza que foi a 2ª ré a apor a sua assinatura, porque foi a mesma que o juntou, é a procuração forense outorgada a favor da sua mandatária cuja cópia consta de fls. 38 verso e que foi junta em 27/01/2016.
Por esse motivo, logo no despacho de 25/01/2018, foi determinado à 2ª ré que juntasse o original dessa procuração no prazo de 10 dias.
Regularmente notificada, a 2ª ré não juntou aos autos a referida procuração nem nada requereu nos autos.
Por novo despacho proferido em 21/06/2018, foi novamente ordenada a notificação da Ilustre Mandatária da 2.ª ré, para que, no prazo de 10 dias, juntasse aos autos o original da procuração forense outorgada pela ré sua constituinte, cuja digitalização foi junta aos autos em 27/01/2016 (fls. 38 verso), sob pena de não realização da perícia requerida pela sua própria constituinte.
Regularmente notificada por ofício expedido no dia seguinte, até ao momento não foi junta aos autos qualquer procuração, nem nada foi dito nos autos em justificação dessa falta.
Desta forma, atenta a falta de interesse manifestada na realização da perícia requerida por si própria, tendo em conta que o documento acima referido se afigura especialmente relevante para a realização da perícia e valor probatório da mesma, determino o prosseguimento dos autos sem realização da perícia requerida (…).”.
Importa sublinhar, quanto à prova pericial, a distinção entre a fase de proposição deste meio de prova (pelas partes ou pelo tribunal), a fase da sua admissão, a fase da sua preparação (fixação do objecto da perícia) e a fase da sua produção probatória (cfr. Antunes Varela; Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 584-586).
Ora, se é certo que se tem entendido que o despacho que fixa o objecto da perícia não se situa no âmbito da admissão do próprio meio de prova e que, por isso, “o despacho que fixa o objecto da prova pericial (previamente admitida por meio de despacho que não foi objecto de oportuno recurso) não equivale a despacho que admite ou rejeite a perícia, não se integrando na previsão normativa do art. 644º, n.º 2 al. d) do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-04-2016, Processo 1239/13.4TBPTL-B.G1, rel. JORGE SEABRA), não é menos certo que, no caso dos autos, não chegou a ser proferido tal despacho de fixação do objeto da perícia e o despacho proferido em 31-10-2018 determinou o prosseguimento dos autos sem a realização da perícia requerida, envolvendo o efetivo indeferimento da perícia antes requerida, ou seja, sem dúvida, que tal despacho ainda se insere no âmbito da fase de admissão da prova pericial, que rejeitou.
Sucede que a ora recorrente não impugnou, como poderia, o despacho de indeferimento de 31-10-2018, não tendo, também, por outra parte, renovado, em sede de audiência final, o requerimento probatório no sentido de realização de tal meio de prova.
Dispõe, nesta sede, o artigo 644.º do CPC nos seguintes termos:
“1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g) De decisão proferida depois da decisão final;
h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.”.
Em anotação a este normativo, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pire de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 776) o seguinte:
“Confrontado com qualquer decisão de 1.ª instância relativamente à qual estejam reunidos todos os pressupostos da recorribilidade em função do valor, da sucumbência ou de alguma norma especial, a parte vencida que pretendam impugná-la deverá verificar se a mesma se integra ou não em algum dos preceitos dos n.ºs. 1 e 2.
Obtendo resposta positiva, a parte em o ónus de interpor recurso no respetivo prazo, sob pena de se formar caso julgado; já se a resposta for negativa, a impugnação da decisão é diferida para a ocasião em que for interposto recurso de alguma das decisões previstas no n.º 1 ou, se for ocaso, depois de transitar em julgado a decisão final”.
“A alínea d) do nº 2 do art.º 644º do CPC abrange tanto a admissão como a rejeição de meios de prova, ou seja, a pronúncia relativa a requerimentos de prova, não consentindo distinções entre meios de prova novos ou velhos, diferentes ou iguais aos apresentados pela parte contrária, já produzidos ou a produzir. As razões que justificam a admissibilidade de apelação autónoma e imediata das decisões sobre os meios de prova prendem-se com a conveniência de atenuar os riscos de uma futura inutilização do processado” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2015, Processo 465/14.3T8OER-A.L1-1, rel. MARIA DA GRAÇA ARAÚJO).
Conforme decorre da conjugação dos n.ºs. 1 a 3 do mencionado artigo 644.º do CPC, do despacho de 31-10-2018 que rejeitou o meio de prova requerido pela recorrente – no caso a produção de prova pericial – caberia a interposição de recurso de apelação autónoma, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo – cfr. artigos 644.º, n.º 2, al. d), 645.º, n.º 1 e 647.º, todos do CPC.
Ora, sucede que, conforme se viu, a ré, ora apelante, não impugnou o dito despacho que ora pretende colocar em crise, pelo que, a decisão de indeferimento da prova pericial prolatada em 31-10-2018 transitou em julgado, encontrando-se vedada a reapreciação da mesma no âmbito deste recurso.
Conclui-se, pois, não ser admissível o conhecimento do objeto do recurso interposto no que concerne ao invocado impedimento da realização da perícia/violação do disposto no artigo 411.º do CPC.
*
II) Impugnação da matéria de facto:
Conforme se disse, a ré/apelante insurge-se contra a seleção factual operada pelo Tribunal recorrido, considerando que deveriam ser considerados factos não provados, os constantes das alíneas E), F), G), H), I), J) e L) dos factos provados.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada e constante de tais meios de prova.
Dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, Relator JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
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3) Se devem ser eliminados dos factos provados os factos constantes das alíneas E), F), G), H), I), J) e L)?
A apelante considerou que ocorreram erros na interpretação da matéria de facto a decidir e na apreciação da prova, visando a eliminação das alíneas G) a L) dos factos provados.
Para além disso, aludindo às alíneas E) e F) dos factos provados, invocou a ré que dos extratos bancários juntos pela autora, como doc. 4 (Requerimento datado de 24.04.2016), não se retira a origem do saldo a descoberto, não se podendo concluir, “nem dar como provado um saldo a descoberto e a sua existência, sem ter prova cabal da origem do mesmo”.
A dificuldade inerente ao julgamento de facto, assenta na conjugação de fragmentos de factos probatórios, de índole diversa, por vezes, contraditória, uns apontando num sentido, outros noutro, que o julgador terá de compatibilizar, apreciando criticamente as provas. Como dá nota Marta João Dias (“A fundamentação do juízo probatório – breves considerações”, in Julgar, n.º 13, 2011, p. 176): “Julgar de facto é a complexa operação de interpretação da realidade trazida ao processo pelas partes, isto é, permitindo às partes fazer prova dos factos alegados nos articulados, com o respeito pelo princípio do contraditório, tendo em conta as regras de repartição do ónus da prova e fazendo uso dos poderes de investigação que a lei lhe confere, o julgador afere a verdade dos factos, julgando-os provados ou não provados, e assim demarcando a realidade objecto do litígio (o thema decidendum)”.
Conforme decorre do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, o critério de julgamento assenta na livre apreciação das provas, segundo a prudente convicção do julgador.
A convicção é o estado de certeza ou incerteza na verdade de um facto.
“No que toca à valoração da prova no âmbito de um processo judicial, este estado não pode ser um estado de fé, impõe-se que seja um estado crítico, formado de acordo com critérios de prudência. Assim, poderemos dizer que o julgador é livre na valoração da prova (na apreciação e na formação da convicção), na justa medida em que os meios de prova sujeitos à sua apreciação não têm um valor legal predeterminado, mas a decisão não o é, ou seja, a convicção exteriorizável pela decisão não pode ser uma “íntima convicção” compreendida como um feeling. Por outro lado, também não é uma “pura objectividade” lógico-racional, que se possa demonstrar. O estado de certeza da verdade, que há-de corresponder sempre a uma probabilidade, manifesta-se num juízo de certeza prático-emocional que, não obstante a inapagável nota pessoal, não cai num subjectivismo arbitrário, mas é antes marcada pela “objectividade da vida”, isto é, no decidir, o julgador convoca a sua experiência ou vivência pessoal, o que mais não é do que o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere e que viabiliza o nosso conviver, pelo que a verdade a emergir há-de ser a intersubjectivamente partilhada e experimentada” (cfr. Marta João Dias; “A fundamentação do juízo probatório – breves considerações”, in Julgar, n.º 13, 2011, pp. 178-179).
A prudente convicção traduzirá, assim, a verificação dos seguintes postulados mínimos, para o controlo racional da decisão (cfr. Michele Taruffo; La prova dei fatti giuridici, Giuffrè Editore, Milão, 1992, p. 395 e ss.):
— A decisão sobre os factos não pode assentar em critérios irracionais (v.g. intuições, palpites ou crenças);
— A decisão tem de assentar na prova produzida no processo;
— A decisão não pode importar uma violação das regras probatórias;
— Os raciocínios ou inferências derivados da relação dos meios de prova entre si e destes com os factos devem ser lógicos e coerentes;
— Os raciocínios devem apelar a um consenso, a máximas comummente aceites, por forma a que possam ser considerados verdadeiros fundamentos;
— O julgador deverá fazer uma valoração conjunta ou ponderação dos diferentes meios de prova, confrontando-os, por forma a que, ainda que de sentido contrário, daí resulte uma decisão linear e unívoca.
Na sindicância do julgamento operado em 1.ª instância, o Tribunal de 2ª instância “não deve subverter o principio da livre apreciação da prova devendo, apreciar os elementos de prova produzida e apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição, face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos e, a partir deles procurar saber se a convicção expressa pelo tribunal de 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a prova testemunhal gravada e em outros elementos objetivos neles constantes, pode exibir perante si, sendo certo, que se impõe ao julgador que indique, os fundamentos suficientes para que, através das regras de ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto como provado ou não provado.
Na verdade, só perante uma situação de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão é que se deverá considerar a existência de erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve, em princípio, prevalecer a resposta dada pelo tribunal “a quo”, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal “ad quem “ sindicar (artº 607º, nº 5, do CPC)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-11-2019, Processo 1642/15.5T8PTG.E1, rel. CONCEIÇÃO FERREIRA).
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar que, funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”, o que significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (assim, Abrantes Geraldes; Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 22).
Nessa apreciação, o Tribunal da Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime legal que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais (assim, Abrantes Geraldes; Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, 3.ª Ed., 2000, p. 272).
Cumpre ainda considerar, a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto nos artigos 396.º do CC e 607.º, n.º 5, do CPC.
E, “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol IV, p. 569).
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto, quer sobre os factos provados, quer sobre os factos não provados (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão, pois, é através da fundamentação de facto que o tribunal de recurso vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Contudo, nesta apreciação, não pode o Tribunal da Relação ignorar que, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que são intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo exterior do depoente que influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo, assim, actos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-05-2009, P.º 4303/05.0TBTVD.S1, rel. SANTOS BERNARDINO).
Por outro lado, porque se mantêm vigentes no Tribunal da Relação os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deverá restringir-se aos casos em que, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, determine decisão diversa da do tribunal recorrido e patenteiem um erro de julgamento ou de apreciação do julgador, que deva ser corrigido.
Sobre os termos de reapreciação da matéria de facto pela 2.ª instância, sintetizou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-09-2017 (Processo 959/09.2TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES) o seguinte:
“1. É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.
2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.
3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
4. Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.
5. O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure”.
Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-05-2004 (Processo 1861/04-1, rel. RICARDO SILVA), “a motivação de facto não tem de ser ou tentar ser uma recriação do julgamento, devendo antes de assegurar que o processo de decisão seja inteligível, de forma sucinta, ainda que tão completa quanto possível, o que importará maiores e melhores informações e explicações sempre que a complexidade do “thema decidendum“ e da prova que sobre ele tenha versado tal imponham, sendo certo que não se deve complicar o que é simples sob pena de se obscurecer o que já está claro”.
Ou seja: “O tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade adequada daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; Estudos sobre o Novo Processo Civil; Lex, Lisboa, 1998, p. 348).
Ora, relativamente às alíneas E) e F) dos factos provados, onde apenas se contém a enunciação da celebração do contrato de abertura de conta, a forma de obrigar e a forma de movimentação da mesma e, bem assim, a constatação de que a referida conta apresentava em 09-09-2002 um saldo negativo no valor de € 13.482,46, o Tribunal recorrido evidenciou, de forma clara, precisa e congruente com os meios de prova produzidos, a conclusão a que chegou na sua apreciação probatória.
É de sublinhar, aliás, que as partes podendo ter produzido outra prova, limitaram os meios de prova em exclusivo à apresentação de prova documental, tendo o réu prestado declarações de parte, não tendo sido produzido qualquer outro tipo de prova.
Na referida motivação da seleção factual, o Tribunal recorrido enunciou, nomeadamente, o seguinte:
“No que tange ao contrato de cessão de créditos relevámos a documentação junta pela A.
Daquela documentação resulta que os créditos que o Banco Santander Totta detinha sobre os requeridos foram cedidos à A. Disso mesmo foi dado conta aos requeridos, conforme consta dos documentos de fls. 84 v. e de fls. 111 v./112.
Quanto à identificação dos créditos cedidos, importa mencionar que, daquela documentação, entregue pelo cedente à aqui A. constam os extractos bancário daquela conta à ordem, certo sendo que o valor aí em dívida – v. fls. 88 v. – é justamente aquele que o requerido diz ter sido o valor a cobrir com o contrato de empréstimo que lhe foi proposto celebrar para regularizar a dívida, cfr. fls. 28 v. e ss.
Aqui, acrescente-se, ainda, que, como resultou das declarações prestadas pelo requerido MA…, em sede de audiência, aquela proposta de empréstimo foi acompanhada por ambos os requeridos, mas não foi subscrita pelo requerido pois entendia que tinha sido a requerida a dar causa exclusiva à dívida pois era ela a titular e utilizadora única do cartão “Premier”.
Ou seja, da documentação junta pela A., e pelo requerido, devidamente cotejada com as declarações deste último, não há qualquer dúvida de o crédito aqui cedido à A. é aquele crédito resultante do descoberto da conta, conforme extracto bancário de fls. 88 v.
Quanto ao contrato de abertura de conta e forma de movimentação, tivemos em atenção a ficha de assinaturas de fls. 85 (…).
Quanto à movimentação da conta, tivemos em atenção, por um lado, a circunstância de o cartão “Premier” ser da titularidade da Requerida – certo sendo que esta não pôs esse facto em causa, nem arrolou qualquer prova que afastasse a mesma. Os extractos de conta associada eram remetidos ao cuidado da requerida, que também não pôs em causa este facto.
Finalmente, importa referir que o requerido prestou declarações afirmando – de forma convincente – que aquele cartão era usado apenas pela requerida, sendo ela a sua única titular.
Podendo a requerida contraditar tais declarações, o que é certo é que sempre se manteve em silêncio e não arrolou qualquer meio de prova que pudesse abalar aquela versão sustentada pelo requerido. Ora, face ao teor daqueles documentos – que vêm ao encontro destas declarações – considerámos como não provado que também o requerido movimentava aquela conta, nomeadamente através do referido cartão e que, desses movimentos, resultou, mesmo que parcialmente, aquele montante a descoberto.
Ficou, assim, provado apenas que aquele descoberto teve origem em movimentos de conta realizados apenas pela requerida (…)”.
Ora, ouvida a gravação da audiência de julgamento nesta sede de apreciação da presente apelação, verifica-se que, o único meio de prova pessoal nela produzido, assentou, nas declarações de parte do réu.
A prova por declarações de parte, meio de prova introduzido pelo CPC de 2013, regulado no artigo 466.º deste Código, traduz “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando – face, nomeadamente, à natureza pessoal dos factos a averiguar – tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo Juiz, na parte em que não representem confissão.” (cfr. Alberto Vicente Ruço; Prova e formação da Convicção do Juiz; Almedina/Casa do Juiz, 2016, p. 35).
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-01-2018 (Processo: 294/16.0Y3BRG.G1, rel. VERA SOTTOMAYOR), se a prova por declarações de parte não pode ser requerida pela parte contrária, “nada obsta a que o depoimento de parte, na parte não confessória possa ser livremente apreciado pelo julgador, desde que observada a devida cautela, pois por natureza é um depoimento interessado.  Da declaração da parte importa que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que ainda indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta”.
Contudo, como bem se adverte no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2017 (Processo 18591/15.0T8SNT.L1-7, rel. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA), “é infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório. É expectável que as declarações de parte primem pela coerência e pela presença de detalhes oportunistas a seu favor (autojustificação) pelo que tais caraterísticas devem ser secundarizadas. Na valoração das declarações de partes, assumem especial acutilância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato, em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade”.
Este entendimento é recuperado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-11-2019 (Processo 5991/17.0T8FNC-7, rel. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA) onde se escreveu que, “inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações da parte e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.
Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.
Sintetizando, diremos que: (i) no que excede a confissão, as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
Revertendo estas considerações para o caso em apreço, verifica-se que as declarações de parte prestadas pelo réu – que, aliás, não justificaram qualquer pedido de esclarecimento da ré ou da contraparte - assinalaram, com clareza e de forma justificada e circunstanciada, o tempo e o tipo de convivência dos réus entre si, a forma de utilização do cartão de crédito, que originou o saldo devedor, a ausência de acompanhamento dos movimento da conta pelo réu, que explicou a razão de ser da mesma e, bem assim, as diligências tidas a respeito da “proposta para assinatura de um contrato“ que referiu terem tido lugar em 2003 e a razão pela qual a não subscreveu, derivada da circunstância de se ter apercebido de que o saldo devedor tinha por origem pagamentos realizados com o cartão de crédito na titularidade da ré, cujos valores, não sendo pagos, tinham sido transferidos “para a conta à ordem como saldo devedor”.
Todas estas afirmações se mostram circunstanciadas, justificadas e detalhadas e, não obstante o invocado pela ré, as mesmas são perfeitamente congruentes com todos os elementos documentais juntos aos autos pela autora e pelo réu.
Efetivamente, os elementos documentais retratam uma realidade perfeitamente compatível com o declarado pelo réu: Assinalam-se perante os aludidos documentos movimentos bancários realizados apenas pela ré, o mesmo sucedendo com a subscrição dos cheques neles reportados, assim como, resulta patente a forma de movimentação da conta bancária em questão e de titularidade das obrigações dela resultantes, elementos que inculcaram no julgador a convicção de que o réu não utilizou o cartão que determinou os movimentos que culminaram com a geração do saldo devedor.
E, nessa medida, o Tribunal recorrido, apreciando livremente os meios de prova em questão, concluiu do modo como o fez na decisão recorrida, sem que tal mereça algum reparo.
Cumpre aqui sublinhar dois aspetos ambos relacionados com os meios de prova produzidos.
Por um lado, como já se salientou, a apreciação dos meios de prova deve ser feita de forma conjugada, relevando, para o efeito, todos os meios de prova produzidos. Todos os meios de prova produzidos são convocados para a tomada da decisão de facto.
Mas, por outro lado, todos os meios de prova têm aptidão a formar a convicção probatória do tribunal sobre um dado facto, independentemente da parte de onde tenham derivado ou que os tenha requerido.
É que, conforme resulta do disposto no artigo 413.º do CPC, a respeito de quais as provas a que o juiz pode atender para decidir: “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”.
Efetivamente, “vigora no ordenamento processual português o princípio da aquisição processual: as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, “pouco importando saber por via de quem elas foram trazidas ao processo” “ (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-11-2009, Processo 1889/06.5TBVFR-A.P1, rel. VIEIRA E CUNHA).
Compreende-se que assim seja, uma vez que o nosso sistema processual civil procura que a solução judicial seja a que mais se ajuste à real situação que é objeto de disputa. Por isso, as regras sobre o ónus da prova dos factos contidas no art. 342.º do CC têm uma feição marcadamente objetiva, significando que ao exercício da atividade jurisdicional interessa acima de tudo saber se determinado fato está ou não demonstrado, uma vez concluída a instrução, e não tanto averiguar qual das partes estava onerada com o respetivo ónus da prova (cfr., neste sentido, Antunes Varela; Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 450 e Abrantes Geraldes; Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, p. 486, nota 1).
Neste sentido, concluiu-se no Acórdão do STJ de 18-02-2020 (ECLI:PT:STJ:2020:1178.14.1TBFLG.P1.S2, rel. FÁTIMA GOMES; em: http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:1178.14.1TBFLG.P1.S2) que:
As regras sobre repartição do ónus da prova não intervêm quando o facto foi provado, ainda que por aquela das partes a quem não aproveita. Os factos provados podem sê-lo por meios de prova oferecidos por qualquer das partes”.
A ré vem invocar que não foram juntos aos autos todos os extratos desde o início da abertura da conta até ao seu encerramento e, que, por isso – e dado que apenas foram juntos alguns dos extratos dos movimentos da conta – “não se consegue demonstrar a origem da dívida”, nem o “que deu origem ao alegado saldo a descoberto”.
Vejamos:
Os extratos bancários são emitidos pelo banqueiro como uma obrigação que sobre ele recai no âmbito de uma abertura de conta que é o contrato celebrado entre o banqueiro e o cliente – cf. Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário; p. 446 e 455 .
Tendo presentes os documentos carreados para os autos e as declarações do réu, o Tribunal considerou suficiente para a demonstração probatória que assinalou nos factos provados, tais meios de prova, sendo que, deles resulta juntos aos autos um grande número de extratos, referentes a vários anos de movimentação da conta bancária em questão, que contêm um elevado número de movimentos da conta, em datas anteriores à da verificação do saldo devedor, tudo confluindo na conclusão de que a ré movimentou, em exclusivo, tal conta, dando origem a tal saldo.
A total escalpelização de todos e de cada movimento da conta desde o inicio da abertura da mesma e até ao seu encerramento, podendo ter ocorrido, não era necessária para o julgamento de facto a que o Tribunal recorrido procedeu, sendo certo que, o que estava em questão era um pedido formulado sobre um saldo devedor peticionado num determinado momento histórico (e, não, o detalhe sobre todos os movimentos a crédito e a débito sobre a aludida conta bancária) e, tanto mais que, como se viu, foi parca a iniciativa probatória das partes no decurso da instrução do processo.
Contudo, esta singeleza na apresentação de provas não determina, ipso facto, a não demonstração dos factos alegados, sendo possível considerar provado um facto apenas com base numa única fonte probatória.
Na realidade, ao contrário do que já sucedeu em Portugal (cfr. artigo 2512.º do Código Civil de Seabra) não se encontra enunciado na lei um patamar mínimo de meios de prova a produzir no sentido de se obter um dado resultado probatório, podendo o julgador, claro está, de forma suficiente e motivada, fundar a sua convicção na prova de um determinado facto, com base num único documento ou num único testemunho (para mais desenvolvimentos, vd. Fernando Pereira Rodrigues; A Prova em Direito Civil; Coimbra Editora; 2011, p. 149 e ss.).
Conforme se dá nota no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-01-2019 (Processo 3239/17.9T8VFR.P1, rel. CARLOS GIL), “o limiar relevante da prova em matéria civil requer a denominada probabilidade prevalecente; isto é, sempre que se defrontem hipóteses contraditórias relativamente à realidade de um certo facto, a decisão do tribunal deve apoiar-se na hipótese que se apresente com uma probabilidade mais forte. A livre apreciação da prova não significa apreciação arbitrária da prova, mas antes a ausências de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa valoração racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com a corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam”.
Dito de outra forma: “Prova livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. A questão da credibilidade ou não da testemunha insere-se no âmbito da livre apreciação das provas pelo julgador, caindo a sua sindicabilidade fora das competências do tribunal de recurso, excepto se existirem outras provas que imponham decisão diversa. O mesmo sendo de dizer quanto às declarações de parte, posto que o n.º 3 do art.º 466.º admite a livre valoração pelo juiz (art.º 607.º, n.º5) de todo o conteúdo das declarações que não se reconduza à figura da confissão, sendo esta valorada em sede própria. A menos que existissem fundamentos sérios, devidamente sustentados em dados concretos, que tornassem evidente que a valoração da prova foi incorrecta, não pode a recorrente pretender sobrepor a sua “convicção” à do julgador, no pressuposto que é mais acertada, pretendendo, no rigor das coisas, um segundo julgamento da causa por este Tribunal ad quem, no essencial sustentado naquela sua convicção. Para por em causa a convicção formada pelo Tribunal recorrido, é necessário demonstrar que a mesma assenta em pressupostos que são logicamente inaceitáveis ou impossíveis, designadamente, por contrariarem regras de experiência comum” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2020, Processo 1740/18.3T8VNG.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS).
Ora, como se viu, o Tribunal recorrido, de forma congruente e suficiente, considerou que as explicações apresentadas pelo réu, em conjunto com a análise a que procedeu da documentação apresentada pela autora e pelo réu, determinaram, nos termos que concretizou, a prova dos factos dados como assentes, sendo que as dúvidas que ora a recorrente vem colocar não assinalou, desde logo, no momento de produção probatória, onde as mesmas poderia, com inteira propriedade, ficar esclarecidas ou ser dilucidadas.
E, em sede de reapreciação probatória, na realidade, perante os meios de prova produzidos, assimilando as declarações circunstanciadas do réu (ainda que, naturalmente, interessado no desfecho da causa), com os vários – e reportados a diversos momentos temporais – extratos da conta em questão e, bem assim, com a sua especificação, o resultado alcançado pelo Tribunal corresponde, de facto, à hipótese factual que, em concreto, se apresenta mais provável e, nessa medida, não merece qualquer censura o julgamento operado pelo Tribunal recorrido, a este respeito.
Mesmo a respeito do invocado em sede contra-alegacional pelo réu - de que autora não juntou aos autos o anexo 4 (carteira de clientes) e que “o contrato de cessão de créditos sem o anexo da lista dos créditos cedidos é um documento que está incompleto, não fazendo prova do crédito cessionado e em discussão na presente lide, devendo V. Exas. tirar as devidas ilações e consequências legais, mantendo-se o decidido, entre o mais, pela douta sentença recorrida no que concerne, pelo menos, ao ora Recorrido (…)” (cfr. conclusões X e XI das contra-alegações do réu), verifica-se que a decisão recorrida salientou que da documentação junta pela autora “resulta que os créditos que o Banco Santander Totta detinha sobre os requeridos foram cedidos à A. Disso mesmo foi dado conta aos requeridos, conforme consta dos documentos de fls. 84 v. e de fls. 111 v./112”. Ora, tal afirmação tem plena correspondência com a documentação em questão, mencionada pelo Tribunal recorrido, inferindo-se da mesma que a cessão de créditos operada entre cedente e cessionária, incluiu o crédito daquela sobre os cedidos, não tendo sido evidenciado, por qualquer forma, a incompletude que o recorrido ora assacou ao aludido contrato de cessão de créditos.
Assim, não merece, também, por este prisma, o julgamento de facto operado pelo Tribunal recorrido.
Relativamente à alínea G) dos factos provados, as dúvidas colocadas pela ré/apelante não são de molde a justificar a alteração probatória gizada, atenta a convicção probatória evidenciada pelo Tribunal recorrido, assente na sua livre apreciação probatória, que não ostenta qualquer vício.
É que, desde logo, afirmar a possibilidade de movimentar a conta – adveniente da co-titularidade assumida pelo réu – não significa a demonstração probatória de que foi o réu – e não a ré – que fez movimentos na conta, a débito e a crédito. Tal demonstração no sentido de movimentação pelo réu, não teve lugar, atento, desde logo, um facto que a ré também não desmentiu, relacionado com a titularidade do cartão de crédito na ré (o qual constituía uma das formas de movimentação da conta em questão). E, nessa medida, sopesados também todos os movimentos insertos nos documentos juntos aos autos, não merece qualquer censura a conclusão probatória aferida pelo Tribunal ao dar como provado o facto constante da alínea H).
Mas, ao invés, perante o declarado pelo réu e perante o que resulta da emissão do cartão a seu favor e das cópias dos saques de cheques juntos aos autos, conflui-se na conclusão probatória que foi vertida na alínea G) dos factos provados, não merecendo, igualmente, qualquer reparo o julgamento de facto efetuado, neste ponto, pelo Tribunal recorrido.
O mesmo se diga relativamente aos factos vertidos em J) e L) dos factos provados, cuja coerente explicitação deriva das declarações do réu, mas que, aliás, têm plena sustentação ou compatibilidade na literalidade que se afere na documentação junta aos autos, a respeito da aludida “proposta” de contrato de empréstimo (e livrança que a acompanha), evidenciando-se, claramente, assente que, em 2004, o Crédito Predial Português propôs aos réus a subscrição de tal documento com vista a regularizar a dívida, aí inserida ao cêntimo, em valor perfeitamente idêntico ao do saldo devedor apurado anteriormente (derivando do documento apresentado nos autos em 21-11-2018 pelo Banco Santander Totta, que o último movimento da conta data de agosto de 2002), mas que o réu, dado que entendeu que não era responsável pela dívida, não subscreveu tal proposta.
Nenhuma das “dúvidas” e questões assinaladas pela recorrente nas suas alegações a este respeito, permite concluir de modo diverso, inexistindo qualquer incongruência – e muito menos, notória - na valoração das provas produzidas.
Finalmente, no que concerne à alínea I) dos factos provados, veio a recorrente invocar que:
“(…) Nem a Autora, nem o BANCO SANTANDER TOTTA S.A. (o cedente do crédito) juntaram em momento algum do desenrolar do processo, nem em audiência de julgamento, um comprovativo postal ou de outro tipo, em como os extratos eram endereçados à Ré e para a morada da mesma.
Essa prova não foi feita por parte da Autora, nem a mesma conseguiria fazer, pois somente comprou um crédito, sendo que, toda a documentação referente a essa conta estaria ao abrigo do sigilo bancário.
Através do banco cedente também não se conseguiu fazer a prova do envio dos extratos, pois os mesmos já teriam mais de dez anos, pelo que, também não foi junto pelo banco tal prova.
Quanto ao Réu vejamos o que o mesmo disse a este propósito (aos 10:00 do seu depoimento):
Sr. Dr. Juiz: Ou seja, não sabe se era feito no escritório então ou se era enviada o extrato para a casa de cada… da Sra. MT… ou seu…
Sr. M…: o extrato estou quase certo...sem e estou a dize-lo de cabeça, mas há documentação, no qual, isso se pode verificar que estou quase certo, que era mandado para a morada, da tal loja em Algés.
Como se pode verificar o Réu, passando a transcrever “o extrato estou quase certo…sem e estou a dize-lo de cabeça”, o Réu afirma que está “quase certo”, “estou a dize-lo de cabeça”, portanto, se está “quase” é porque não está convicto que os extratos iam para a referida morada, na Av. … n.º …, em Algés, morada esta que seria a sede de uma clinica homeopática da Ré.
Tendo em conta que, o Réu ao longo de todo o processo, sempre defendeu a tese que não tinha qualquer responsabilidade pela alegada dívida, e das declarações de parte do próprio volta a reforçar tal tese, não se compreende como é que o Réu poderia ter tal convicção e conhecimento que os extratos iriam para a Av. … n.º …, em Algés, uma vez que, ele não teria conhecimento de movimentações da conta, nem conhecimento do suposto saldo a descoberto, como afirma nas suas declarações de parte, que se transcreve:
(aos 04:09 das suas declarações)
Juiz- E essa conta independentemente do movimento que fosse feito por um de Vós, implicava. Se fossem créditos que o saldo aumentasse, se fossem débitos que o saldo diminui-se...O Sr acompanhava a movimentação da conta?
M..- Não de todo....[…]
 Concluindo sobre este facto: Segundo os critérios de livre apreciação de prova, usados pelo “homem médio” aplicando as regras de experiência comum que deverá presidir a qualquer Julgador – salvo melhor opinião – não nos parece que, da conjugação da falta de apresentação de prova por parte da Autora e da declaração de parte do Réu, se pudesse concluir inequivocamente que os extratos bancários iam com o nome da MJ… e para a direção desta sita nas Av. … n.º …, Algés”.
Ora, relativamente a este ponto, são inteiramente válidas as considerações já expendidas sobre a suficiência de produção de meios probatórios para a demonstração de um determinado facto e sobre o princípio da aquisição probatória, independentemente de onde derive ou brote a sua origem.
É que, tendo presente o aludido depoimento do réu, verifica-se que o mesmo acaba por confirmar a remessa dos extratos para a morada que consta mencionada nos mesmos, que, também corresponde à loja que o mesmo identifica como explorada pela ré, elementos que, aliás, a ré não colocou em crise.
E, para além disso, os elementos documentais carreados para os autos são compatíveis com a emissão dos extratos em nome da ré e seu envio para a morada desta, concretizada na alínea I) dos factos provados.
Ora, conforme se afirmou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-05-2020 (Processo 1355/17.3T8OER-A.L1-6, rel. ADEODATO BROTAS), “o “envio” (…) pode ser provado por outros meios de prova que não (apenas) o registo da carta ou sequer o aviso de recepção, mormente, por confissão (maxime, judicial provocada) ou por prova testemunhal”.
Tanto basta para a demonstração do facto que ficou vertido na alínea I) dos factos provados, não se verificando, no mesmo, qualquer alusão ao seu efetivo recebimento pela ré, pelo que, não relevam as considerações expendidas pela ré, a este respeito.
Ora, na decisão recorrida, a motivação expressa pelo Tribunal a este respeito foi a seguinte: “Quanto à morada para onde eram remetidos os extractos daquela conta, relevámos o teor dos mesmos (deles constando apenas a identidade da requerida e uma morada que não coincide com a morada do requerido, mas sim como sendo a morada da requerida, fornecida ao Banco)”.
Verifica-se a congruência do resultado alcançado pelo Tribunal com os aludidos documentos, onde consta inscrita a aludida morada, utilizada pela ré, para o exercício da atividade mencionada pelo réu, pelo que, o aludido resultado probatório se conjuga, de forma compatível, com as declarações de parte do réu.
Inexiste, pois, motivo para se proceder a qualquer alteração da matéria de facto apurada pelo Tribunal recorrido.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação da ré/recorrente a respeito da impugnação da matéria de facto que efetuou.
*
III) Do mérito da apelação:
Dispõem os n.ºs. 1 e 2 do artigo 639.º do CPC que:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, nesta sede, as questões suscitadas pela apelante:
*
4) Se o Tribunal recorrido, ao enunciar as questões a decidir, violou o art.º 10º n.º 3 do anexo ao DL n.º 269/98 de 1 de setembro?
Invoca a apelante que o Tribunal recorrido ao enunciar as questões a decidir - 1) da responsabilidade de ambos os titulares da conta DO solidária pelo descoberto da conta e 2) prescrição da dívida de juros – violou o artigo 10.º, n.º 3, do regime jurídico anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro, que estabelece que «durante o procedimento de injunção não é permitida a alteração dos elementos constantes do requerimento, designadamente o pedido formulado».
Salienta a apelante que “a causa de pedir consubstancia-se na alegação do não pagamento, por parte dos Réus, do valor de € 13.482,40, não fazendo sentido, que os temas a decidir e a serem apreciados pelo Tribunal a quo sejam outros daqueles peticionados pela Autora”, pelo que considera, em seu entender, que “a primeira questão a decidir seria (…) a existência ou não do saldo a descoberto, nomeadamente, a sua origem e comprovação e posteriormente, é que deveria ser apreciada, como questão secundária, a responsabilidade dos Réus, apesar de não ser peticionado tal facto”, concluindo que “o Tribunal errou no enquadramento que fez nas questões a decidir, não tendo sido apreciado, o que era efetivamente, necessário ser apreciado e provado neste processo, que passaria pela prova clara e inequívoca, da existência e o esclarecimento da origem do alegado saldo a descoberto, assim como da discriminação do seu valor, a fim de se julgar pela condenação ou absolvição dos Réus quanto ao pedido pela Autora”.
Vejamos:
O mencionado artigo 10.º do regime anexo ao D.L. n.º 269/98, de 1 de setembro estatui – sob a epígrafe “forma e conteúdo do requerimento” injuntivo (achando-se o referido artigo 10.º inserido no capítulo II desse anexo, com a epígrafe “Injunção”) – estatui o seguinte:
“1 - O modelo de requerimento de injunção é aprovado por portaria do Ministro da Justiça.
2 - No requerimento, deve o requerente:
a) Identificar a secretaria do tribunal a que se dirige;
b) Identificar as partes;
c) Indicar o lugar onde deve ser feita a notificação, devendo mencionar se se trata de domicílio convencionado, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º do diploma preambular;
d) Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão;
e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas;
f) Indicar a taxa de justiça paga;
g) Indicar, quando for o caso, que se trata de transacção comercial abrangida pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.
h) Indicar o seu domicílio;
i) Indicar o endereço de correio electrónico, se o requerente pretender receber comunicações ou ser notificado por este meio;
j) Indicar se pretende que o processo seja apresentado à distribuição, no caso de se frustrar a notificação;
l) Indicar o tribunal competente para apreciação dos autos se forem apresentados à distribuição;
m) Indicar se pretende a notificação por solicitador de execução ou mandatário judicial e, em caso afirmativo, indicar o seu nome e o respectivo domicílio profissional;
n) Assinar o requerimento.
3 - Durante o procedimento de injunção não é permitida a alteração dos elementos constantes do requerimento, designadamente o pedido formulado.
4 - Se o requerente indicar endereço de correio electrónico, nos termos e para os efeitos da alínea i) do n.º 2, as comunicações e notificações pela secretaria ao requerente são efectuadas por meios electrónicos, em termos a definir por portaria do Ministro da Justiça.
5 - O requerimento pode ser subscrito por mandatário judicial, bastando para o efeito a menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário.
6 - A subscrição do requerimento por mandatário judicial não o exime da necessidade de preenchimento de todos os elementos relativos ao representado, nomeadamente a indicação do respectivo domicílio.
7 - O disposto na alínea n) do n.º 2 não é aplicável quando o requerimento de injunção for apresentado por meios electrónicos, assegurando o sistema informático a identificação do requerente ou mandatário que procede à apresentação do requerimento”.
Conforme decorre do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do CPC, a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo.
Assim, o direito de acesso ao direito e aos tribunais, genericamente proclamado e garantido no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, realiza-se mediante o exercício do direito de acção concretamente adequado a reconhecer em juízo o direito subjectivo (ou interesse legalmente protegido) que se pretende fazer valer, a prevenir ou reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente, como decorre do n.º 2 do artigo 2.º do CPC.
O exercício do direito de acção requer a verificação de requisitos formais quanto aos sujeitos e objecto de uma causa - designados por pressupostos processuais relativos à acção -, cuja falta obsta ao conhecimento de mérito, determinando a absolvição do réu da instância.
Um desses requisitos incide sobre a delimitação do próprio objecto da acção, o qual tem se mostrar idóneo em termos de permitir delinear o âmbito de cognição do tribunal e da formulação do respectivo juízo de mérito, dentro dos parâmetros traçados nos artigos 608.º, nº 2 e 609.º, n.º 1, e 5º do CPC, bem como definir os limites objectivos do caso julgado material, em conformidade com o disposto nos artigos 619.º e 621.º, com referência ao artigo 581º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma.
Conforme decorre do artigo 552.º, n.º 1, als. d) e e) do CPC, o autor, na petição inicial, deve expor os factos e as razões de direito e formular o pedido, pedido esse que tem de ser dirigido contra um concreto réu ou contra uma pluralidade de réus.
O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a acção, existindo identidade de pedidos quando ocorrer a obtenção do mesmo efeito jurídico (cfr. artigo 581.º, n.º 3, do CPC), “o que se reconduz à afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido, efeito este que não se restringe necessariamente ao seu enunciado literal, podendo ser interpretado em conjugação com os fundamentos da acção com eventual suprimento pelo tribunal de manifestos erros de qualificação, ao abrigo do disposto no artigo 6º do CPC, desde que se respeite o conteúdo substantivo da espécie de tutela jurídica pretendida e as garantias associadas aos princípios do dispositivo e do contraditório” (cfr., Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-05-2019, Processo 89078/18.6YIPRT-A.L1-6, rel. MANUEL RODRIGUES).
A causa de pedir é, por seu turno, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.
O nosso direito adjetivo adota, quanto à causa de pedir, a chamada “teoria da substanciação”, perante a qual pode a “causa de pedir” constitui o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. art.º 581.º, nº 4, do CPC.
Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.
Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-09-2017 (p.º 1608/16.8T8FAR.E1, rel. TOMÉ RAMIÃO): “A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido e corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”.
Conforme se afirmou no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-05-2019 (Processo 89078/18.6YIPRT-A.L1-6, rel. MANUEL RODRIGUES), “o objecto da acção consubstancia-se numa pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.
No que aqui releva, sobre o Autor impende o ónus de indicar o concreto efeito prático-jurídico pretendido e de alegar uma factualidade específica ou concreta que viabilize a formulação de um juízo de mérito sobre a pretensão deduzida contra a Ré.
Ainda no que respeita ao substrato factual da causa de pedir, há que distinguir os factos indispensáveis à sua caracterização, e portanto dela estruturantes, e os factos que, muito embora essenciais à procedência da acção, não se mostram todavia imprescindíveis à caracterização da causa de pedir para efeitos de um pronunciamento de mérito, seja ele positivo ou negativo. É certo que nem sempre é fácil fazer a distinção prática entre as duas categorias de factos, mas o critério de aferição passará por um juízo de prognose a ponderar, no confronto de cada situação, na perspectiva do caso julgado material que venha a recair sobre o objecto da causa em termos de evitar a repetição futura de causa idêntica”.
No caso, conforme decorre do requerimento de injunção em confronto com a sentença recorrida e analisados todos os atos processuais conducentes à prolação da decisão em questão, verifica-se que o pedido formulado pela autora permaneceu o mesmo desde o primeiro momento –tal qual foi vertido no requerimento de injunção - e até tal decisão.
E, no que concerne à “enunciação sucinta” dos factos em que a autora assentou uma tal pretensão, lê-se no requerimento de injunção o seguinte:
“I. SUCESSÃO NO DIREITO:
1 – Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 28 de Junho de 2013, em Lisboa, a sociedade BANCO SANTANDER TOTTA, S.A., cedeu à sociedade PROMONTORIA HOLDING 63 BV, ora Requerente, os créditos que detinha sobre os ora Requeridos, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias.
II. FACTOS:
2 - A Cedente, no âmbito da sua actividade, celebrou com os ora Requeridos os contratos, aos quais foram atribuído o n.º …-….
3 – O referido contrato, tinha como objecto, uma abertura de conta.
4 – Ora, apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os Requeridos não efectuaram, até à presente data, qualquer pagamento. Nem prestaram qualquer justificação.
5 - Assim, e face ao incumprimento verificado, o capital ora indicado corresponde ao valor em divida à data do saldo a descoberto e não liquidado, tal como os juros peticionados correspondem ao cálculo desde a data do incumprimento até à presente data, à taxa legal de 4%.
6 – Ademais, sobre o montante total em dívida, deverão ainda ser apurados os juros de mora vincendos, bem como, os juros suplementares ou compulsórios, à taxa de 5,00%, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 13.º ex vi n.º 2 do art.º 21.º do Decreto-lei n.º269/98, de 01 de Setembro , até efectivo e integral pagamento, a liquidar oportunamente, em execução de sentença.”
Conforme decorre desta alegação, ainda que efetuada em termos singelos, a autora apresentou uma lide em que invocou ter sucedido no direito invocado – assente no pagamento do valor que peticionou dos réus – com base no “contrato de cessão de créditos” assinado em 28-06-2013 e, segundo este título, referenciou os contratos celebrados entre a cedente e os réus, assentando a pretensão deduzida na circunstância de estes, “apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, (…) não efectuaram, até à presente data, qualquer pagamento. Nem prestaram qualquer justificação”.
Sucede que, como se viu, ambos os réus deduziram oposição, tendo, nomeadamente, o réu imputado à ré a responsabilidade pelo pagamento da dívida e a ré, entre outras questões, invocou a prescrição dos juros moratórios.
Ora, conforme decorre dos n.ºs. 2 e ss. do artigo 607.º do CPC, a sentença “começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar”…”seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.
A respeito da estrutura da sentença, refere Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 345) que, “no relatório, o juiz começa por identificar as partes e objeto do litígio, fixando e delimitando, de seguida, as questões essenciais submetidas à apreciação/resolução do tribunal, estas últimas através da enunciação dos pedidos deduzidos e das exceções suscitadas pelas partes ou de que ao tribunal cumpra oficiosamente conhecer (artº 607.º, n.º 2)”.
Verifica-se que, da decisão judicial a proferir, faz parte a enunciação das questões a decidir pelo juiz, aspeto que, embora pressupondo a prévia pretensão deduzida pelo autor (e a contra-pretensão eventual, deduzida pelo réu), com esta não se confunde, nem se identifica. Uma coisa é o pedido formulado, o qual assenta numa determinada causa de pedir, o que constitui ónus da parte que apresenta a pretensão em juízo; outra, bem diversa, são as questões que, com base nos termos do litígio apresentado ou enunciado e com referência aos temas da prova – se forem fixados – ou aos factos alegados pelas partes, cumpre ao Tribunal fixar aquando da prolação da decisão.
Em face do que se vem referindo, verifica-se que não tem sentido, por referência à decisão recorrida e à enunciação que nela foi efetuada sobre as questões a decidir pelo julgador, a invocada violação do artigo 10.º, n.º 3, do regime jurídico anexo ao DL n.º 269/98, de 1 de setembro visada pela ora recorrente. É que, como se viu, tal norma prescreve uma estabilidade nos elementos objetivos do requerimento injuntivo, aqui se encontrando abrangida a formulação do pedido, com discriminação do capital, juros vencidos e outras quantias e a exposição sumária dos factos que fundamentam a pretensão, mas não, claro está, qualquer antecipada vinculação do julgador sobre as questões que ao mesmo cumpre decidir no pleito.
E, no que concerne à enunciação apresentada pelo Tribunal no âmbito das questões a decidir na sentença, não se afigura que a mesma mereça o reparo que a recorrente lhe pretende lançar.
É que, no âmbito da apreciação “da responsabilidade de ambos os titulares da conta DO solidária pelo descoberto da conta”, encontra-se, claro está, a apreciação da responsabilidade dos réus sobre o referido descoberto e, logicamente, sobre se este teve lugar e se comprovou.
Basta reter o que consta da sentença recorrida, e que ora se transcreve, para concluir que o Tribunal recorrido apreciou, de forma correta, a fonte de responsabilização que imputou à ré, a exclusividade do débito desta – do qual o réu não é responsável – e os demais pressupostos da responsabilidade obrigacional da ré para com a autora:
“(…) Face ao[s] factos provados, é inequívoco que a cedente e os requeridos celebraram entre si um contrato de abertura de conta.
Esta era uma conta solidária que podia ser movimentada com a assinatura de qualquer um dos titulares. Porém, esta cláusula apenas fixa o regime de solidariedade activa. Não já um acordo quanto à forma de se obrigarem. Como é sabido, a responsabilidade solidária, quando não resulta da lei, carece do acordo das partes, atento o disposto no art. 513º, do CC.
É certo que pode existir, no contrato de depósito, uma cláusula que estabeleça ou que se convencione, no momento da abertura da conta, a possibilidade de “sacar a descoberto”, caso em que se poderá inferir uma vontade tácita de cada um dos co-titulares se obrigar por saldos negativos da conta, ainda que o descoberto seja criado por outro dos co-titulares.
Porém, a A. nada mais alegou quanto a esta aspecto, nomeadamente, que, para além do que ali ficou a constar, algo mais foi convencionado entre as partes quanto à responsabilidade dos titulares pelo descoberto em conta.
Facto constitutivo do seu direito, estava aquela onerada com a sua alegação e prova, nos termos do disposto no art. 342º, n.º 1, do CC.
Efectivamente, e como se decidiu no Ac. da Rel. de Lisboa, de 22/01/2015 (Dr.ª Ondina Carmo Alves):
“1. O contrato de depósito bancário de disponibilidades monetárias, reconduz-se a um contrato pelo qual uma pessoa entrega uma certa importância em dinheiro a um banco, que dele pode dispor, obrigando-se a restituí-lo mediante solicitação e de acordo com as condições estabelecidas.
2. Na conta de depósito à ordem, em regime de solidariedade activa, qualquer dos credores – depositantes ou titulares dessas contas – apesar da divisibilidade da prestação, têm a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral - o reembolso de toda a quantia depositada – e, a prestação assim efectuada libera o devedor – banco depositário – para com todos eles.
3. O descoberto em conta é uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre sempre que o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta ou tal resulte de um acordo prévio com o titular da conta.
4. Recai sobre o banco depositário que pretenda prevalecer-se de uma cláusula contratual que, no momento da abertura de conta, estabeleça a possibilidade de “sacar a descoberto”, o ónus da prova de que a mesma resultou de negociação entre as partes e que foi adequada e efectivamente comunicada aos titulares da conta, e só neste caso se poderá inferir uma vontade de cada um dos co-titulares se obrigar por saldos negativos da conta, ainda que o descoberto haja sido criado por outro dos co-titulares.” – sublinhado nosso.
Não tendo a A. logrado comprovar aquela convenção quanto à responsabilidade solidária dos titulares da conta pela regularização do seu saldo devedor, apenas responderá pela dívida o titular que deu causa àquele descoberto.
Como desenvolve aquele aresto jurisprudencial:
“A abertura de uma conta solidária traduz uma vontade de facilitar a sua movimentação, permitindo a qualquer dos co-titulares, tendo em consideração a relação de confiança entre eles existentes, a faculdade de efectuar quaisquer operações de movimentação da conta, podendo cada um dos titulares, livremente e sem necessidade da participação dos demais, exigir a entrega do montante total depositado. Daí decorre que a solidariedade activa resulta claramente da vontade das partes.
Mas, da existência de tal pacto de solidariedade activa, definido nos termos acima expostos, não é possível deduzir, sem mais, pela sujeição dos co-titulares ao regime da solidariedade passiva. Ao invés, entende-se que, em regra, não existirá solidariedade passiva nas contas solidárias.
É que, como refere PAULA PONCES CAMANHO, Contrato de Depósito Bancário, em comentário ao Ac. TRC de 12.05.1998, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. II, 127, “O grau de confiança existente entre eles resume-se à movimentação do saldo da conta, e não respeita a uma movimentação para além daquele”.
Como se decidiu no Ac. S.T.J., de 14/02/2006 (Dr. Alves Velho), seguindo os ensinamentos de MENEZES CORDEIRO (in, Manual de Direito Bancário, 541), “O descoberto, é uma prática bancária que, na falta de disciplina própria, é tratado como um mútuo mercantil, pode ter por base um contrato prévio, advir de lançamentos de movimentos ou despesas a que o banqueiro esteja obrigado ou, ainda, por contemporização ou tolerância visando facilitar, por períodos curtos, a tesouraria de certos clientes em razão da consideração ou confiança que lhe mereçam”.
Esta operação pode, portanto, ocorrer quando o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta ou resultar de um acordo prévio com o titular da conta.
Nessas situações, não estamos já face ao contrato de depósito, antes sim perante um outro contrato, que se rege pelas normas típicas do contrato de mútuo, quer se qualifique o mesmo como um negócio nominado de mútuo, quer se entenda que configura um negócio inominado.
E um outro contrato que tem como partes apenas o banco – de um lado – e o titular da conta que levanta fundos superiores ao saldo da sua conta.
Como se decidiu no Ac. S.T.J., de 19/12/2006 (Dr. Paulo Sá), “Em princípio, a responsabilidade solidária dos co-titulares só vai até à completa absorção do saldo, ficando a responsabilidade pela movimentação a título de descoberto em conta a cargo exclusivo do titular que procedeu a esta movimentação, se nada for convencionado entre o Banco e os demais co-titulares.
E isto, porque, seguindo uma vez mais aquele Acórdão da Relação de Lisboa, “não é possível deduzir-se ou presumir-se a vontade de qualquer dos co-titulares de se responsabilizar por saldos negativos da conta originados por outro, o que significa que não é possível presumir-se a existência de uma solidariedade passiva.”
A A. sabe que aquela solidariedade passiva não foi convencionada, por isso lança mão do disposto no art. 497º, n.º 1, do CC. Porém, esta norma vale apenas para a responsabilidade civil imputável a duas ou mais pessoas.
No caso em análise, caracterizando-se o descoberto em conta como um verdadeiro contrato bancário de concessão de crédito celebrado entre o Banco e o cliente a quem é autorizado levantar mais dinheiro do que aquele que está depositado na conta, estamos perante uma responsabilidade obrigacional singular, atenta a eficácia relativa das obrigações. (art. 406º, n.º 2, do CC).
Estamos, pois, perante um contrato válido e eficaz que obriga, no que ao descoberto respeita, apenas a aqui requerida, por ter sido a mesma quem, com os seus movimentos de conta autorizados pelo Banco, deu causa à dívida.
(…)
O “descoberto” traduz-se, pois, na concessão de crédito bancário, com ou sem acordo prévio [Ac. STJ, de 2/2/93, CJ/Stj/I/121]. Consiste na operação pela qual o banco consente que o seu cliente saque para além do saldo existente na conta de que é titular, até um certo limite e por determinado prazo, sendo o seu reembolso exigível a todo o tempo [Ac. RP, de 16/3/1998, CJ/II/206].
Normalmente, o banco, sem qualquer acordo prévio ou forma, concede ao cliente “facilidades de caixa” obviando a dificuldades momentâneas e imprevistas de tesouraria deste.
A maior parte dos descobertos em conta não configura uma operação formalmente negociada, correspondendo a comportamentos sociais típicos (prática bancária) que as partes encaram como tutelados pelo direito e “quer se qualifique essa prática como um negócio nominado de mútuo, quer se entenda que configura um negócio inominado, a sua natureza leva a que se lhe apliquem as regas próprias do mútuo mercantil” [Ac. RL, CJ/1997/I/121].
Normalmente, trata-se de operação independente de contrato escrito ou formalidade, a cuja validade não importa a necessidade de qualquer formalização por escrito.
Mesmo que se aplicasse o regime do mútuo, no que respeita a forma (art. 1143º do CC), por o descoberto resultar, essencialmente, de dois cheques (referidos no ponto 4 dos factos provados) de valor superior a € 2.000,00 debitados na conta da ré, com a necessidade de escrito particular, haver-se-ia de concluir pela suficiência de forma.
Por outro lado aos empréstimos bancários aplica-se o DL nº 32765, de 29/04/1943, que, no seu artigo único, prescreve “os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante” basta para prova do empréstimo mero escrito particular, independentemente do montante do crédito.
O escrito particular é exigido apenas para prova do mútuo.
Assente a relação em causa como um descoberto em conta, por se lhe deverem aplicar as regras do empréstimo mercantil, admite todo o género de prova, independentemente do seu valor [Ac. RL, de 28/5/87, CJ/III/103].
Dado a ré ter dado duas ordens de pagamento ao Banco autor por meio de saque de cheques de valor superior a € 2.000,00 cada, sabendo que não dispunha de fundos para as suportar, cheques que o Banco veio a pagar, é de concluir, face à interpretação dessa conduta da ré como proposta de levantamento de fundos além dos que dispunha, que os cheques, como documentos particulares por ela assinados, bastam para a prova e regularidade formal do “empréstimo”.» - sublinhado nosso.
Concluindo, as exigências de forma que determinam a invalidade do contrato não são aplicáveis às operações bancárias em apreço, sendo a exigência de forma meramente ad probationem.
Não se verifica, pois, a arguida nulidade.
Nos termos do disposto no artigo 406º, n.º 1, do Código Civil, os contratos devem ser pontualmente cumpridos.
A pontualidade do contrato prende-se não só com a tempestividade da realização das prestações que integram cada uma das obrigações geradas na esfera jurídica de cada uma das partes, mas, essencialmente, com a realização integral de cada uma das cláusulas que as partes estipularam em ordem a criar uma regulamentação própria que visa reger uma situação em que ambas se apresentam como titulares de interesses contrapostos, mas harmonizáveis – artigo 763º, n.º 1, do Código Civil.
Traduzindo-se a obrigação no vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, nos termos do disposto nos artigos 397º e 762º, n.º 1, do Código Civil.
Na medida em que ambas as partes empenham nesta forma de auto-regulamentação das suas situações jurídicas toda a sua confiança, impõe a lei que no cumprimento da obrigação devem as partes agir de boa fé – artigo 762º, n.º 1, do Código Civil.
Dispõe o artigo 798º, do Código Civil, que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
O Banco (cuja posição na relação jurídica foi agora ocupada pela A.) permitiu à requerida a disponibilidade daquelas quantias. A requerida não procedeu ao seu reembolso ao Banco.
Mais tarde o Banco cedeu o seu crédito sobre a requerida à aqui A. Esta cedência foi comunicada à requerida, nos termos do disposto nos arts. 577º, n.º 1 e 583º, n.º 1, do Código Civil, pelo que é eficaz quanto a esta, não podendo a requerida negar que é a A. a credora da sua dívida.
O crédito do Banco existe e emerge duma relação contratual.
O Banco é uma empresa comercial, são comerciais as operações de banco destinadas a realizar lucros sobre numerário e o mútuo mercantil é sempre remunerado (arts. 363º, 363º e 395º do Cód. Comercial) (…)”.
Não se verifica, pois, que o Tribunal tenha incorrido em algum errado enquadramento das questões a decidir, atentos os factos provados, nem que tenha ocorrido a violação normativa que a recorrente invocou relativamente à decisão recorrida.
Improcede, neste conspecto, o alegado pela recorrente.
*
5) Se o Tribunal recorrido violou o regime do ónus da prova (art. 342.º do CC)?
Invocou também a recorrente que o Tribunal recorrido “violou o regime do ónus da prova, nomeadamente, violou o disposto no art.º 342º do C.P.C, uma vez que, dá como provado a existência de um saldo a descoberto, sem ter a Autora, (que era a parte a quem cabia fazer a prova) trazido para o processo a prova cabal de tal existência, apenas juntou uns extratos (requerimento datado de 27.04.2016), que não demonstram a origem e o porquê de ser € 13.482,40 (e não por exemplo uma divida de €1.000,00 ou €100.000,00)”.
Vejamos:
O artigo 342.º do CC enuncia os critérios de distribuição do ónus da prova relativamente aos factos da causa.
A parte a quem compete o ónus tem o encargo de fornecer a prova do facto visada, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova (cfr. Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1976, p. 196). O ónus da prova tem ainda como consequência que a incerteza ou o non liquet do juiz acerca de qualquer ponto de facto, depois de consultadas as provas dos autos, se resolve em desfavor do sujeito processual ao qual incumbiu a prova do facto respectivo (idem, p. 197).
Como refere Francisco Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 230), “a parte a quem convenha que um dado facto seja dado como assente terá que afirmá-lo ou deduzi-lo perante o tribunal (ónus de alegação, afirmação ou dedução) e desenvolver para tal uma adequada e eficaz atividade probatória”.
Ao ónus de alegação referem-se os artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 572.º, als. b) e c) do CPC e ao ónus da prova os artigos 342.º a 348.º do CC, existindo, entre ambos os ónus um princípio de coincidência: “a parte que tem o ónus de alegar (os factos substanciadores da causa de pedir ou das exceções ou contra-exceções) tem normalmente o ónus de provar esses mesmos factos” (Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 230-231).
“O preceito visa dar resposta ao dever de julgar que resulta para o juiz do n.º 1, do artigo 8.º, do CC, mesmo perante a dúvida insanável acerca dos factos em litígio. O non liquet no plano de facto não pode nunca traduzir-se num non liquet jurídico” (assim, Rita Lynce de Faria; Anotação ao artigo 342.º do CC, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral; Universidade Católica Portuguesa, 2014, p. 811, nota I).
Ou seja: “A regra do ónus da prova intervém em dois momentos processuais e com funções distintas.
Em sede de apuramento dos factos provados e não provados, a regra do ónus da prova veicula um critério de decisão nos termos do qual, perante a inconcludência ou insuficiência da prova realizada sobre um enunciado fáctico e em nome da proibição do non liquet (art. 8º, n.º 1), o juiz decide contra a parte onerada com a prova do facto (…).
Num segundo momento e após a fixação dos factos provados, a regra do ónus da prova intervém como pauta de decisão sobre a (im)procedência da pretensão de mérito deduzida em juízo, mediante a formulação de um juízo de conformidade/subsunção ente os factos provados e os requisitos constitutivos da hipótese de facto pressuposta para aplicação da norma favorável, ao abrigo da qual a parte deduziu a pretensão (…)” (assim, Luís Filipe Pires de Sousa; Direito Probatório Material; Almedina, Coimbra, 2020, pp. 13-15).
Nos termos do artigo 342.º do Código Civil, "àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado" (n.º 1), ao passo que "a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem invocação é feita" (n.º 2).
Por factos constitutivos "entendem-se os factos idóneos, segundo a lei substantiva, para fazer nascer o direito que o autor se arroga contra o réu, isto é os factos de que depende o êxito da pretensão que o autor se propõe fazer valer, ou, por outras palavras, de que depende a procedência da acção" (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra, p. 282).
Se o autor não conseguir fazer a prova dos factos constitutivos, ou, mais rigorosamente, se os factos constitutivos não estiverem provados no processo, a acção improcede; se os factos constitutivos ficam provados, a acção só improcederá se o réu lograr opor com êxito factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo autor.
A recorrente considera que o Tribunal recorrido violou o aludido regime legal sobre o ónus da prova porque foi dada como assente e provada a existência do saldo a descoberto, sem que - no entender da recorrente - a autora tenha logrado carrear para os autos prova bastante de tal facto.
Sobre esta invocação cumpre salientar, desde logo, que a autora, em sede do requerimento de injunção invocou que a cedente, no âmbito da sua actividade, celebrou com os ora réus contrato de abertura de conta e que, estes, “apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreu, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os Requeridos não efectuaram, até à presente data, qualquer pagamento. Nem prestaram qualquer justificação”.
Ora, na decisão recorrida, consta dos factos provados em E), F) e G), o seguinte:
“E. Foi entre o JA…, MJ…, e o BANCO celebrado um contrato de abertura de conta à ordem, tendo ainda sido sinalizada como “Forma de Obrigar”, a modalidade de “C/SOLID. Pode ser movimentada com a assinatura de qualquer dos titulares”.
F. 09/09/2002, aquela conta … apresentava um saldo negativo de 13.482,46 €.
G. O descoberto em apreço resultou de operações realizadas apenas por MJ…”.
Conforme decorre da motivação enunciada pelo Tribunal recorrido, a respeito da convicção alcançada pelo Tribunal, “assentou no conjunto da prova produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, face às regras da experiência comum”, especificando-se, a mesma do modo supra transcrito.
Da aludida motivação resulta expressa e detalhada, a fonte da convicção do Tribunal e, da mesma, não resulta que os factos apurados – designadamente as mencionadas alíneas E), F) e G) – tenham derivado da actuação das regras de repartição do ónus da prova constantes do artigo 342.º do CC, antes tendo derivado da livre apreciação probatória efetuada pelo Tribunal sobre as fontes probatórias enunciadas pelo Tribunal recorrido. Em concreto: Documentação junta pela autora, documentação junta pelo réu e declarações prestadas por este, nos termos circunstanciados pelo Tribunal.
E, ao invés do invocado pela recorrente, verifica-se que o resultado probatório alcançado pelo Tribunal recorrido é congruente e compatível com as aludidas fontes de prova, nos termos que foram, aliás, plenamente detalhados em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto.
Não se vislumbrando qualquer violação das regras do ónus da prova, nem do mencionado artigo 342.º do CC, soçobram, nesta matéria, as conclusões da apelante.
*
6) Se o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 236.º, 238.º e 239.º do CC?
Finalmente, invocou a apelante que o Tribunal a quo violou os artigos 236.º, 238.º e 239.º do CC.
Invocou a este respeito a recorrente o seguinte:
“O documento apresentado pelo Réu, na sua oposição à injunção, datada de 21.01.2016, DOC. 1, designado por “contrato de empréstimo”, é um documento que não está datado, é equívoco, e segundo as declarações de parte do Réu, que já foram transcritas neste recurso (aos 12:08 das suas declarações), o mesmo afirma que o banco não aceitou o documento, porque o suposto contrato, não estava assinado pelos dois titulares.
Confrontando as declarações de parte do Réu, com o documento junto, e partindo do pressuposto (apesar de não ter ficado provado), que este contrato seria verdadeiro, pode-se verificar, que no referido contrato, consta quer do preambulo do mesmo, quer no seu clausulado, o nome dos dois titulares; não há referencia à exclusão da responsabilidade do Réu MA… e apenas só um é que assina.
Ou seja, ao elaborar este contrato a vontade do Banco e como consta do mesmo, seria que esse contrato fosse assinado pelos dois titulares e não só por um, provavelmente, porque se estava a falar de uma conta solidária, com dois titulares.
Assim sendo, como pode o Tribunal a quo, assentar a sua convicção num contrato que não exprime a vontade das partes intervenientes, pois o banco pretendia a assinatura de dois titulares e não de um, por isso, o Réu nas suas declarações vem frisar que “eu perguntei ao gerente do banco se devia de devolver porque eu não ia assinar e ele disse do banco, dentro da sucursal, disse não, eu só recebo se for assinado. Aliás estou praticamente seguro que os originais desses dois documentos estão na nossa posse.”
o Tribunal violou os critérios de interpretação e integração do contrato, art.º 236º e ss. do C.C., pois não analisou de forma criteriosa, por um lado, a suposta vontade do banco, que pretendia a assinatura dos dois titulares e a responsabilização dos dois, e por outro, não foi criterioso a ponderar as declarações do Réu, dado que, o mesmo afirma não ter qualquer responsabilidade com a alegada dívida, mas depois é esse mesmo Réu, que apresenta o suposto contrato e toda a restante documentação que juntou. Foram violados os normativos referidos, e decidindo o Tribunal, por uma condenação deveria ser a condenação dos dois Réus o banco pretendia a assinatura e a responsabilidade dos dois).
Se não houvesse violação da referida disposição legal (art.º 236º e ss,), o Tribunal a quo, não teria dado a relevância que deu ao referido contrato para condenar a Ré, teria absolvido a mesma, ou caso houvesse uma condenação, haveria a condenação dos dois Réus e não só de um”.
E concluiu a apelante nos termos seguintes:
“(…) 35. Se confrontarmos as declarações de parte do Réu, com o referido contrato, e partindo do pressuposto (apesar de não ter ficado provado), que este contrato seria verdadeiro, pode-se verificar, que no contrato consta do preambulo do mesmo e clausulado, o nome dos dois titulares, não há referencia à exclusão da responsabilidade do Réu MA…, e apenas só um é que assina.
36. Ao elaborar este contrato a vontade do Banco seria que o contrato fosse assinado pelos dois titulares e não por um, provavelmente, porque se estava a falar de uma conta solidária, com dois titulares.
37. como pode o Tribunal a quo, assentar a sua convicção num contrato que não exprime a vontade das partes intervenientes,
38. o Tribunal violou os critérios de interpretação e integração do contrato, art.º 236º e ss. do C.C., pois não analisou de forma criteriosa a suposta vontade do banco, que pretendia a assinatura e a responsabilização dos dois titulares e não foi criterioso a ponderar as declarações do Réu, dado que, o mesmo afirma não ter qualquer responsabilidade com a alegada dívida, mas depois, apresenta o suposto contrato e toda a restante documentação.
39. Assim foram violados os normativos referidos, e decidindo por uma condenação, deveria ser a condenação dos dois Réus e não só da Ré (uma vez que o banco pretendia a assinatura dos dois, a conta era solidária e a Autora peticiona o pagamento de €13.482,40 contra os dois titulares).
40. Se não houvesse a violação da referida disposição legal (art.º 236º e ss,), o Tribunal a quo, não teria dado a relevância que deu ao referido contrato para condenar a Ré (…)”.
Importa, neste ponto, pela sua clareza, recuperar as considerações expendidas na decisão recorrida sobre o aludido documento apresentado pelo Réu, na sua oposição à injunção, datada de 21.01.2016, DOC. 1:
“(…) Quanto à identificação dos créditos cedidos, importa mencionar que, daquela documentação, entregue pelo cedente à aqui A. constam os extractos bancário daquela conta à ordem, certo sendo que o valor aí em dívida – v. fls. 88 v. – é justamente aquele que o requerido diz ter sido o valor a cobrir com o contrato de empréstimo que lhe foi proposto celebrar para regularizar a dívida, cfr. fls. 28 v. e ss.
Aqui, acrescente-se, ainda, que, como resultou das declarações prestadas pelo requerido MA…, em sede de audiência, aquela proposta de empréstimo foi acompanhada por ambos os requeridos, mas não foi subscrita pelo requerido pois entendia que tinha sido a requerida a dar causa exclusiva à dívida pois era ela a titular e utilizadora única do cartão “Premier” (…)”.
Conforme resulta das referidas considerações, o Tribunal recorrido teve o cuidado de afirmar apenas que tal documento consubstancia uma mera proposta de contrato de empréstimo com vista à regularização da dívida pré-existente.
Ou seja: Não efetuou o Tribunal recorrido qualquer interpretação sobre algum negócio jurídico de empréstimo, nem omitiu alguma análise que devesse ter realizado sobre tal documento epigrafado de “CONTRATO DE EMPRÉSTIMO”.
Repare-se, aliás, que tal documento tem aposta uma data posterior (2004) à de geração do saldo negativo, determinativo do descoberto, cuja ocorrência já se registava no ano de 2002, conforme decorre dos documentos juntos pela autora.
Não foram, pois, de algum modo, violadas as regras interpretativas do negócio jurídico, ínsitas nos supra citados preceitos do Código Civil.
Em conformidade com o exposto, improcedem todas as conclusões da apelante.
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Consequentemente, a apelação deverá ser julgada improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Nos termos do disposto nos n.ºs. 1 e 2 do artigo 527.º do CPC, a responsabilidade tributária atinente, incidirá sobre a apelante/recorrente, atento o seu integral decaimento.
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5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão recorrida, proferida em 25-11-2019, nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente.
Notifique e registe.
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Lisboa, 10 de setembro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes