Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3896/2006-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAV
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- No estádio actual, o regime consagrado nos julgados de paz não os perspectiva como instrumentos substitutivos de administração de justiça relativamente aos tribunais judiciais, menorizando a sua função de meios de resolução alternativa de justiça.
II- Não se vê que a lei tenha querido assumir uma orientação em detrimento da outra; a atribuição aos julgados de paz de um regime de exclusividade no tocante à competência em razão da matéria imprime-lhes decisivamente a marca de tribunais de substituição e não de tribunais alternativos para a resolução dos litígios.
III - A competência dos julgados de paz para as acções a que alude o artigo 9.º da Lei nº 78/2001, de 13 de Setembro não é exclusiva e, por conseguinte, os interessados podem livremente optar por instaurar nos tribunais judiciais as referenciadas acções.
IV- Não resulta da referida Lei que haja um regime de exclusividade, não resulta igualmente esse entendimento à luz do elemento histórico auxiliar do intérprete que assume, no caso, particular relevância.
V- A especialidade mais marcante introduzida pela Lei nº 78/2001 é a mediação que, no entanto, carece do acordo entre as partes e, por isso, se uma das partes intenta acção em tribunal judicial, isso significa que não está à partida interessada na mediação.
VI- A forma como está regulamentada a tramitação processual nos julgados de paz admite que, por razões processuais, a acção neles proposta possa vir a prosseguir no tribunal judicial; por isso, não é lógico que se imponha instaurar acção no julgado de paz, admitindo-se que esta possa vir a prosseguir no tribunal judicial e, assim sendo, também se deve concluir que a competência dos julgados de paz não é exclusiva.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1. Maria.[…] propôs no Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa no dia 17-9-2003 acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumaríssimo contra […] Companhia de Seguros, SA […] a sua condenação no pagamento de € 3.396,27, valor dos prejuízos emergentes de acidente de viação ocorrido no dia 12-12-2001.

2. Por decisão de 19-7-2005 o tribunal judicial considerou-se incompetente em razão da matéria considerando que a matéria em causa é da competência exclusiva dos julgados de paz face ao disposto no artigo 9.º/1,alínea h) da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho (doravante os artigos referidos sem indicação de lei são os da Lei n.º 78/2001) que estabeleceu a organização, funcionamento e competência dos julgados de paz e, consequentemente, absolveu os réus da instância.

3. Desta decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público, apoiado no parecer da Procuradora Geral da República nº 10/2005 de 21-4-2005, publicado no DR, II Série, nº 169 de 2 de Setembro de 2005, que constitui doutrina obrigatória para os magistrados do Ministério Público, segundo o qual “ no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz é optativa, relativamente aos tribunais judiciais, com competência territorial concorrente; o Estado-Administração pode ser parte em acções propostas nos julgados de paz, quer na sua veste de titular de direito privado, quer como ente público, quer como demandante, quer como demandado; a competência para o Ministério Público representar o Estado, nos termos do artigo 219.º da Constituição e dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público reporta-se aos tribunais estaduais, designadamente aos tribunais judiciais e aos tribunais administrativos e fiscais; o Ministério Público não representa o Estado nos julgados de paz.

4. O Ministério Público conclui a minuta de recurso apresentando as seguintes conclusões:

- A natureza dos julgados de paz é alternativa e não exclusiva.
- Não se encontrando o território nacional coberto pela instalação de julgados de paz, não faz sentido que esta jurisdição conheça, em exclusivo, de matérias apreciadas por tribunais judiciais em outras circunscrições territoriais.
- Igualmente, o princípio de reserva de jurisdição, ou a disponibilidade das partes na possibilidade de submeterem os litígios materialmente judiciais nos tribunais judiciais, aponta para uma competência alternativa.
- Acresce que a consagração da competência exclusiva expressa nos projectos de lei que antecederam a aprovação da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, não obteve consagração no texto vigente.
- Favorecem, de resto, a tese da sua competência alternativa os artigos 41.º e 59.º, n.º3 da sobredita lei, não fazendo sentido que os tribunais judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos julgados de paz ou seja requerida prova pericial.
- Os artigos 66.º do C.P.C. e 211.º da C.R.P., invocados no texto da sentença recorrida, não apontam para a competência exclusiva da jurisdição de paz,  pois o que está em causa é, justamente, a ausência de uma norma atributiva de competência a um tribunal judicial e outra atributiva de competência aos julgados  paz.
- O reconhecimento de que um tribunal judicial e um julgado de paz têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diversas.
- A prolongada inércia legislativa no sentido de clarificar a competência - alternativa/exclusiva - dos julgados de paz não pode deixar de apontar no sentido do entendimento perfilhado pelo Ministério Público.


Apreciando:


5. A questão que está, pois, em causa no presente recurso é a de saber se os julgados de paz, no que respeita às acções referidas no artigo 9.º e cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1.ª instância - designadamente as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual - dispõem de competência exclusiva ou, pelo contrário, a sua competência é alternativa relativamente à dos tribunais judiciais.

6. Não subsiste dúvida, face ao texto constitucional, de que os julgados de paz são tribunais (artigo 209.º/2 da Constituição da República) que não estão integrados nem na categoria dos tribunais judiciais que tem como órgão superior da hierarquia o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 210.º da Constituição da República) nem na categoria dos tribunais administrativos e fiscais que tem por órgão superior o Supremo Tribunal Administrativo (artigo 212.º da Constituição da República).

7. Os julgados de paz constituem, portanto, uma categoria de tribunais autónoma face a outras categorias ou ordens de tribunais, tal como sucede com o Tribunal Constitucional ou o Tribunal de Contas.

8. A competência dos tribunais judiciais é residual no sentido em que “ são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (artigo 66.º do C.P.C.).

9. No que respeita à competência material dos tribunais afigura-se-nos imanente à lei o propósito de fixar um quadro em que a competência para a resolução dos litígios seja atribuída a um tribunal e apenas a um tribunal, percorrido que seja o caminho definidor traçado pela lei.

10. Deseja-se naturalmente que um tal caminho seja fixado em termos acessíveis para que se evitem conflitos de jurisdição ou de competência, patologia processual que é quase sempre sinal de insuficiências ou de falta de clareza no plano substantivo.

11. Não nos parece, portanto, que a lei, salvo expressão directa em contrário ou fundada razão justificativa, se oriente ou deseje a fixação de competências concorrentes ou alternativas.

12. Talvez se possa afirmar que há um interesse público em que os mesmos litígios sejam julgados pelos mesmos tribunais, podendo essa identidade ser caracterizada mais ou menos amplamente, mas sempre de forma que uma tal concretização integre uma categoria abstracta de litígios; se tal não sucedesse, teríamos tribunais criados para a resolução de um litígio determinado.

13. Por isso, quando ocorrem conflitos entre tribunais de categoria ou ordem diferentes, serão eles dirimidos pelos tribunais de conflitos a constituir (artigo 209.º/3 da Constituição): tais conflitos são de jurisdição porque se estabelecem entre tribunais de categoria ou ordem jurisdicional diversas.

14. Se os conflitos se estabelecem entre tribunais da mesma ordem jurisdicional, que se atribuem ou negam reciprocamente competência para conhecer da mesma questão, então o conflito não é de jurisdição, mas de competência (artigo 115.º/2 do C.P.C.).

15. A propósito desta questão, e abstraindo da arrumação dos tribunais que ao tempo se fazia em duas classes - tribunais comuns e tribunais especiais sendo, portanto, critério do artigo 66.º do C.P.C. atribuir aos tribunais comuns o que não fosse atribuível a jurisdição especial -, o Prof. Alberto dos Reis referia que “ quando a lei cria e organiza um tribunal especial, tem o cuidado de delimitar a sua competência, isto é, de designar a massa de causas de que ele pode conhecer: essas, e só essas, ficam dentro do seu poder jurisdicional. Portanto, basta examinar com atenção a lei orgânica do tribunal para se verificar se uma certa causa está compreendida na zona da sua competência...Determinada a categoria do tribunal, o problema da competência está esgotado se há um único tribunal dessa categoria... Mas se há mais do que um tribunal da categoria fixada, a solução completa do problema de competência demanda ainda uma última averiguação: saber qual dos tribunais da referida categoria é competente para a causa...a averiguação consiste, afinal, em saber em que circunscrição territorial há-de correr a causa, em que distrito judicial, em que comarca, em que julgado municipal... As regras a aplicar para esta determinação são regras de competência em razão do território ou regras de competência territorial (Comentário ao Código de Processo Civil, Alberto dos Reis, Vol 1º, páginas 106/109).

16. Partindo da referida regra de competência residual dos tribunais judiciais (artigo 66.º do C.P.C.) e da ideia de que é imanente às regras de competência o objectivo de se atribuir a um tribunal, e só a um tribunal, a competência para resolução de uma categoria mais ou menos ampla de litígios, a lei não carece, a seguir-se este entendimento, quando organiza um tribunal e delimita a sua competência, de afirmar a sua exclusividade para a massa das causas que se devam considerar abrangidas pela sua competência material.

17. Como já referimos, os julgados de paz são tribunais.

18. E são tribunais que, de acordo com a referida Lei n.º 78/2001, têm competência para questões cujo valor não exceda a alçada do tribunal de primeira instância (artigo 8.º), competindo-lhes, em razão da matéria, apreciar e decidir, entre outras, as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual (artigo 9.º/1, alínea h).

19. A sua competência é “ exclusiva a acções declarativas” (artigo 6.º/1), o que significa tão somente que a sua competência se limita às acções declarativas, excluindo-se, assim, as acções executivas, não devendo, a nosso ver, inferir-se daqui que a competência dos julgados de paz é exclusiva no que respeita às acções declarativas referenciadas no artigo 9.º.

20. A exclusividade não se retira também da letra do artigo 9.º/1 da Lei n.º 78/2001 (“os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir…”) a não ser por via da referida ideia de imanência que nos levaria a afirmar que se a letra da lei não aponta para a exclusividade, também não a exclui: outros instrumentos devem, no entanto,  ser buscados em auxílio do intérprete.

21. A exclusividade que se pode afirmar, a partir da letra da lei, é que a competência em razão da matéria referida naquele preceito tem natureza taxativa porque “tipifica, em exclusividade, adentro das acções declarativas, aquelas que os julgados de paz têm competência material para apreciar e decidir” (Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, Cardona Ferreira, Coimbra Editora, 2001, anotação ao artigo 9º).

22. Serão certamente várias as razões que levam o Estado a atribuir competência material a certos tribunais em detrimentos de outros.

23. Nuns casos, aproveitando-se as palavras de Alberto dos Reis, “ procura-se adaptar o órgão à função, procura-se assegurar a idoneidade do juiz; pretende-se que as causas sejam decididas por quem tenha uma formação jurídica adequada. Põe-se assim a matéria em causa em correlação com a preparação técnica dos magistrados que a hão-de julgar, de modo a obter-se um julgamento mais perfeito” (loc. cit., pág. 107); noutros casos, porém, não é tanto a determinação da matéria que reclama um tribunal específico, mas a espécie da acção ou a forma do processo aplicável.

24. A matéria atinente à competência dos tribunais assume a dignidade constitucional de  objecto de reserva relativa de competência da Assembleia da República (artigo 165.n.º1 alínea p) considerando-se que “ no âmbito da reserva caberão as modificações de competência judiciária (competência material ou territorial) que não tenham carácter meramente processual. E também abrange toda a competência dos tribunais, incluindo as competências não jurisdicionais” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira, 3º edição, pág.  675).

25. Reveste, assim, particular importância, no plano interpretativo, o elemento histórico, designadamente quando está em causa a criação de tribunais assumidos pela lei como “ projectos experimentais” (ver artigo 64.º).

26. E, também no plano interpretativo, não pode deixar de assumir relevo a questão de saber se, na criação destes tribunais, estava em causa a necessidade de, em atenção à matéria, adequar as causas a quem tenha uma preparação conforme como, por exemplo, acontece quando se criam certos tribunais especiais (tribunais de comércio, tribunais de família, tribunais do trabalho, tribunais marítimos, etc.) ou quando se organizam determinadas categorias de tribunais (tribunais administrativos e fiscais, por exemplo) ou, pelo contrário, outras razões, outros propósitos levaram o legislador à criação e implementação dos julgados de paz.

27. A referida imanência, a justificar que, na repartição da competência entre os vários tribunais, se encontre apenas um tribunal para uma determinada categoria de litígios, não parece dever afirmar-se de um modo absoluto.

28. Estaremos diante de um objectivo normal e desejável e importante para efeitos interpretativos, sem dúvida, mas de modo algum apto a afastar irremediavelmente a ideia de alternatividade se, para tanto, houver razões justificativas.

29. Assim, se a razão que leva à criação de uma determinada categoria de tribunal se prende com propósitos de eficiência, de celeridade, de descongestionamento de trabalho ou até de divisão de trabalho e a atribuição da competência para o julgamento de certas causas tem em vista assegurar primacialmente tais objectivos, não é, para tal efeito, relevante a natureza das matérias;  a interpretação excludente da alternatividade encontra o seu favor principalmente nos objectivos de descongestionamento e de eficácia.

30. Se o objectivo da lei é o de criar uma categoria de tribunal que, pelo funcionamento dos serviços, pela flexibilidade da tramitação processual e pela filosofia que o informa - a de alcançar a resolução do litígio por acordo das partes com a  intervenção cooperante e actuante do tribunal - permite assegurar a justiça de proximidade, equitativa e de participação que os tribunais comuns não asseguram, não é de igual modo a natureza das matérias a tratar o que importa para a constituição e criação desses tribunais.

31. O desenvolvimento bem sucedido destes tribunais poderá conduzir à substituição dos tribunais judiciais que decidem pequenas causas pelos novos tribunais - os julgados de paz - que vão conseguir os objectivos falhados pela jurisdição comum.

32. No entanto enquanto não se proceder à substituição dos tribunais de pequena instância pelos julgados de paz - por se verificar que não há em razão da matéria nenhuma razão que justifique a subsistência da jurisdição comum se os julgados de paz afirmarem em toda a plenitude os seus objectivos - há todo um período de crescimento de que os julgados de paz carecem para se estruturarem e adoptarem procedimentos que os habilite, num amanhã próximo, assumirem o pleno da competência material.

33. O actual regime legal dos julgados de paz é, portanto,  na sua essência, um regime de índole transitória e essa transitoriedade manifesta-se, como veremos, no elenco das matérias que foram escolhidas para a sua competência - desde logo, a limitação às questões cíveis, deixando de fora o mundo da pequena instância criminal -  e nas próprias soluções processuais em que se devolve ao tribunal judicial o que é susceptível de causar delongas para se possibilitar ao julgado de paz a desejada imediata eficiência.

34. Tais propósitos justificam que, transitoriamente, durante  período experimental mais ou menos breve, não seja encarada a concorrência entre os julgados de paz e os tribunais comuns, no domínio da competência em razão da matéria, como uma perversão ou como uma falha da sistematização lógica que, em regra, aponta, para a resolução das mesmas matérias sempre pelos mesmos tribunais.  

35. Já vimos que a Lei nº 78/2001, de 13 de Julho não prescreve que seja da competência exclusiva dos julgados de paz apreciar e decidir as acções  tipificadas no artigo 9º.

36. E também já vimos que não há, na lei, nenhuma norma a prescrever que , atribuída competência em razão da matéria a determinados tribunais, fique imediatamente afastada a possibilidade de outros tribunais julgarem essa mesma matéria.

37. Não está afirmada na Constituição a proibição da simultaneidade de competências materiais entre tribunais de jurisdição diferente, não resulta do ordenamento infra-              -constitucional, a nosso ver, mais do que a orientação, que é lógica, de que ao definir-se a competência em razão da matéria de um tribunal se vise atribuir-lhe exclusividade.

38. No entanto, um tal entendimento pode ser afastado tanto por vontade expressa manifestada na lei como pelo próprio regime concretamente fixado na lei, ponderadas as razões que o informam.

39. O elemento histórico tem, no caso,  particular relevância.

40. No Projecto de Lei n.º 83/VIII de 20-1-2002 sobre julgados de paz - organização, competência e funcionamento - apresentado pelo Partido Comunista Português defendia-se a competência exclusiva dos julgados de paz.

Referia-se:

“ o Juiz de Paz tem competência em matéria cível e em matéria penal.

Em matéria cível:

O cidadão que até agora propunha acções nos tribunais de comarca, ou em juízos de pequena instância cível, através de um processo burocratizado, para

• · Cumprimento de obrigações pecuniárias que não excedam a alçada do Tribunal de Comarca,
• · Obter indemnizações por dano cujo montante não exceda a alçada do Tribunal de Comarca,
• · Entrega de coisas móveis cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de Comarca, passará a apresentar a causa perante o Juiz de Paz, através de um processo onde as formalidades estão reduzidas ao mínimo.

As injunções retiraram-se da competência do Juiz de Paz.

Passam também a ser apresentadas ao Juiz de Paz, em processo desburocratizado, as causas relativas a "direitos e deveres de condóminos sempre que a respectiva Assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitral, para a resolução de litígios entre condóminos ou entre condóminos e o administrador ".

O cidadão pode ainda solicitar ao Juiz de Paz que proceda à conciliação em sede não contenciosa de litígio ( desde que se trate de " vizinhos") seja qual for o valor em causa.

E é também ao Juiz de Paz que passam a ser submetidos litígios entre proprietários de prédios confinantes relativos a passagem forçada momentânea, escoamento natural de águas, obras defensivas das águas, comunhão de valas, regueiras e valados, sebes vivas; abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes; estilicídio, plantação de árvores e arbustos, paredes e muros divisórios.

E se o cidadão tiver que intimar qualquer órgão da freguesia ou do município para poder consultar documentos, ou para lhe serem passadas certidões, deixará de fazê-lo na longínqua justiça administrativa, para apresentar o pedido no Julgado de paz, perto de si.

Será ainda o Juiz de Paz a julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-ordenação, salvo o disposto nos artigos 87.º, 89.º e 90.º da Lei de Organização dos Tribunais Judiciais relativamente ás contra-ordenações laborais.

Deixa-se ao Governo a possibilidade de manter qualquer das competências nos juízos de pequena instância cível, se isso se justificar, ficando o Julgado de paz com a competência restante”.

41. O projecto de articulado, em coerência, dizia no artigo 5º sob a epígrafe, “competência do juiz de paz em matéria cível e administrativa” que

“1. Compete ao Juiz de Paz, em matéria cível, conhecer das questões relativas a:”

42. Sucede, porém , que o texto final não inculca o entendimento de existência de uma competência exclusiva em razão da matéria.

43. No Parecer da P.G.R., acima referido, desenvolve-se argumentação no sentido de que houve uma alteração entre o texto do projecto aprovado pelo P.C.P. e o texto final, convertido em lei, referindo-se que “ esta questão da competência exclusiva nunca foi erigida em elemento nuclear da nova organização, não foi especificamente discutida, nem se adoptaram alterações ao Código de Processo Civil ou à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais... (decorrentes do Projecto n.º 82/VIII ou outras) que possam ser tidas como contributo interpretativo.
 
44. Também o texto final adoptado que se afastou, sem justificação, do regime de competência exclusiva e residual que constava do projecto, não fornece qualquer apoio hermenêutico sobre a intenção legislativa”.

45. Os julgados de paz não constituem, pelo menos nesta sua fase de desenvolvimento, tribunais aptos, com a ampla competência de que dispõem os juízos de pequena instância cível, a garantir uma justa composição dos litígios - de todos os litígios, portanto - com a celeridade e eficiência que resulta da aplicação dos princípios que constam do artigo 2.º/2 da Lei n.º 78/2001, princípios da simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.

46. E nem mesmo a sua competência, limitada às referidas acções, se assume como uma competência processualmente apta a resolver todos os litígios que lhe sejam submetidos.

47. Não se pode sequer afirmar que os julgados de paz julgam sempre as acções propostas que estão definidas no artigo 9.º.

48. Há de facto na articulação do regime dos julgados de paz com o regime aplicável na pequena instância cível uma dependência da jurisdição comum quando, por meras razões processuais, se admite que os julgados de paz vêem cessar a sua competência.

49. Há ainda uma dependência da jurisdição comum quando os julgados de paz se assumem competentes em relação a determinadas acções (artigo 9º/1, alínea a) se o credor for pessoa singular, já  não quando seja ou tenha sido pessoa colectiva.

50. Ao excluir-se dos julgados de paz certas acções (artigo 9.º,n.º1, alínea a) isso não significa que essas matérias não merecem ser julgadas por julgado de paz; a razão está apenas na necessidade de à partida aliviar estes novos tribunais da carga imposta por tais acções, aquelas em que pessoas colectivas reclamam crédito pecuniário, já não aquelas em que o demandante é pessoa singular.

51. Falamos em dependência no sentido em que, no actual momento histórico dos julgados de paz, estes tribunais não podem dispensar o concurso dos tribunais de 1ª instância para  conseguirem uma justa composição de litígios em tempo breve.

52. Não há, portanto, uma competência em razão da matéria exclusiva justificada em função da matéria; um determinado litígio instaurado em julgado de paz poderá afinal ser julgado pelo tribunal de pequena instância cível se, por exemplo, for instaurado um incidente processual (artigo 41.º).

53. A celeridade e eficiência do julgado de paz depende de outro tribunal, de igual modo competente para julgar aquela matéria, que suportará as delongas que o julgado de paz não pode nem deseja suportar.

54. De igual modo, agora no plano probatório, verifica-     -se que, “ requerida a prova pericial, cessa a competência do julgado de paz, remetendo-se os autos ao tribunal competente para aí prosseguirem os seus termos, com aproveitamento dos actos já praticados” (artigo 59º.nº3).

55. Mais uma vez a celeridade e eficiência do julgado de paz dependem de outro tribunal, de igual modo competente para julgar aquela matéria e que irá suportar as delongas que o julgado de paz não pode nem deseja suportar.

56. Os julgados de paz têm competência para apreciar certas matérias a não ser que, por razões estritamente processuais, tais causas devam prosseguir nos tribunais competentes.

57. Este regime, de índole transitória,  não justifica que se imponha que os interessados proponham acção num tribunal  quando  não lhes é garantido pela lei que a acção prosseguirá nesse tribunal até final.

58. Não está, portanto, assegurada a exclusividade dos julgados de paz para conhecerem dos litígios a que alude o artigo 9º.

59. Do ponto de vista da tramitação e garantias processuais naquelas acções, por exemplo, cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância, algumas das quais seguem em jurisdição comum a forma de processo sumário, a Lei nº 78/2001 é mais limitativa.

60. De facto, a nível da audiência de julgamento introduz-se um regime sancionatório para o interessado faltoso (artigo 58.º) provavelmente inspirado no artigo 796.º do CPC (anterior à reforma de 1995/1996) que não tem paralelo actualmente no julgamento de acções sumárias ou sumaríssimas;  a prova testemunhal a produzir está limitada a 5 testemunhas ao passo que no processo sumaríssimo o limite é de 6 testemunhas (artigo 796.º) e de 10 na acção sumária (artigo 789.º do CPC). Na acção sumaríssima as testemunhas podem ser notificadas a solicitação, mas tal faculdade não é reconhecida pela Lei nº 78/2001.

61. Podia argumentar-se, é certo, que estas diferenças seriam razão para se considerarem competentes à partida os julgados de paz visto que não se reconhece aos demandados a possibilidade de, discordando, reclamarem a remessa do processo, fora dos assinalados casos, para o tribunal judicial a fim de nele exercerem a sua defesa de modo mais efectivo.

62. A opção estaria, portanto, nas mãos do autor que instaurará o procedimento no tribunal que mais lhe convier existindo, neste aspecto, uma situação de sujeição do demandado.

63. É claro que, uma vez proposta a acção, as regras processuais são iguais para ambas as partes.

64. Por isso, estas diferenças do foro processual, ao nível da tramitação, não se situam verdadeiramente no plano da causa, mas no do efeito: de facto, ou os julgados de paz dispõem de competência exclusiva no que respeita às matérias assinaladas no artigo 9.º para efeito de propositura da acção, ou não dispõem dessa exclusividade e, por conseguinte, a referida sujeição é consequência do regime legal que admite a liberdade de escolha de que só pode dispor quem demanda pois só quem demanda tem a iniciativa processual.

65. Não se vê que seja curial suprimir uma liberdade de escolha, que só pode pertencer ao demandante ( é dele o dispositivo) apenas por se não reconhecer ao demandado, proposta a acção no julgado de paz, a faculdade de requerer a remessa dos autos para a jurisdição comum, faculdade que igualmente se não reconhece ao demandante.

66. Temos vindo a focar a competência dos julgados de paz na sua vocação de tribunal decisor munido de competência em razão da matéria para certas acções.

67. Os julgados de paz têm a sua “actuação vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes” (artigo 2.º/1).

68. Os julgados de paz constituem, nesta outra perspectiva (ver supra 30), entidades vocacionadas para a resolução alternativa de litígios.

69. Esta sua missão é específica.

70. Não é, no entanto, obrigatória.

71. Se o fosse, dir-se-ia que não se justificava de modo algum deixar-se na livre disponibilidade do interessado propor a acção no julgado de paz ou no tribunal judicial competente visto que, a dar-se esta segunda hipótese, estava irremediavelmente precludida a mediação.

72. No entanto a mediação só se dá se as partes estiverem de acordo (artigo 50.º).

73. A mediação é precedida de pré-mediação (artigo 49.º).

74. Mas nem esta é obrigatória: se a parte formular o pedido, afastando essa possibilidade, não há sequer pré-       -mediação (artigo 49.º).

75. Afigura-se razoável o entendimento de que, proposta a acção na jurisdição comum, é manifesto que uma das partes - o demandante - não quer a mediação, pois, se a quisesse, intentaria acção nos julgados de paz.

76. A sentença proferida nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1ª instância pode ser impugnada por meio de recurso, o que significa que não se julgou ainda conveniente equiparar  os julgados de paz aos tribunais judiciais que julgam definitivamente (salvo os casos excepcionais contemplados na lei em que se admite recurso das decisões: artigo 678º) as acções propostas cujo valor não exceda o valor fixado para a alçada da comarca; também não se julgou conveniente desenvolver a autonomia dos julgados de paz, atribuindo-lhes exclusividade para conhecimento de recursos das suas decisões por uma instância própria superior.

77. Não se vê razão para que se reconheça competência aos tribunais judiciais para conhecimento das matérias que são da competência dos julgados de paz por via de remessa dos processos pendentes nos julgados de paz, mas não se lhes reconheça competência à partida para logo neles ser instaurada acção incidente sobre tais matérias.

78. Não nos parece que, no estádio actual, seja defensável - no sentido de preferível - o entendimento sufragado na decisão recorrida e em algumas decisões da Relação, pois corre-se o risco, em matéria tão delicada, de a jurisprudência avançar soluções cuja responsabilidade compete ao poder legislativo.

79. Ora, como se viu, não foi desejado prescrever a competência exclusiva dos julgados de paz no tocante ás assinaladas matérias.

80. A ideia de que a competência em razão da matéria implica exclusivismo não pode ser encarada dogmaticamente, como já se disse, não tem suporte em nenhuma norma constitucional ou infraconstitucional, muito embora seja um corolário lógico, mas não necessário, do regime/regra de distribuição de competência entre tribunais, sejam da mesma ou de diversa ordem jurisdicional.

81. Aceita-se que assim será em regra, por imposição de lógica, mas isso não significa que certas situações concretas, justificadas, não devam ser ponderadas.

82. E entre tais situações contam-se justamente aquelas em que a própria lei, para além de não definir regras de competência de forma exclusiva, admite um regime legal em que há um sistema de comunicação entre tribunais de acções para as quais reconhecidamente são competentes em razão da matéria os dois tribunais na medida em que se aceita que prossigam num deles as acções inicialmente propostas no outro tribunal.

83. Se são razões de ordem meramente processual a justificar a remessa dos autos para um tribunal (artigos 41.º e 59.º,n.º3) que julgará essa mesma acção, não se vê, no estádio actual de desenvolvimento dos julgados de paz, que se imponha ao interessado propor uma acção demandando o réu em tribunal que, num momento subsequente, se pode considerar incompetente, por razões processuais de índole probatória, para julgar a causa ou que se imponha ao interessado demandante, que discorde da decisão, o recurso para um tribunal que pode julgar imediata e definitivamente a causa.

84. Tão pouco se justifica o cerceamento da liberdade de opção visto que os julgados de paz vocacionados para a mediação - e aqui, sim, há neles uma especialidade relevante - não a podem impor sem o acordo das partes.

85. Assim, entre uma interpretação que admite um regime de liberdade em vez de uma imposição de autoridade, confortamo-nos com a primeira opção, julgando, assim, acompanhar a vontade dos representantes do poder legislativo.

86. E estamos igualmente convencidos de que é preferível aos julgados de paz afirmarem-se na sua actuação concreta, aliás com o apoio do próprio regime legal que lhes abre soluções de eficiência, que estão vedadas ou limitadas tratando-se de tribunais judiciais, não se impondo o acesso a quem não quer aceder-lhes.

87. Não é também argumento desvalorizável a paz processual que representa evitar-se conflitualidade sobre matéria atinente à excepção de incompetência em razão da matéria.

88. Os julgados de paz  dispõem de uma estrutura em que se assumem como instrumentos de resolução alternativa de litígios (R.A.L.). Esta perspectiva assume-se principalmente nos instrumentos da mediação, mas também tem expressão no plano processual quando se adoptam procedimentos simplificados, informais que procuram garantir uma justiça de proximidade, uma justiça acessível e fácil para o cidadão.

89.  No entanto os julgados de paz também adoptam um conjunto de instrumentos processuais que são próprios dos tribunais tradicionais, permita-se a expressão, em que avultam as fases processuais características (articulados, audiência de julgamento, sentença), o recurso da decisão proferida com base na legalidade e em que já é obrigatória a constituição de advogado (artigo 38.º, n.º3). Neste plano os julgados de paz tendem principalmente a ser, não meios alternativos de resolução de litígios, mas entidades jurisdicionais substitutivas.

90. Os julgados de paz não foram criados para se assegurar em relação a uma determinada categoria de litígios um tratamento jurisdicional tanto quanto possível uniforme e especializado; do ponto de vista da matéria, a sua tendência é para a competência genérica, o seu limite é o do valor.

91. Se considerarmos os julgados de paz com a função primordial de tribunais vocacionados para a resolução alternativa de litígios, não faz sentido, a nosso ver, que a sua competência seja exclusiva; se os encaramos na sua função de tribunais de substituição - a pequena instância cível de amanhã,  embora dotada com uma filosofia de aplicação concreta da lei mais flexível - já se compreende a exclusividade.

92. No entanto, ainda que se aceite que este é o objectivo a atingir com a criação destes tribunais, afigura-se-nos certo - tanto quanto é possível, neste domínio, exprimir certezas -  que, no estádio actual da lei, não se pretendeu acentuar definitiva e irremediavelmente um destes caminhos.  Ora a atribuição aos julgados de paz de competência exclusiva nas assinaladas matérias afastá-los-ia da sua vocação de meios de resolução alternativa de litígios porque aos demandantes estava impedida a opção. 

Concluindo:

I- No estádio actual o regime consagrado nos julgados de paz não os perspectiva como instrumentos substitutivos de administração de justiça relativamente aos tribunais judiciais, menorizando a sua função de meios de resolução alternativa de justiça.
II- Não se vê que a lei tenha querido assumir uma orientação em detrimento da outra; a atribuição aos julgados de paz de um regime de exclusividade no tocante à competência em razão da matéria imprime-lhes decisivamente a marca de tribunais de substituição e não de tribunais alternativos para a resolução dos litígios.
III - A competência dos julgados de paz para as acções a que alude o artigo 9.º da Lei nº 78/2001, de 13 de Setembro não é exclusiva e, por conseguinte, os interessados podem livremente optar por instaurar nos tribunais judiciais as referenciadas acções.
IV- Não resulta da referida Lei que haja um regime de exclusividade, não resulta igualmente esse entendimento à luz do elemento histórico auxiliar do intérprete que assume, no caso, particular relevância.
V- A especialidade mais marcante introduzida pela Lei nº 78/2001 é a mediação que, no entanto, carece do acordo entre as partes e, por isso, se uma das partes intenta acção em tribunal judicial, isso significa que não está à partida interessada na mediação.
VI- A forma como está regulamentada a tramitação processual nos julgados de paz admite que, por razões processuais, a acção neles proposta possa vir a prosseguir  no tribunal judicial; por isso, não é lógico que se imponha instaurar acção no julgado de paz, admitindo-se que esta possa vir a prosseguir no tribunal judicial e, assim sendo, também se deve concluir que a competência dos julgados de paz não é exclusiva.

Decisão: concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão proferida, julgando-    -se competente em razão da matéria o tribunal recorrido para apreciar a presente acção.

Sem custas

Lisboa, 18 de Maio de 2006


(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)