Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
695/24.0YRLSB-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: ESCUSA
ESTREITA AMIZADE
AUTOR
JUÍZA
RELAÇÃO ANTERIOR AO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA – ART. 119.º CPC
Decisão: DEFERIDA
Sumário: O conhecimento e eventual envolvimento que a Sra. Juíza possa ter em relação aos autos, sendo que, o que estará em discussão terá sido objeto de prévia discussão envolvendo a referida docente e os alunos (entre os quais se encontrava o referido autor), constitui circunstância ponderosa justificativa do deferimento da escusa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A Sra. Juíza de Direito, “A”, a exercer funções no Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz (…) veio requerer, ao abrigo do estabelecido no artigo 119º do CPC, seja dispensada de intervir no Processo nº. (…)/23.8T8(…), em que é autor “B”.
Para tanto invocou, em suma, que foi docente no (…), tendo lecionado dos (…) a (…) Cursos, tendo o referido autor sido seu aluno e que, nesse âmbito, este partilhou, relatando, experiências e situações que tinha tido na sua vida profissional e que se prendiam com as matérias em lecionação na sessão, cuja participação era fator de avaliação. O referido autor era representante de grupo e, nessa qualidade, mantinha contactos com a requerente. A matéria dos autos situa-se nas matérias discutidas em sessão em, que a requerente expôs, na perspética pedagógica, o seu enquadramento. O (…) curso de formação foi o último em que a signatária esteve como docente, participando em festas de encerramento e despedida e tendo mantido com muitos auditores, como o autor, uma relação de estreita amizade que mantém, tendo acompanhado a situação pessoal do autor, conhecendo a sua situação pessoal, familiar e de estágio. A requerente é formadora nos Tribunais e receberá auditores, colegas do autor, que não desconhecerão que se encontra em relação de estreita amizade (que, aliás, partilham) com o autor e que as matérias foram discutidas em sessão.
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Vejamos:
Nos termos plasmados no nº. 1 do artigo 119º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efectivamente, não se discute se o juiz iria ou não manter a sua imparcialidade, mas a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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No caso em apreço, a Sra. Juíza vem invocar que mantém uma relação de estreita amizade com o autor do processo que lhe foi distribuído, que conhece nos termos que concretizou.
Ora, não se coloca em causa o dever de objetividade e distanciamento inerentes ao ato de julgar, sendo a postura de um juiz sempre a de cumprir a lei, com rigor, imparcialidade e retidão, mas pode questionar-se o seu não distanciamento relativamente ao caso concreto, quando uma das partes é pessoa que mantém relação de estreita amizade com a Sra. Juíza.
Não se coloca somente a questão do contacto social, pois, um Juiz é um cidadão como qualquer outro, podendo conviver e integrar-se na sociedade.
Aqui releva também, o conhecimento e eventual envolvimento que a Sra. Juíza possa ter em relação aos autos, sendo que o que estará em discussão terá sido objeto de prévia discussão envolvendo a referida docente e os alunos (entre os quais se encontrava o referido autor).
Não seria só a imparcialidade da Sra. Juíza que ficaria em causa, mas também, a desconfiança sobre si, relativamente aos restantes sujeitos processuais (e segundo a requerente, a terceiros), ou seja, o poder gerar a ideia de que poderia não ser imparcial nas suas decisões, atenta a relação de estreita amizade com o autor.
Tudo tem de se pautar pela transparência e com o maior distanciamento.
Quer do ponto de vista subjetivo quer objetivo, a situação narrada é suscetível de causar perturbação, descrença na Justiça e dúvidas sobre a imparcialidade do Juiz.
Os pedidos de escusa, pressupõem situações excecionais, o que é o caso.
Assim e sem mais considerandos, entendo existir circunstância ponderosa que justifica que a Sra. Juíza seja dispensada de intervir no processo.
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Face ao exposto, defiro o pedido de escusa de intervenção da Sra. Juíza, “A”, no âmbito do Processo nº. (…)/23.8T8(…).
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 01-03-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente com poderes delegados).