Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6668/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
RESERVA DE PROPRIEDADE
VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
II. O art.º 21.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, foi tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
S, S.A., com sede em Lisboa, instaurou, em 26 de Abril de 2007, na 9.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra José e Maria, residentes em Felgueiras, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse declarada judicialmente a resolução do contrato de crédito, celebrado em 19 de Dezembro de 2003, a condenação dos RR. na restituição do veículo automóvel, de matrícula 58-84-OM, e o reconhecimento do direito ao cancelamento do registo averbado em nome do R., alegando, para tanto, o incumprimento do contrato de mútuo, destinado à aquisição do referido veículo, no qual, para além da constituição da reserva de propriedade sobre o mesmo veículo, que se encontra registada a seu favor, foi também acordado estabelecer, como foro competente, o da Comarca de Lisboa.
Conclusos os autos, foi então proferido o despacho de fls. 39 a 49, a declarar o Tribunal territorialmente incompetente para conhecer da acção, face ao disposto no art.º 74.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, e a determinar a sua remessa para o Tribunal Judicial da Comarca de Felgueiras.

Inconformada com tal decisão, agravou a Autora, que alegando formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) A disposição legal a aplicar será a do art.º 21.º do DL n.º 74/75, de 12 de Fevereiro.
b) A regra da competência plasmada nesse art.º 21.º é especial face à regra geral de competência do art.º 74.º do CPC e, como tal, prevalece sobre esta.
c) Tal norma não foi expressamente revogada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, permanecendo em vigor.
d) Nenhuma incompatibilidade se verifica entre a nova redacção do art.º 74.º do CPC e o art.º 21.º do DL n.º 54/75.
e) É necessário atentar ao facto de tal diploma se aplicar a um conjunto de situações residuais, em face da aplicação geral do art.º 74.º do CPC.
f) A referida norma especial protege o titular da reserva de propriedade.
g) O pacto de aforamento é válido e eficaz, vigorando o princípio da irretroactividade da lei.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O despacho recorrido foi sustentado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa agora conhecer do objecto do recurso, emergindo como uma única questão jurídica a determinação do tribunal competente em razão do território, para conhecer da acção destinada essencialmente à resolução do contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, por falta de cumprimento, e no qual fora constituída a reserva de propriedade sobre o veículo automóvel.
A controvérsia decorre da circunstância da introdução da regra de competência territorial da comarca do réu para as acções relativas à resolução do contrato, por falta de cumprimento, e do conhecimento oficioso da infracção a essa regra, operada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, ao alterar os art.º s 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), quando as partes haviam antes convencionado o foro territorialmente competente, assim como a reserva de propriedade sobre veículo automóvel.
Na verdade, as partes convencionaram, em 19 de Dezembro de 2003, o foro da Comarca de Lisboa, para todas as questões emergentes do contrato de mútuo celebrado, tendo a acção de resolução do contrato, por falta de cumprimento, sido proposta em 26 de Abril de 2007, depois da Lei n.º 14/2006 ter entrado em vigor no dia 1 de Maio de 2006.
Assim, uma das problemáticas que ressalta dos autos respeita à aplicação das leis processuais no tempo.
Embora sem formulação expressa na lei processual, o princípio geral que se defende, nesta matéria, é o da aplicação imediata da nova lei processual (ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 47).
Para o efeito, invoca-se, sobretudo, o facto do direito processual ser um ramo do direito público, em que o interesse público do sistema de justiça prevalece sobre o interesse particular dos litigantes, e a circunstância do direito processual corresponder a um ramo de direito adjectivo ou instrumental, que se limita a regular o modo como as pessoas podem fazer valer o direito que, substantivamente, lhes está atribuído.
Assim, por efeito do referido princípio geral e com a adaptação da doutrina estabelecida no art.º 12.º do Código Civil, a nova lei processual aplica-se às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes (ibidem, pág. 49).
Todavia, a aplicação no tempo da nova lei processual poderá ser submetida a um regime especial, definido em normas transitórias inseridas na lei nova.
Foi o que sucedeu com a Lei n.º 14/2006, ao estatuir no seu art.º 6.º, sob a epígrafe “aplicação no tempo”, que a mesma se aplica apenas às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.
Relativamente à lei reguladora da competência, importa ainda convocar o art.º 22.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), onde se estabelece a regra geral segundo a qual a competência se fixa no momento em que a acção é proposta.

No caso vertente, quando a acção foi proposta, em 26 de Abril de 2007, já a Lei n.º 14/2006 estava em vigor, sendo, por isso, aplicável a nova regra de competência territorial introduzida pela mesma, nomeadamente a prevista na primeira parte do art.º 74.º, n.º 1, do CPC.
A essa aplicação não obsta a circunstância de, antes da entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, as partes terem celebrado um pacto de aforamento, estipulando a Comarca de Lisboa como foro competente, que ao tempo era permitido, nos termos do art.º 100.º, n.º 1, do CPC.
Se a competência convencional é tão obrigatória como a que deriva da lei (art.º 100.º, n.º 3, do CPC), também não é menos certo que o efeito da convenção seja diferente do da lei. Tanto esta como o pacto têm a finalidade de definir o tribunal territorialmente competente para a acção.
Sendo assim, e fixando-se a competência no momento em que a acção é proposta, a validade do pacto de aforamento deve ser aferida no confronto com as regras de competência territorial vigentes naquele momento.
Ora, por efeito da Lei n.º 14/2006, a infracção à regra da competência territorial estabelecida na primeira parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, passou a ser de conhecimento oficioso, nos termos da nova redacção da alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, afastando, por via disso, a possibilidade legal de convencionar a competência, como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 100.º do CPC.
Desta sorte, no momento da proposição da acção, o pacto de aforamento celebrado não era válido, estando excluída a sua aplicação.
Neste contexto, não há aplicação retroactiva da lei e, por isso, se afasta qualquer violação ao consignado no art.º 12.º do Código Civil.
Este tem sido o entendimento dominante desta Relação, citando-se, entre muitos, os acórdãos de 16 de Novembro de 2006 (Rec. n.º 9244/06-8), 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9885/06-8), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9884/06-6) e de 15 de Fevereiro de 2007 (Rec. n.º s 370/07-6 e 726/07-8).

Por outro lado, a aplicação aos autos da norma do art.º 74.º, n.º 1, do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não é afastada por qualquer norma especial, nomeadamente a prevista no art.º 21.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, segundo a qual “(…) as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”.
Na verdade, a introdução da regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas à resolução do contrato, por falta de cumprimento, nos termos plasmados na Lei n.º 14/2006, inseriu-se no objectivo de descongestionamento dos tribunais, em especial dos de Lisboa e Porto, sobrecarregados com excessiva pendência processual, resultante da litigância com carácter massificador por parte de certas entidades, de optimizar a organização territorial dos tribunais e de combater a morosidade processual, assim como, por outro lado, de garantir a tutela efectiva e real dos direitos do consumidor, designadamente no acesso aos tribunais.
A alteração legislativa destinou-se, pois, a melhorar a eficiência da administração da justiça, designadamente através da distribuição processual pelo território de forma mais equitativa, bem como a garantir, com mais eficácia, os direitos do consumidor.
O exercício da função legislativa perspectivou-se, claramente, na salvaguarda do interesse público de uma boa administração da justiça, prevalecente sobre o interesse meramente particular.
Embora se tenha produzido uma certa modificação no equilíbrio contratual, decorrente da imperatividade do foro do domicílio do réu, a alteração legislativa, no entanto, não constituiu uma “alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico” (acórdão n.º 691/2006 do Tribunal Constitucional de 19 de Dezembro de 2006, que reiterou a mesma posição nos acórdãos n.º s 41/2007, de 23 de Janeiro de 2007, e 53/2007, de 30 de Janeiro de 2007, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O interesse público na eficiente administração da justiça permite compreender o sentido e o alcance da nova lei, que procedeu à regulação em termos razoáveis, não a tornando extensiva no caso do réu ser uma pessoa colectiva ou ambas as partes terem o domicílio na área metropolitana de Lisboa ou do Porto. Por outro lado, a alteração legislativa não afectou significativamente os interesses das sociedades financeiras, em especial nos custos, pois, não sendo demasiado onerosos, também não são inexigíveis, para além de que o confronto é sempre com uma parte economicamente mais desfavorecida.
Descrito o contexto histórico em que se desenvolveu a alteração legislativa, assim como os objectivos que a orientaram, somos levados a afirmar que o legislador pretendeu afastar a aplicação futura da norma processual da competência territorial do art.º 21.º do DL n.º 54/75, estabelecida num contexto histórico e legal muito diferente do verificado com a Lei n.º 14/2006.
Efectivamente, para além do descongestionamento processual de certos tribunais, onde massivamente acções como a presente eram propostas, pretendeu-se tutelar mais eficazmente os direitos do consumidor, nomeadamente no acesso aos tribunais, dado que as acções, muitas vezes, eram propostas longe do seu domicílio, com as desvantagens daí decorrentes.
Assim, para além do interesse público numa eficiente administração da justiça, conferiu-se maior protecção ao interesse do consumidor, em detrimento do interesse do credor.
Deste modo, o legislador quis estabelecer uma nova e obrigatória regra de competência territorial, designadamente para as acções destinadas à resolução do contrato, por falta de cumprimento, privilegiando o tribunal do domicílio do réu.
Essa nova regra inclui, também, os casos em que tenha sido constituída a reserva de propriedade, tendo por objecto veículos automóveis.
Na verdade, sendo a aquisição de veículos automóveis, desde há vários anos, intensamente realizada através de contratos de crédito ao consumo, nos quais se prevê o acordo sobre a reserva de propriedade [alínea f) do n.º 3 do art.º 6.º do DL n.º 359/91, de 21 de Novembro], não faria sentido, à luz da motivação inspiradora do autor da Lei n.º 14/2006, deixar de fora tais contratos. De outro modo, dada a sua vasta aplicação, ficariam seriamente comprometidos os objectivos visados pelo legislador, o que é de excluir à luz do disposto no n.º 3 do art.º 9.º do Código Civil.
Por sua vez, o DL n.º 54/75 não tem, no âmbito da definição da competência territorial do tribunal, qualquer especificidade que justifique a não aplicação da regra consagrada através da Lei n.º 14/2006.
Por isso, não obstante o art.º 21.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, não tivesse sido expressamente revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, foi, no entanto, revogado tacitamente, por intenção inequívoca do legislador (n.º 3 do art.º 7.º do Código Civil).
Neste sentido, decidiram os acórdãos desta Relação de 22 de Março de 2007 (processo n.º 1935/2007-8) e de 29 de Maio de 2007 (processo n.º 4117/2007-7), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Assim sendo, nos termos da primeira parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, o tribunal territorialmente competente para a acção é o da Comarca de Felgueiras, tal como se decidiu na decisão impugnada.

2.2. Perante o exposto, pode extrair-se de mais relevante a síntese:

1) A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
2) O art.º 21.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, foi tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006.

Assim sendo, o recurso não merece obter provimento, sendo caso de confirmação da decisão recorrida, que se encontra em inteira harmonia com a lei aplicável.

2.3. A recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (art.º s 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC, 16.º, n.º 1, e 18.º, n.º 3, do CCJ).

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar o recorrente no pagamento das custas, com 3 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Setembro de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)