Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1798/2007-3
Relator: VARGES GOMES
Descritores: LIBERDADE DE IMPRENSA
DEVER DE INFORMAR
RADIOTELEVISÃO
MENOR
ENTREVISTA
CONSENTIMENTO
PODER PATERNAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - O direito fundamental de liberdade de imprensa, de expressão e de informação decorre do princípio, universal e pilar primeiro, da dignidade da pessoa humana, bem como do seu direito a um tratamento que não desmereça também a sua dignidade.
II - Não sendo, ainda assim, um direito absoluto, está aquele direito sujeito às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros.
III - É ilícita, por violação do disposto no artº 21º da Lei 31-A/98, de 14/07 - hoje no artº 24º da Lei 32/03, de 22/08 - e da deontologia profissional, a emissão televisiva de uma entrevista a uma criança de 10 anos, perfeitamente identificável, descrevendo ter sido violada, por atentatória da sua dignidade e intimidade pessoal.
IV - É irrelevante e, também, contraordenacionalmente não justificante, o consentimento para a entrevista referida, prestado pelos pais da menor no exercício do seu poder paternal, presente que é, neste domínio, a noção constitucional de desenvolvimento integral - que deve ser aproximada da noção de desenvolvimento da personalidade, assente em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana… por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades - e ainda, que “o consentimento” apenas exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses livremente disponíveis, não o sendo, por absolutos, a dignidade e o valor da pessoa humana.
(sumário da autoria do relator)
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo audiência, neste Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório

1- Nos autos de Recurso (Contra-Ordenação) nº 10092/05.0TBOER, do 3º Juízo Crim. de Oeiras foi, por douta sentença, julgado parcialmente improcedente o recurso interposto pela TV… relativamente à sua condenação, proferida pela Alta Autoridade para a Comunicação Social, na coima de € 75.000, pela prática da contra-ordenação p.p. pelos artºs 21º nº 1 e 64º nºs 1 al. c) e 3 da Lei nº 31-A/98, de 14/07, sendo então agora ali condenada na coima de € 42.000.

2- São os seguintes os factos julgados provados:

1. No Jornal … do dia 27/01/02, e no Jornal das 13H00, do dia seguinte, em versões no essencial semelhantes, a TV… transmitiu uma reportagem sobre uma menina de dez anos, alegadamente violada por um vizinho adulto, numa aldeia dos arredores de P….
2. A referida reportagem consistia em depoimentos da menor e de familiares da mesma.
3. A imagem da menor foi apresentada com a cabeça parcialmente oculta, com um brinquedo que ela própria empunhava, mas sem qualquer disfarce sonoro.
4. O seu depoimento apenas foi colhido por insistência dos familiares que tinham como objectivo demonstrar a todos que o presumível violador representava um grande perigo para todas as crianças da região.
5. As imagens mostravam ainda aspectos gerais da povoação onde os alegados factos teriam ocorrido.
6. Os familiares da menor anuíram em prestar declarações ao jornalista e às câmaras da TV…, sempre visíveis e identificados.
7. Na peça jornalística exibida no Jornal das 13h00, aparece identificada uma mulher, com indicação do seu nome e grau de parentesco - tia.
8. Através da divulgação destas imagens e pela falta de disfarce sonoro, era possível a quem conhecesse a menor, reconhecê-la.
9. A imputação que era feita ao alegado molestador já era sobejamente conhecida naquela povoação.
10. Ao emitir a referida reportagem sem utilizar disfarce sonoro, a recorrente actuou de forma livre e consciente, aceitando como possível que, nas condições em que foi transmitida a notícia, era susceptível o reconhecimento da criança por quem a conhecesse mais proximamente”.

3- É do assim decidido que interpõe, de novo, o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

a) “…2. São três as principais questões que se colocam em causa no âmbito do recurso: 1) a validade e eficácia do consentimento prestado pelos legais representantes da menor para a difusão da reportagem de 27 de Janeiro de 2002, emitida no Jornal … da TV…; 2) a inconstitucionalidade da interpretação adoptada quanto à violação do artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07; 3) a errada subsunção da factualidade dada como provada na decisão recorrida no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07.
3. De toda a prova produzida conclui-se que os legais representantes da menor de dez anos de idade prestaram o seu consentimento para que fosse emitido o teor de depoimento da menor, o qual foi prestado com o rosto ocultado através de um boneco de peluche, que não permitia a identificação da menor.
4. Não é possível concluir de forma segura, face à prova produzida em audiência de julgamento, pela existência de um vício na formação da vontade relativamente ao consentimento dos legais representantes da menor em causa.
5. É precisamente no interesse da menor e não contra o interesse da menor que o poder de representação que integra o poder paternal é exercido ao dar voz a uma criança que foi vítima de um abuso sexual e que o faz livre e espontaneamente diante das câmaras de televisão e na presença dos seus familiares directos.
6. O exercício do poder paternal, nos termos do artº 1878º nº 1 do CC, engloba quer o interesse da menor que é representada pelos pais, como também o interesse altruísta dos pais e da própria menor em exprimir a sua experiência para que todos e todas as crianças que são vítimas daquelas mesmas formas de abuso possam saber que ele existe, mas pode ser enfrentado com coragem pelas jovens e com o apoio das famílias, não tendo que ser hipocritamente escondida uma realidade que não é agradável mas ocorre e só terminará quando houver uma sensibilidade geral para o problema.
7. A decisão recorrida limitou-se a afirmar que o poder paternal é exercido contra o interesse da menor, sem qualquer base factual que o comprove, baseando-se em meros juízos subjectivos e tendo recorrido à figura dos “bons costumes” para retirar conclusões erradas daquele juízo de prognose.
8. Não foram violados os direitos fundamentais da menor visada na reportagem, pois no local onde os factos ocorreram, todas as pessoas tiveram conhecimento do sucedido ainda antes da emissão da reportagem.
9. Além disso, não foi possível para quaisquer dos destinatários do Jornal … - ou seja todos aqueles que conheciam a história - identificar a menor através dos sons difundidos ou das imagens reproduzidas na reportagem da TV…, nem isso foi dado como provado na decisão recorrida.
10. Por outro lado, é evidente o interesse público da notícia, pois foi denunciada a prática de um tipo de crime gravíssimo - de abuso sexual de menores - que merece a reprovação de todos e que durante muito tempo se manteve repetidamente no silêncio, por receio de represálias e, em muitos casos, só por influência dos órgãos de comunicação social foi sendo revelado, como acontece in casu.
11. Suscita-se a questão do conflito de direitos fundamentais antagónicos: o direito à imagem, o direito à intimidade da vida privada, por um lado, e o direito/dever de informação em liberdade, por outro.
12. Questiona-se igualmente qual a natureza dos direitos, liberdades e garantias consagrados nos artºs 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07, e requer que seja julgada e declarada a inconstitucionalidade por violação dos artºs 37º nºs 1 e 2, 38º nºs 1 e 2, 18º nºs 2 e 3 da CRP, da interpretação feita pelo Tribunal a quo da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07, quando interpretada em termos de limitar e restringir a liberdade de expressão e o direito/dever de informar, face aos direitos, liberdades e garantias genérica e abstractamente previstos no nº 1 do artº 21º do referido diploma legal.
13. A previsão legal do artº 21º nº 1 da Lei da Televisão apenas será aplicável quando estejam em causa “casos extremos” de violação dos direitos fundamentais, o que não é manifestamente o objecto dos presentes autos.
14. Na verdade, é a própria decisão ora recorrida, que manifesta dúvidas em relação à subsunção dos factos dados como provados, no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, o que facilmente se conclui pela necessidade em utilizar um exemplo “extremo” de violação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, tentando dessa forma estabelecer um paralelismo com o caso dos presentes autos.
15. Além das declarações da menor terem sido emitidas mediante consentimento dos legais representantes, é também de salientar que a identificação da menor apenas poderia ser eventualmente conseguida pelas pessoas que conheciam a menor e que, por isso, também já conheciam os factos ocorridos, e daquela forma não seria possível a qualquer pessoa identificar, pela primeira vez, a menor, uma vez que a imagem emitida não permitia a identificação do seu rosto, sendo apenas possível ouvir a sua voz.
16. Ou seja, a repercussão da notícia em termos de permitir a identificação da menor pelo público em geral foi nula, facto que não foi devidamente ponderado na decisão ora recorrida, a qual decidiu de forma manifestamente exagerada face à relativa gravidade da situação em termos de identificação da menor.
17. Ao subsumir os factos dados como provados na sentença à previsão do artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, a decisão recorrida fez incorrecta qualificação jurídica da factualidade assente pois, no limite, a norma na qual se poderiam integrar tais factos são o artº 21º nº 3 e o artº 64º nº 1 al. b), ambos do referido diploma legal.
18. Em conclusão, deverá ser revogada a decisão recorrida e a arguida ora recorrente absolvida da prática da contra-ordenação p. no artº 21º nº 1 e no artº 64º nº 1 al. c) da Lei nº 31-A/98, de 14/07;
19. Deverá ainda, caso se mostre necessário, ser apreciada e declarada a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07, por violação dos artºs 37º nºs 1 e 2, 38º nºs 1 e 2, 18º nºs 2 e 3 da CRP.
20. E, finalmente, em caso de indeferimento dos pedidos anteriores, deverá ser alterada a qualificação jurídica dos factos dados como provados na sentença, quando muito e no limite, hipótese que só se suscita por cautela de patrocínio, integrando-os na previsão do artº 21º nº 3 e 64º nº 1 al. b) da Lei nº 31-A/98, aplicando-se-lhe uma coima inferior à que foi concretamente fixada”.

b) Pugnando pela manutenção do decidido, respondeu o MºPº concluindo também:
I. Contrariamente ao que sustenta a recorrente, o consentimento que terá sido prestado pelos pais da menor para recolha televisiva da sua imagem e do seu relato do abuso sexual não pode ser considerado um acto materialmente válido por atentar frontalmente contra os interesses da própria menor e, nessa medida, não configurar um exercício legítimo do poder de representação inerente ao poder paternal.
Com efeito, conforme preceitua o artº 1878 do CC, o poder paternal dos pais é exercido no interesse dos filhos.
Ora, no caso em apreço, não existem dúvidas de que qualquer “bom pai de família” colocado nas circunstâncias dos pais daquela criança teria recusado liminarmente sujeitar o seu filho a reproduzir, perante terceiros e para milhões de pessoas assistirem, os factos de violência sexual de que foi vítima, teria recusado liminarmente difundir pormenores de uma história que só aos próprios (e à justiça) diz respeito.
É por demais evidente que para a saúde, bem estar e salutar desenvolvimento de uma criança não pode ser benéfico que, após ter sido vítima de abuso sexual, seja instada a relatar os detalhes do acontecido, perante pessoas estranhas, sob os focos de uma câmara de televisão, por várias vezes num mesmo dia!
O consentimento em causa é por isso, a nosso ver, manifestamente, desconforme aos interesses da menor e, nessa medida, não é um exercício legítimo do poder paternal, não podendo, assim, deixar de considerar-se inválido.
II. Considera a recorrente que, ao entender que, no caso dos autos em análise, o Direito à imagem e o Direito à reserva da vida privada da menor deveriam prevalecer sobre o direito de informar que assistia à TV…, o Tribunal a quo fez uma interpretação da norma desconforme à lei Fundamental.
Salvo melhor opinião, crermos que no caso em apreço não se verificava sequer um verdadeiro conflito de Direitos Fundamentais.
Na verdade, contrariamente ao alegado pela recorrente, entendemos que o exercício eficaz e adequado do direito à informação que assistia à TV… não dependia, de modo algum, do sacrifício da imagem e da reserva da vida privada daquela menor.
O direito de informar que assistia à recorrente poderia, a nosso ver, ser eficaz e adequadamente exercido sem a exposição pública, ainda que parcial, da imagem da visada, sendo certo que um simples relato do acontecimento - sem quaisquer imagens dos intervenientes - esclarecia de modo eficaz e suficiente qualquer telespectador interessado na notícia do crime e subsequente tratamento judicial do caso. É certo que, desse modo (sóbrio) de abordar os acontecimentos. ficaria sacrificado o espectáculo televisivo. Todavia, esse nada tem a ver com “informação” e não goza seguramente de tutela constitucional.
O interesse noticioso ficaria igualmente satisfeito sem a possibilidade da identificação da vítima e sem o relato dos pormenores íntimos do acto de violência sexual em causa.
Os Direitos Fundamentais da menor foram, pois, sacrificados injustificada e abusivamente.
Não consideramos, desse modo, que tenha havido qualquer interpretação inconstitucional da norma em análise.
III. Pelas razões supra aduzidas, cremos que foi totalmente acertada a subsunção dos factos provados à norma do artº 21º nº 1 da lei 31-A/98 não se vendo, pois, que assista razão ao recorrente nesta parte.

4- Já neste Tribunal da Relação o Il. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo pela improcedência do recurso.

5- Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº 2 do CPP, não houve qualquer resposta.

6- Colhidos os competentes vistos, teve lugar a audiência com observância das formalidades legais.

Cumpre agora decidir.

II- Fundamentação

7- Como, com facilidade, se reconhecerá, são três as questões, concreta e perfeitamente delimitadas, objecto do presente recurso:
1) A validade e eficácia do consentimento prestado pelos legais representantes da menor para a difusão da reportagem de 27 de Janeiro de 2002, emitida no Jornal … da TV…;
2) A errada subsunção da factualidade dada como provada na decisão recorrida no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07;
3) A inconstitucionalidade da interpretação adoptada quanto à violação do artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07”.
Vejamos pois de todas e cada uma delas, não sem que e, desde logo, se entenda de todo justificado recordar que toda a temática do presente recurso se mostra centrada e desenvolve em torno de direitos, consabida e universalmente, fundamentais, quais sejam, e como nos autos se reconhece também, o direito à liberdade de expressão e informação, de imprensa e meios de comunicação social (1) - aqui concretamente no que à televisão respeita - bem como e também o direito à “identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade…da cidadania…à imagem…à reserva da intimidade da vida privada e familiar…(2), sendo certo que, entre um e outro, consagrado se mostra também “o direito de constituir família…”, estabelecendo-se que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos(3).
Inerente a todos e cada um destes direitos, liberdades e garantias pessoais ora deixados referidos - bem como a quaisquer outros - já que como um “prius(4) e “standard de protecção universal(5), necessariamente está o pilar primeiro em que assenta a nossa Constituição da República, o que vale dizer a “dignidade da pessoa humana(6).
À reconhecida dificuldade em definir o conceito, contrapor-se-á, certamente e desde logo, o mérito da sua inequívoca percepção e compreensão que todos e cada um de nós dele temos, em múltiplas e variadas situações do quotidiano.
Ainda assim, e se alongarmos as suas raízes ao direito natural, diríamos que a “dignidade da pessoa humana” constitui um verdadeiro e intrínseco valor e atributo da pessoa, valor este que atribui unidade e coerência a todos os demais direitos. Por isso, e necessariamente, o facilitar quer a interpretação, quer a aplicação de todos e cada um deles, deste modo favorecendo a sua articulação entre uns e outros.
É nesse mesmo sentido que o proclama o “Preâmbulo” da DUDH, dizendo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.
Donde e também, o necessário reconhecimento da sua irrenunciabilidade ou inalienabilidade.
Com Kant, diríamos pois que, como um fim em si mesmo, a qualidade peculiar e insubstituível da pessoa humana, “no reino dos fins tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade ...(7).
Porque concretamente em causa está uma menor de dez anos de idade, vítima de um crime sexual, à colação terá que ser chamada ainda a temática relativa ao exercício do poder paternal.
Vejamos pois, ainda que algo sumariamente, de uns e outros.

a) Velha, de séculos (8) - e, por isso, hoje também omnipresente em todos os instrumentos legais internacionais e europeus (9) - a liberdade de imprensa concretiza-se na livre expressão “pela palavra, pela imagem ou por qualquer meio”, nela se integrando “o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações- artº 37º nº 1 da CRP.
Também agora aqui, realçando que “o direito à liberdade de expressão é um princípio decorrente da dignidade da pessoa bem como do seu direito a um tratamento que não desmereça a sua dignidade”, Dworkin realçou que “a um homem a quem se impede ou dificulta a livre comunicação com os demais é indignamente tratado, vexado na sua condição autêntica já que um homem é um ser comunicativo e locaz, a quem se não pode calar, contra a sua vontade, condenando-o ao alheamento e ao empobrecimento espiritual(10).
Não é porém - tal como qualquer outro direito fundamental - como, e desde logo, ali se reconhece, um direito absoluto. “Não o é na sua dimensão subjectiva, por que os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e do grau de satisfação do respectivo interesse, e também porque é inevitável e sistémica a conflitualidade dos direitos de cada com os deveres dos outros(11).
É esse também o espírito subjacente ao artº 29º da DUDH: Porque todo “o indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre desenvolvimento da sua personalidade- nº 1 -no exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros…- nº 2.
Comprovando-o, adianta logo o nº 3 do citado artº 37º da CRP que “as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidos aos princípios gerais do direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social”, sendo ainda que, adianta agora, expressamente também, o artº 3º da Lei 2/99 - a Lei de Imprensa -tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática”.
Uma outra manifestação concreta dos “limites” referidos, é-nos dada também pelo artº 14º als d), f) e g) da Lei 1/99, de 13/01 - o Estatuto do Jornalista - o qual, e de entre outros, impõe como deveres dos jornalistas, os de “não identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”, bem como e também o de “abster-se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas(12).
Algo compreensivelmente e, por bem mais específicos, são ainda e também, neste domínio, os preceitos legais no que ao meio de comunicação televisão respeita.
O artº 21º da Lei 31-A/98, de 14/07 - então vigente - consagra(va) a proibição de “qualquer emissão que viole os direitos, liberdades e garantias fundamentais, atente contra a dignidade da pessoa humana ou incite à prática de crimes- nº 1 - adiantando especificamente o nº 2 seguinte que “as emissões susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, designadamente pela exibição de imagens particularmente violentas ou chocantes, devem ser precedidas de advertência expressa, acompanhadas da difusão permanente de um identificativo apropriado e apenas ter lugar em horário subsequente às 22 horas”; também o nº 3 seguinte refere que poderão “no entanto, ser transmitidas em quaisquer serviços noticiosos quando, revestindo importância jornalística, sejam apresentadas com respeito pelas normas éticas da profissão e antecedidas de uma advertência sobre a sua natureza”.
Ainda no mesmo sentido vai também o disposto na, actualmente vigente, Lei 32/03, de 22/08, em cujos artºs 7º e 24º se dispõe, respectivamente:
O Estado, os concessionários do serviço público e os restantes operadores de televisão devem colaborar entre si na prossecução dos valores da dignidade da pessoa humana, do Estado de direito, da sociedade democrática e da coesão nacional e da promoção da língua e da cultura portuguesas, tendo em consideração as necessidades especiais de certas categorias de espectadores”, constituindo “limites à liberdade de programaçãoa dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a livre formação da personalidade das crianças e adolescentes- nº 1. Adianta o nº 2 seguinte que, “quaisquer outros programas susceptíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou de adolescentes ou de afectarem outros públicos vulneráveis só podem ser transmitidos entre as 23 e as 6 horas e acompanhados da difusão permanente de um identificativo visual apropriado”.
Daqui, a obrigação também decorrente do disposto no artº 30º, de que “todos os operadores de televisão devem garantir, na sua programação, designadamente através de práticas de auto-regulação, a observância de uma ética de antena, consistente, designadamente no respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos demais direitos fundamentais, com protecção, em especial, dos públicos mais vulneráveis, designadamente crianças e jovens”.
Em tudo conforme com os princípios e normas referidas, relembraríamos também a Convenção Europeia sobre a Televisão Transfronteiras (13), cujo artº 7º nº 1, em “matéria de programação”, impõe que “todos os elementos que compõem os serviços de programas, tanto em relação à sua apresentação como ao conteúdo, devem respeitar a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais de terceiros”, adiantando o nº 2 seguinte que “os elementos que compõem os serviços de programas que possam influenciar negativamente o desenvolvimento físico, psíquico ou moral de crianças e ou adolescentes não devem ser transmitidos sempre que, em virtude do horário de transmissão e de recepção, sejam susceptíveis de serem vistos por eles”.
É desta Convenção que decorre ainda a Declaração (2002) 1, de 12-13/09/02, sobre dignidade humana e direitos fundamentais de outrem, adoptada pelo Comité Permanente do Conselho da Europa neste domínio, apelando a uma vigilância acrescida da parte dos radiodifusores e das autoridades de regulação - aqui bem comprovada - dos programas de televisão que possam atentar contra a dignidade humana e os direitos fundamentais, salientando que “a prática recente tem mostrado que em certos países europeus, desenvolvendo uma programação competitiva a fim de proteger parte do seu mercado e aumentar o seu potencial económico e os lucros das suas estações…propõem programas e ideias que podem pôr em causa a integridade e a dignidade humanas, expondo os participantes destes programas a uma perda total da sua vida privada, assim como também a sofrimentos físicos e psicológicos gratuitos”. Apela, por isso mesmo, a que se “evitem arranjos contratuais” que levem as pessoas a renunciar aos seus direitos, consabidamente, tantas vezes em troca de alguma almejada, ainda que fugaz, popularidade.
São, aliás, precisamente estas e também, as “águas” em que parece “navegar” Ramonet, quando, no seu editorial - já de 2002 - sob o título “Os novos imperadores da mídia”, escreve: “A crescente concentração dos meios de comunicação ameaça o pluralismo da imprensa, já que os seus novos donos privilegiam a rentabilidade, em detrimento do direito de ser bem informado - acompanhante fundamental da liberdade de expressão”, e que agora, consciente e avisadamente também, leva o “nosso” J. Alberto Carvalho a relembrar que:
O mundo dos «media» está em acelerada fragmentação. E isso só vai acentuar a necessidade dos jornalistas; ainda que o seu papel e as suas tarefas precisem de ser repensadas quase por inteiro. Afinal, alguém tem de guiar os «utilizadores» pela selva de informações perigosas que nos rodeia(14).

b) Algo curiosamente - ou talvez não - o direito à privacidade é coevo do da liberdade de imprensa e - passe mesmo a expressão - dele consequente.
Com efeito, corria agora o ano de 1890 quando, na sequência da publicação, no jornal de Boston, de um artigo no qual se reproduzia a lista de convidados do casamento da filha do advogado Samuel Warren, bem como das iguarias ali servidas, este e o seu colega Louis Brandeis escreveram, na “Harvard Law Review”, um artigo intitulado “The Right To Privacy/The implicit made explicit”, defendendo que “a common law teria evoluído da protecção da personalidade física, para a tutela dos «pensamentos, emoções e sensações do indivíduo(15).
Pese toda uma multiplicidade de acepções do conceito - hoje em dia, teimosa e distraidamente, cada vez mais relativo até - entendem os nossos constitucionalistas antes citados que a privacidade “analisa-se principalmente em dois direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem(16).
É neste mesmo sentido que o nosso Tribunal Constitucional o vem entendendo também: “o direito de cada um ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias”, ou, e se se quiser ainda, o “direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular(17).
É, porém, a partir de meados do século XX que o mesmo legalmente se consagra e universalmente se reconhece, em especial com o desenvolvimento da comunicação e da informática, sendo que Portugal, foi mesmo, neste domínio, o primeiro país - no mundo - a consagrá-lo no artº 35º da sua CRP, mostrando-se hoje regulado pela já citada Lei 67/98, relativa à protecção de dados pessoais. Nestes, e de uma forma expressa (18), incluem-se, para além de “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte”, também e ainda o “som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável”, considerando-se como tal “a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a…um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica…cultural ou social- artº 3º al. a).
Os dados relativos à “vida privada” e, concretamente, à “vida sexual- aqui em causa - integram-se no que o legislador - constitucional e ordinário - denomina de “dados sensíveis- artºs 35º nº 3 da CRP e 7º nºs 1 a 4 da Lei 67/98 - o que vale dizer, e no que aqui releva, a informação que justifica e impõe um maior resguardo e, consequentemente, merecedora de tutela acrescida, sendo, por isso e, como princípio, proibido o seu tratamento, e só permitido - leia-se aqui, divulgado - “mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação” ou “por motivos de interesse público importante”.
E tudo isto porque, no dizer ainda de J. Canotilho e V. Moreira, “quanto mais os dados relacionam a dignidade, a personalidade e a autodeterminação das pessoas, tanto mais se impõem restrições quanto à sua utilização e recolha (19).
Ainda deste específico domínio cuida - obviamente, também - em particular, a Convenção sobre os Direitos da Criança (20), dispondo no seu artº 16º nº 1 que “nenhuma criança pode ser sujeita a intromissões arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio…nem a ofensas ilegais à sua honra e reputação- nº 1 - tendo “direito à protecção da lei contra tais intromissões ou ofensas- nº 2 – adiantando ainda o artº 8º do seu Anexo V - o “Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil” - que:
1. Os Estados Partes deverão adoptar medidas adequadas para proteger, em todas as fases do processo penal, os direitos e interesses das crianças vítimas das práticas proibidas pelo presente Protocolo, em particular:
a) Reconhecendo a vulnerabilidade das crianças vítimas
e) Protegendo, adequadamente, a privacidade e identidade das crianças vítimas e adoptando medidas em conformidade com o direito interno a fim de evitar a difusão de informação que possa levar à sua identificação;…
3. Os Estados Partes deverão garantir que, no tratamento dado pelo sistema de justiça penal às crianças vítimas das infracções previstas no presente Protocolo, o interesse superior da criança seja a consideração primacial
5. Os Estados Partes deverão, sempre que necessário, adoptar medidas a fim de proteger a segurança e integridade das pessoas e/ou organizações envolvidas na prevenção e/ou protecção e reabilitação das vítimas de tais infracções.
No mesmo sentido dispõe ainda a Lei 147/99, de 1/09 (21), relativa à “protecção de crianças e jovens em perigo”, considerando-se como tais “quando, designadamente, se encontra(m) numa das seguintes situações: b) …é vítima de abusos sexuais”, de novo adiantando aqui o artº 4º seguinte que “a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece” a “princípios” como sejam os do “interesse superior da criança…respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada… intervenção mínima… proporcionalidade e actualidade… responsabilidade parental…”.
Agora, e já especificamente em matéria de “comunicação social”, que aqui releva, dispõe o artigo 90º seguinte que:
1- Os órgãos de comunicação social, sempre que divulguem situações de crianças ou jovens em perigo, não podem identificar, nem transmitir elementos, sons ou imagens que permitam a sua identificação, sob pena de os seus agentes incorrerem na prática de crime de desobediência”, podendo contudo, nos termos do nº 2 seguinte, “relatar o conteúdo dos actos públicos do processo judicial de promoção e protecção”.
De modo algum podemos omitir também o Código Deontológico do Jornalista (22) ainda nesta matéria, em cujo nº 9 se dispõe:
O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos excepto quando estiver em causa o interesse público O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas”.
Da, já bem demonstrativa, unanimidade do tratamento de toda esta matéria e domínio, é ainda a posição do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas Portugueses, através da sua - de todo louvável - Recomendação 1/R/2002, cuja respectiva justificação aqui também se relembra:
1. Estão a repetir-se casos em que foi, de forma irresponsável, posta em causa a privacidade e a intimidade de pessoas socialmente desfavorecidas, vítimas de crimes infamantes.
Em alguns deles, os órgãos de informação resguardam-se na desculpa de que a divulgação de tais "histórias" terá sido "autorizada" pelos intervenientes, a troco de uma fugaz notoriedade ou até contrapartidas materiais.
2. Por vezes, o noticiário escabroso chega a envolver crianças e os órgãos de informação sentem-se livres de publicar apenas porque os pais ou tutores, apesar de ignorantes ou negligentes quanto aos efectivos direitos e deveres, assim o consentem…a troco não se sabe de que compensação…
Daqui a Recomendação:
1. Os jornalistas devem manter como ponto de honra a obrigação de defender a privacidade de todos os cidadãos, em especial os envolvidos em crimes infamantes e em muito particular os casos que vitimizam crianças, deficientes mentais ou marginalizados.
2. Ao actuar desta forma, os jornalistas abstêm-se de oferecer qualquer "compensação" às vítimas para que “se deixem expor” ainda que para tal sejam, por hipótese, orientados e até obrigados pela(s) chefia(s).
Mas, mais ainda:
Adverte-se logo depois que: “3. Verificando que as vítimas ou familiares destas deram - ou estarão disponíveis para dar - “autorização” para que a privacidade delas seja exposta ao olhar mórbido de quem procura tais "histórias", os jornalistas devem fazer prevalecer, antes de tudo o mais, o inalienável dever de respeito pelos destinatários e o indiscutível respeito por si próprios, de forma a tudo fazer para que a classe e os jornalistas fiquem cada vez mais prestigiados.
E conclui-se:
4. Cabe aos Conselhos de Redacção, a bem do mais elementar bom senso, vigiar as formas de contacto entre os jornalistas e cidadãos, impor internamente a recusa frontal a qualquer tipo de "negociação" entre o jornalista e as vítimas de agressões hediondas e, acima de tudo, denunciar - publicamente e através do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas - as situações detectadas e aqui genericamente referidas(23) - todos os realçados e sublinhados são nossos.
Pese todo este - vastíssimo, como se colhe - panorama jurídico-legislativo e deontológico também neste domínio, algo estranhamente - ou talvez não - não têm sido estes - nem muitos outros - os comportamentos tidos por alguma comunicação social entre nós, seja na área jornalística, seja sobretudo e também especificamente pela televisão, no - curioso - dizer de John Condry, a “ladra do tempo, criada infiel(24) - quiçá por a todos servir…tudo…
Daí, o alerta de Popper, relativamente a este “poder incontrolado” em que se traduz, para “a necessidade de sermos informados dos efeitos da caixa de imagens”, já que, conclui, “todos beneficiariam de uma formação, que deveria ser obrigatória para quem tivesse uma responsabilidade directa perante” ela, relembrando, por outro ainda, que “quem quer que trabalhe na televisão deverá conhecer os erros a evitar, de modo que a sua actividade não tenha consequências nefastas no plano educativo(25).
De todo céptico, no que a este meio de comunicação respeita, adianta ainda que “a televisão não está predestinada a desaparecer e é pouco provável que venha a constituir um ambiente favorável à socialização das crianças”, justificando-o depois Condry proclamando “que a televisão é incapaz de ensinar às crianças o que é necessário à sua educação”.
Jean Baudouin conclui depois também: “Uma sociedade democrática também tem o dever de educar os seus jovens nos ideais de liberdade. Renunciará a esta tarefa decisiva se aceitar que as funções estruturantes da socialização, tradicionalmente assegurada pela família, pela escola ou pela vizinhança, sejam a partir de agora abandonadas às contingências dos índices de audiência(26).
Pese a alguma exaustão - quiçá justificada - não resistimos agora também - mais uma vez - a transcrever, a “Opinião” expressa por Fernanda Câncio, no sugestivo título “O Judas de cada dia vos dou hoje”:
A reportagem, salvo raras excepções, vive das pessoas, de lhes vasculhar a vida e a alma. Uma reportagem é tanto melhor quanto mais e melhor vasculhar. Claro que a ideia de que se pode entrar e sair da vida das pessoas, da casa das pessoas, da confiança das pessoas, das histórias das pessoas, do passado e do futuro e da alegria e da dor das pessoas, do olhar e da voz das pessoas, apenas e só para obter delas o máximo de informação, de frases, de pormenores e de coração, é uma ideia monstruosa.
Claro, dir-se-á - digo eu - que há entre o repórter e os objectos humanos da sua reportagem um contrato tácito. O contrato que diz: “Eu escuto, tu falas, e enquanto o que tu disseres me interessar, enquanto tu me interessares, eu oiço-te. Atendo-te o telefone a todas as horas, vou a tua casa quando me chamares, oiço até aquilo que não me interessa. Até me interessar ouvir-te.” O repórter acha que o reportado sabe isso, tem de saber que ele, o repórter, não é um amigo caído do céu, um gémeo salvífico trazido pelo destino. O repórter acha que não está a enganar ninguém porque não mente, porque não diz: “Eu vou resolver o teu problema”, “eu sou a solução”. Não. O repórter não promete nada a não ser exposição, revelação. Às vezes um pouco de fama, a foto no jornal, a cara na TV, e os sonhos todos que vêm disso e por isso.
O repórter acha isso, tem de achar isso. Mas sabe também que há nele…um mecanismo de empatia instantânea, um mecanismo que ele liga e desliga. Uma empatia que diz: “Confia em mim. Podes confiar em mim.” E claro, claro que não é verdade.(27).
Tinha pois razão Torga quando, já então, escrevia:
A imprensa, a rádio e a televisão dão-me às portas da morte. O telefone não pára de tocar. Os jornalistas, cruéis, teimam, insistem, não desanimam. Querem, sadicamente, saber pormenores. Se morro, se não morro. E vão adiantando diagnósticos. Enfarte, hemorragia cerebral, paralisia. Neste mundo desapiedado e devassado não há mais lugar para o sofrimento íntimo, recolhido, que os bichos ainda podem sentir na toca. Agora, já ninguém é dono de si e do seu pudor. Somos públicos e baldios. À hora menos pensada, por artes do primeiro bisbilhoteiro profissional que nos saia ao caminho, perdemos toda a densidade humana e ficamos espectrais e sem duração na leviana fugacidade de uma notícia (28).

8- É o tempo então de apreciarmos cada uma das questões concretamente colocadas no recurso e da sua implicação com o, aqui “secundarizado” direito penal ou, se se quiser e melhor também, contra-ordenacional, a saber:

a) Da validade e eficácia do consentimento prestado pelos legais representantes da menor para a difusão da reportagem

Como se disse, a recorrente assenta, desde logo, o “peso” da sua argumentação no facto de o consentimento para a gravação e emissão televisiva em questão ter sido prestado, no âmbito do exercício do poder paternal, pelos pais da menor, simultaneamente encontrando apoio justificativo também no “interesse público” da notícia.
Vejamos pois.

1- É consabido, por compreensível, como já se disse, que as matérias relativas à família e à filiação não são de todo estranhas ao nosso ordenamento constitucional.
Com efeito, e de novo ainda no âmbito dos direitos fundamentais, o artº 36º proclama que “todos têm o direito de constituir família…- nº 1 - dispondo depois que “os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos- nº 3. Aos pais é atribuído “o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos- nº 5 - o que vale dizer, “um verdadeiro direito- -dever subjectivo e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrando o chamado poder paternal (que é uma constelação de direitos e deveres dos pais e dos filhos, e não um simples direito subjectivo dos pais perante o Estado e os filhos) (29). Também, e agora já em sede de “direitos e deveres sociais”, o artº 67º seguinte reconhece que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado- nº 1 - adiantando o artº 69º seguinte ainda que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família- nº 1.
Consideram os constitucionalistas antes citados que “a noção constitucional de desenvolvimento integral - que deve ser aproximada da noção de «desenvolvimento da personalidade» - assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana…elemento «estático», mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades (30).
Ora, e permitindo-se-nos, não cremos que uma e outra tenham aqui sido minimamente respeitadas, pelo que, contrariamente ao que se conclui, de modo algum o consentimento prestado pelos pais da menor, no - pretenso - exercício do poder paternal invocado, pode integrar justificação bastante para a conduta da recorrente.

2- Com efeito, definido - ainda que de forma algo indeterminada - o conteúdo do poder paternal, nos termos do disposto no artº 1878º do CC, pelo “interesse dos filhos- o “interesse superior do menor”, no dizer do artº 148º nº 1 da OTM - poderá dizer-se que este, necessitando sempre de um “preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, reclamando uma análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, na sua individualidade própria e envolvência (31), deverá ter sempre em conta “o direito do menor ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (32) e, consequentemente também, a “estabilidade das suas relações afectivas profundas… (33).
Ora,
O consentir na exposição pública - levada a cabo pela recorrente por duas vezes e em dois dias seguidos “posta no ar”, em horários, ditos “nobres - de uma filha sexualmente abusada, com 10 (dez) anos de idade e, consequentemente - e no mínimo - já com uma noção algo perfeita da gravidade do acto, bem como da sua repercussão social, seja na escola onde estuda e necessariamente se relaciona, seja entre os amigos e vizinhos da aldeia, e mesmo fora dela , é, não só clara e inequivocamente atentatório da dignidade da menor - a que nem, e permita-se-nos, um qualquer “brinquedo” pode resistir ou “desculpar” - como, consabidas são também as consequências, de ordem vária, decorrentes de todo este tipo de actos, como delas nos dão conta instituições específicas várias, como sejam a UNICEF, o “Social Relationships of Physically Abused Schoolchildren” do National Data Archive on Child Abused and Neglect (34), a ANDI-Agência de Notícias dos Direitos da Infância (35) e, sublinha-se, a própria FIJ-Federação Internacional de Jornalistas
Donde, e desde logo, tal consentimento ser, contrariamente ao que se diz, falho de qualquer salvaguarda do interesse da menor, pelo que de todo irrelevante e, por isso também, jamais justificativo da conduta da recorrente, como se disse.
A esta mesma solução chegaríamos também e ainda tendo em conta a natureza legal deste instituto. Consabidamente discutida - e discutível - se como um verdadeiro direito subjectivo ou - a maioritariamente defendida, por “eticamente mais justificada” - como um poder funcional - como o são, aliás, a maioria dos direitos familiares pessoais -o seu titular é obrigado a exercê-lo de certo modo, do modo que for exigido pela função…- na fórmula de Ennecerus - a de favorecerem e garantirem o cumprimento dos particulares deveres morais, que incumbem ao seu titular para com a pessoa contra quem se dirigem”. Daí que, “intervindo o Estado supletivamente em consonância com determinadas finalidades - como intervém nos múltiplos e variados aspectos já referidos - o poder paternal deve tender para idênticos objectivos” e nunca, como sucedeu, para quaisquer outros (36).
Acrescerá dizer também que o disposto nos artºs 35º nº 3 da CRP e 3º al. h) da Lei 67/98 antes referida, impõem ainda que o consentimento seja informado, o que vale dizer, antecedido de uma explicação sobre as finalidades e eventuais consequências das emissões televisivas referidas, sendo que são de todo omissas as conclusões neste domínio.
Donde, e recordando, de novo, Fernanda Câncio, diríamos também que o alegado consentimento mais não é que um “contrato que diz: “Eu escuto, tu falas, e enquanto o que tu disseres me interessar, enquanto tu me interessares, eu oiço-te. Atendo-te…vou a tua casa quando me chamares, oiço até aquilo que não me interessa. Até me interessar ouvir-te”…
Acresce dizer ainda, contrariamente ao que parece entender-se também, que não é tal consentimento contra-ordenacionalmente justificante, ainda que - repete-se - prestado pelos pais da menor - conforme o supra refer. em 2- 4. - os detentores do invocado poder paternal. Por um lado, e de acordo com o disposto no artº 35º do CP (37), “o consentimento” apenas exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses livremente disponíveis”, o que, como se deixou já referido, desde logo o não é, por absolutos, a dignidade e o valor da pessoa. Diríamos depois, e agora também com Costa Andrade, que “não pode concluir-se que, pelo menos até ao limite da disponibilidade, o consentimento do ofendido…afasta, sem mais e invariavelmente, a lesão do bem jurídico e, nessa medida, a danosidade social correspondente à factualidade típica (38).
Ainda que algo marginal, mas em tudo consonante, sempre se dirá que é também de restrição à publicidade que o artº 87º nº 2 do CPP fala em relação à audiência de julgamento, quando “a publicidade” for causa de “grave dano à dignidade das pessoas”, e mesmo de não publicidade-regra quando em causa está, como no caso dos autos, um “crime sexual que tenha por ofendido um menor de 16 anos- nº 3 seguinte - preceito, aliás, em tudo consonante com o resguardo constitucional expresso, como decorre ainda do disposto nos artºs 206º da CRP e 9º da Lei 3/99, de 13/01.

3- Ainda nesta parte, socorre-se também a recorrente, da pretensão justificativa do seu comportamento contra-ordenacional no “evidente interesse público da notícia pois foi denunciada a prática de um tipo de crime gravíssimo”.
Pese a frequência da sua invocação nos mais variados domínios - qual Midas… - é consabido que a relativa fluidez deste conceito tem possibilitado emergências várias, quais sejam, de entre outras, de políticas mais ou menos autoritárias, quando perante alguma “conturbação” destes nossos também “conturbados dias”. Daí, quase como que numa verdadeira “praxe” e ainda que no limite da sua justificação, a supremacia do referido interesse público ser, por vezes, entendida - e estendida até - como cláusula geral de restrição de direitos fundamentais.
Assim o não cremos neste caso.
Isto porque, para além de típico sobretudo no âmbito da actividade administrativa - o que não é, manifestamente, o caso - diríamos que o interesse aqui em causa, embora de todo legítimo em sede de notícia, de modo algum poderá ser considerado como público, pecando, quiçá - e agora já só por graça - de uma “ligeira” omissão: é a de que o interesse de que se fala, certamente de todo legítimo, repete-se, não o é já público, mas antes e sim do público
Mas, este, entendemos nós, irreleva de todo aqui.
Sempre se dirá ainda que, quanto a nós, interesse públicos e privados, por regra, não se contradizem, nem se excluem, negando-se mutuamente, mas antes se harmonizam, devendo a colisão entre uns e outros encontrar a solução constante do também citado artº 18º da CRP - também dito violado e a seguir apreciado - consabidamente “uma das normas…que mais profundamente implica com os limites da relevância da Constituição no contexto da ordem jurídica global (39), como veremos adiante.
Improcede pois, nesta parte o recurso.

b) Da errada subsunção da factualidade dada como provada na decisão recorrida no âmbito da norma prevista no artº 21º nº 1 da Lei nº 31-A/98, de 14/07.

Questiona agora a recorrente a errada subsunção da factualidade julgada provada no citado artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, a Lei da Televisão, entendendo que tal preceito “apenas será aplicável quando estejam em causa “casos extremos” de violação de direitos fundamentais, o que não é manifestamente o objecto dos presentes autos”.
Recordemos o preceito em questão:

Artigo 21º
Limites à liberdade de programação
1- Não é permitida qualquer emissão que viole os direitos, liberdades e garantias fundamentais, atente contra a dignidade da pessoa humana ou incite à prática de crimes.
2- As emissões susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis, designadamente pela exibição de imagens particularmente violentas ou chocantes, devem ser precedidas de advertência expressa, acompanhadas da difusão permanente de um identificativo apropriado e apenas ter lugar em horário subsequente às 22 horas.
3- As imagens a que se refere o número anterior podem, no entanto, ser transmitidas em quaisquer serviços noticiosos quando, revestindo importância jornalística, sejam apresentadas com respeito pelas normas éticas da profissão e antecedidas de uma advertência sobre a sua natureza.

O preceito em causa insere-se no Cap. III, sob a epígrafe “Programação e Informação”, e na Secção I, ora respeitante à “Liberdade de programação e informação”, desde logo consagrando o artº 20º anterior, o princípio da “autonomia dos operadores” nos seguintes termos:
1- A liberdade de expressão do pensamento através da televisão integra o direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à democracia, à paz e ao progresso económico e social do País.
2- Salvo os casos previstos na presente lei, o exercício da actividade de televisão assenta na liberdade de programação, não podendo a Administração Pública ou qualquer órgão de soberania, com excepção dos tribunais, impedir, condicionar ou impor a difusão de quaisquer programas.
Ora, o citado artº 21º, não proibindo, em bom rigor, a emissão da entrevista em questão, mais não consubstancia - tal como antes se disse já em sede do artº 37º nº 2 da CRP - que a concretização de um limite, imposto, em geral e expressamente previsto no seu nº 2.
Como da sua simples leitura desde logo decorre, objecto de tais “limites” está “qualquer emissão”, desde que violadora de “direitos, liberdades e garantias fundamentais” ou “atente contra a dignidade da pessoa humana- nº 1 - alargando o nº 2 seguinte tal proibição às “emissões susceptíveis de influir de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou adolescentes ou de afectar outros públicos mais vulneráveis”.
Como dissemos, na emissão da(s) entrevista(s) referida(s), em causa estão, não só os universais direitos, liberdades e garantias referidos, relativamente a uma menor de 10 anos de idade, vítima de um crime de natureza sexual, mas também, nas circunstâncias concretamente descritas e mais que a sua honra, a intimidade…, o unificador conceito do “sofrimento” da sua própria dignidade, assim violada.
Assim sendo,
A emissão - repetida - da entrevista da menor nos termos julgados provados - supra refer. em 2- - “consegue” preencher, ex abundantis, todos e cada um dos elementos constitutivos referidos, seja no âmbito dos direitos, liberdades e garantias supra referidos, seja também e ainda no que à sua dignidade respeita.
Daí que, e convenhamos, temos de ter por de todo preenchido o circunstancialismo típico antes referido: foram violados direitos, liberdades e garantias fundamentais…atentou-se contra a dignidade de uma pessoa, ainda criança… - como resultou provado supra refer. em 2- 8. e 10. - identificada ou - e no mínimo - de todo, e facilmente, identificável, presente que é a sua definição objecto do artº 3º al. a) da citada Lei 67/98 (40).
Não constituirá ousadia tamanha dizer ainda que, as emissões em ora em causa são também e inequivocamente, susceptíveis de influir, de um modo ainda negativo, quer na formação da sua personalidade, sendo, quer as imagens, quer os “textos”, também susceptíveis de afectar públicos mais vulneráveis.
Se a todo o assim referido acrescentarmos - e louvadamente realçarmos também - que, como se disse, é desrespeitador das normas éticas dos jornalistas, forçoso será concluir, contrariamente ao que se entende, da sua plena e correcta integração no preceito em causa.
De todo o comprovando - concreta, expressa e insistentemente - aí está, nesta matéria e nos seus precisos termos, o novo e actualmente vigente artº 24º da Lei 32/03, de 22/08, que se transcreve também:

Artigo 24.º
Limites à liberdade de programação
1 - Todos os elementos dos serviços de programas devem respeitar, no que se refere à sua apresentação e ao seu conteúdo, a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a livre formação da personalidade das crianças e adolescentes, não devendo, em caso algum, conter pornografia em serviço de acesso não condicionado, violência gratuita ou incitar ao ódio, ao racismo e à xenofobia.
2 - Quaisquer outros programas susceptíveis de influírem de modo negativo na formação da personalidade das crianças ou de adolescentes ou de afectarem outros públicos vulneráveis só podem ser transmitidos entre as 23 e as 6 horas e acompanhados da difusão permanente de um identificativo visual apropriado.
3 - A difusão televisiva de obras que tenham sido objecto de classificação etária, para efeitos da sua distribuição cinematográfica ou videográfica, deve ser precedida da menção que lhes tiver sido atribuída pela entidade competente, ficando sujeita às demais exigências a que se refere o número anterior sempre que a classificação em causa considere desaconselhável o acesso a tais obras por menores de 16 anos.
4 - Exceptuam-se do disposto nos nºs 2 e 3 as transmissões em serviços de programas de acesso condicionado.
5 - O disposto nos números anteriores abrange quaisquer elementos de programação, incluindo a publicidade e as mensagens, extractos ou quaisquer imagens de autopromoção.
6 - As imagens com características a que se refere o nº 2 podem ser transmitidas em serviços noticiosos quando, revestindo importância jornalística, sejam apresentadas com respeito pelas normas éticas da profissão e antecedidas de uma advertência sobre a sua natureza.
7 - O disposto no nº 1 é aplicável à retransmissão de serviços de programas, designadamente por meio de rede de distribuição por cabo.

Tanto bastaria, cremos, e de novo, para a improcedência do recurso também nesta parte.

c) A inconstitucionalidade da interpretação adoptada quanto à violação do artº 21º nº 1 da Lei 31-A/98, de 14/07

Entende, finalmente, a recorrente ser inconstitucional a interpretação feita do preceito referido, por violador “dos artºs 37º nºs 1 e 2, 38º nºs 1 e 2, 18º nºs 2 e 3 da CRP”.
Permitindo-se-nos, e pese a inequívoca - para além, obviamente, de sempre complexa - dignidade da questão ora suscitada, desde logo diríamos que, depois de todo o deixado exposto, temos por algo e de todo facilitada a solução: Não cremos ainda que assim seja também.
Desde logo e, como se disse, porque, é o próprio diploma fundamental que, no nº 3 do citado artº 37º, prevê a possibilidade de “infracções cometidas no exercício destes direitos”. Logo, concluem os constitucionalistas que vimos a citar, “é porque há limites ao direito” em questão, impondo-se “ser pelo menos harmonizado e sujeito a operações metódicas de balanceamento ou de ponderação com outros bens constitucionais e direitos com eles colidentes como a dignidade da pessoa humana, os direitos das pessoas à integridade moral…à imagem, à privacidade, etc (41).
É, verdade, no dizer também agora de Faria Costa, que “em simples e linear lógica jurídica, é de difícil entendimento compaginar o exercício de um direito com a prática de uma infracção…aquele que exerce um direito não pode agir contra o direito”. Porém, e presente que tem depois, quer o disposto no artº 334º do CC, quer ainda e também o artº 31º nº 2 al. b) do CP, logo adianta: “Há aqui um segmento de opacidade normativa que deve ser desocultado…de um lado, deixa-se claro que o exercício de um direito não é irrestrito…por outro, aceita-se que a ultrapassagem daqueles limites desencadeie uma ilegitimidade (42).
É esta última, entendemos nós, a situação presente, como desde logo transparece, neste domínio, da ampla e multifacetada legislação, quer nacional, quer internacional, seja de cariz estritamente jurídico, seja também no âmbito deontológico, todas e cada uma delas, como se viu, unânimes nesse mesmo sentido.
Depois, como se colhe, dir-se-á também que não estamos perante uma eliminação ou mesmo uma restrição, ampla ou excessiva, do direito de liberdade de imprensa, aqui na - “televisiva” - versão do direito a informar, como poderá pensar-se. Trata-se in casu, apenas e tão só de uma - certamente simples e de bem fácil cumprimento - regulação no que ao limite à - provada - identificação respeita ou, e talvez melhor, comprovada e fácil identificabilidade da menor - vd supra em 2- 1- a 3- e 5- a 10-.
Donde, e presente que se tem também o disposto no artº 18º da CRP, concretamente e em especial os seus nºs 2 e 3, para além das limitações decorrentes da própria constituição ao direito de informar - como supra se disse em 7- a) - forçoso será concluir que o citado artº 21º, como limite constitucional expressamente decorrente da lei, assegura ainda, de uma forma clara e inequívoca - muito mais que -um mínimo de conteúdo útil e constitucionalmente relevante do direito legalmente delimitado”, bastando in casu para tal, acautelar, apenas e tão só, o requisito daquela não identificabilidade da menor, o que se não fez.
Donde, e como se reconhecerá também, forçoso será entendermos ainda tal limite/regulação por de todo necessário, atentos os valores em causa. É-o, por outro lado e finalmente ainda, na “justa medida”, mesmo até de concordância prática entre os direitos fundamentais em causa, quiçá por isso e também deontologicamente exigível até, pelo que de modo algum o podemos ter por excessivo ou de todo desproporcionado quanto ao seu cumprimento.
Não se vislumbra assim inconstitucionalidade alguma em tal preceito, improcedendo pois e ainda o recurso nesta parte.

III- Decisão

9- Face a todo o deixado exposto, acorda-se neste Tribunal em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) UC’s.
*
Para os efeitos tidos por convenientes, comunique o teor do presente acórdão ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
*
Lxª, 19/04/07
(Mário Manuel Varges Gomes - Relator)
(Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida)
(João Luís Moraes Rocha – tem voto de vencido)
(João Manuel V.S. Cotrim Mendes - Presidente)



_____________________________________________
1.-Vd Artºs 37º e 38º da CRP e a Lei 2/99, de 13/01.

2.-Vd Artºs 26º nº 1 da CRP, 70º, 79º e 80º do CC e, agora já na vertente da utilização da informática, a Lei 67/98, de 26/10.

3.-Artº 36º nºs 1 e 5 da CRP.

4.-J.Miranda e Rui Medeiros, Const. da Rep. Port. Anot, Tomo I, pág. 53, Coimbra Editora.

5.-Vd J.J.Canotilho e V.Moreira, CRP Anot., vol I, 4ª Ed. Rev., pág. 200, Coimbra Editora e o Preâmbulo e artº 1º da DUDH.

6.-Artº 1º da CRP. O Prof. Zelman Cowen, na já longínqua data de 1969, escreveu, no seu “The Private Man”, que “um homem sem privacidade é alguém sem dignidade”.

7.-Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. Port., Coimbra, 1960. pág. 76.

8.-Foi em 1791 que, de entre as dez emendas à Constituição americana, a primeira delas consagrou, no “Bill of Rights”, a liberdade de imprensa, nos seguintes termos: “Congress shall make no law…abriding freedom of speech, or the press…”.

9.-Artº 19º da DUDH; 10º da CEDH; 19º do PIDCP; 11º da CDF da UE…

10.-Los derechos en sério, (trad. Guastavino. M,) Ariel, Barcelona, 1984, pág. 295, apud Mª Isabel Valldecabres Ortiz, Imparcialidad del Juez y medios de comunicación, pág. 306, Universidad de Valência.

11.-J.C.Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1076, 2ª Ed., pág.275, Almedina.

12.-É a seguinte, e mais precisa até, a redacção ora constante do artº 14º da Proposta de alteração do diploma referido:
Deveres
1- Constitui dever fundamental dos jornalistas exercer a respectiva actividade com respeito pela ética profissional, competindo-lhes, designadamente:…
2- São ainda deveres dos jornalistas:… d) Abster-se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física;…
g) Não identificar, directa ou indirectamente, as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual… até à audiência de julgamento, e para além dela, se o ofendido for menor de 16 anos; h)Preservar, salvo razões de incontestável interesse público, a reserva da intimidade, bem como respeitar a privacidade de acordo com a natureza do caso e a condição das pessoas…” – realçados nossos.

13.-Aprovada por Resol. da Ass. da Rep. nº 50/01, de 11/05, in DR I-A de 13/07.

14.-Única, Expresso nº 1791, de 24/02/07, pág.13.

15.-Rita Amaral Cabral, O Direito À intimidade Da Vida Privada, pág. 16, in Sep. dos Estudos em Memória Do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lxª, 1988.

16.-Ob. cit., pág. 467.

17.-Respectivamente, nos Ac. de 20/06/95 e de 25/09/02, in DR II, de 2/11/95 e de 25/10/02.

18.-Como o faz, expressamente também, a Directiva 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24/10/95, que aquela transpõe

19.-Ob. cit., pág. 551.

20.-Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução 44/25, de 20/11/89, assinada por Portugal a 26/01/90, e aprovada para ratificação pela Resolução da Ass. da Rep. nº 20/90, de 12/09, e ratificada pelo Dec. do Presidente da República nº 49/90, da mesma data.

21.-Alterada - mas com o mesmo sentido - pela Lei Lei nº 31/03, de 22/08.

22.-Aprovado em 4/05/93.

23.-In www. jornalistas.online.pt/noticia.asp?id=812&idselect=6&idCanal=6&p=4

24.-Karl Popper e John Condry, Televisão: Um Perigo Para A Democracia, pág. 33, gradiva.

25.-Ob. cit., págs 11 e 29, respectivamente.

26.-Ob. cit., respectivamente págs 16 e 73.

27.-In Diário de Notícias de 16/03/07.

28.-In Diário, XVI.

29.-J.J.Canotilho e V.Moreira, ob.cit., pág. 565.

30.-Ob.cit. págs 869/870.

31.-Cfr Ac. do Trib.Rel. de Coimbra de 3/05/06, in www.gde.mj.pt

32.-Almiro Rodrigues, Interesse do menor. Contributo para uma decisão, in Rev. Infância e Juventude, nº 1, 1985, pág. 18/9.

33.-Maria Clara Sottomayor, A Família de Facto e o Interesse da Criança, in Boletim da AO, nº 45, págs. 4 e sgs.

34.-In http://www.ndacan.cornell.edu/Ndacan/Datasets/UserGuidePDFs/112user.pdf.

35.-In http://www.andi.org.br, sendo conhecida a sua publicação “O Grito dos Inocentes”.

36.-Para mais desenvolvimentos, vd Jorge Miranda, Sobre o Poder Paternal, in Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais, pág. 15 e sgs, Principia.

37.-Aqui aplicável ex vi do artº 32º do RGCO.

38.-Consentimento e Acordo em Direito Penal, pág. 516, Coimbra Editora.

39.-G.Canotilho e V.Moreira, ob. cit., pág. 381.

40.-Que diz: “é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente, por referência a…um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social”.

41.-Ob. cit., pág. 574.

42.-Direito Penal da Comunicação, Alguns Escritos, págs 48/9, Coimbra Editora.