Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
287/22.8YHLSB.L1-PICRS
Relator: PAULA POTT
Descritores: MARCA
FUNÇÃO
VERDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Função jurídica da marca – Marca enganosa – Princípio da verdade da marca – Marca individual – Marca colectiva - Nulidade – Artigos 208.º, 218.º, 221.º, 231.º n.º 3- d), 238.º e 259.º n.º 1 do Código da Propriedade Industrial
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa:

Resumo do litígio
1. A recorrente, em 21.7.2021, apresentou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (doravante também INPI), ao abrigo do disposto no artigo 34.º n.º 2 do Código da Propriedade Industrial (CPI), dois pedidos de nulidade, respectivamente, dos registos da marca nacional n.º 639971 e da marca colectiva 614215, dos quais é titular a recorrida, o que foi indeferido por despachos do INPI de 27.4.2022 (cf. referência citius 102489).

2. Dos dois despachos do INPI mencionados no parágrafo anterior, a recorrente interpôs recurso de impugnação judicial junto do Tribunal da Propriedade Intelectual (doravante também Tribunal a quo, Tribunal recorrido ou Tribunal de primeira instância), pedindo a sua revogação e substituição por decisão que declare a nulidade dos registos da marca nacional n.º 639971 e da marca colectiva 614215 (cf. referência citius 102049).

3. Citada, a recorrida respondeu, pugnando pela improcedência do recurso de impugnação judicial (cf. referência citius 104358).

4. O Tribunal da Propriedade Intelectual, por sentença de 4.11.2022, julgou improcedente o recurso, mantendo os despachos do INPI que indeferiram o pedido de declaração de nulidade da marca nacional n.º 639971 e da marca colectiva 614215 (cf. referência citius 505137).

Recurso e alegações

5. Da sentença referida no parágrafo anterior veio a recorrente interpor o presente recurso para o Tribunal da Relação, pedindo “(...) que seja anulada a sentença recorrida e que, em sua substituição, seja declarada a nulidade dos registos da marca coletiva de associação n.º 614215 e da marca nacional n.º 639971 (...)”.

6. A recorrente invocou, em síntese, que:

§ As marcas em crise são enganosas e por isso, ao abrigo do disposto nos artigos 231.º n.º 1 – d) e 259.º n.º 1, do CPI, são nulas;
§ Os elementos dominantes em cada uma das marcas são, respectivamente “Charolês” na marca n.º 614215 e “Charolesa” na marca n.º 639971, que dessigam uma raça bovina;
§ As marcas em questão foram concedidas para assinalar os produtos das classes 4 e 29 da classificação de Nice, ou seja, carne em geral, de qualquer raça, o que induz em erro o consumidor pois tais marcas podem ser usadas para assinalar carne de qualquer origem e não apenas carne bovina da raça charolesa.

7. A recorrida não contra-alegou

8. Admitido o recurso nada obsta ao seu conhecimento.

Delimitação do âmbito do recurso

9. Tem relevância para a decisão do recurso a seguinte questão, suscitada pelos argumentos da recorrente vertidos conclusões:

A. Marcas susceptíveis de induzir o público em erro.

Factos provados
Nota prévia: a numeração dos factos constante da sentença recorrida será a seguir indicada entre parêntesis para facilitar a leitura e remissões.
10. (1) Em 15/03/2020, a recorrida CP CHAROLÊS PORTUGAL - ASSOCIAÇÃO DE CRIADORES DE CHAROLÊS DE PORTUGAL solicitou o registo da marca mista [coletiva] nacional nº 639971: (cf. processo INPI)


CHAROLÊS PORTUGAL ASSOCIAÇAO DE
CRIADORES CARNE CHAROLESA
CERTIFICADA

11. (2) A marca descrita em 1.º destinava-se a assinalar os seguintes produtos da classe 4 e 29 da classificação internacional de Nice:
Classe 4 - Sebo de carne de vaca para uso industrial
Classe 29 - carne; carne assada; carne congelada; carne cozida enlatada; carne cozinhada em frasco; carne de vaca; carne de vaca desfiada; carne de vaca fatiada; carne de vaca picada; carne de vaca preparada; carne e produtos à base de carne; carne de vitela; carne fatiada; carne fresca; carne enlatada; carne em conserva; carne frita; carne preparada; carne moída [carne picada]; carne-seca; carnes; carnes cozinhadas; carnes curadas; carnes em conserva; carnes embaladas; carnes enlatadas; carnes fumadas; carnes para charcutaria; conservas de carne; guisado de carne picada; gordura de carne de vaca; gelatinas de carne; geleias à base de carne; hambúrgueres de carne; pastas de carne; pastas alimentares à base de carne; patês de carne; pratos cozinhados à base de carne; pratos de carne confecionados; produtos de carne congelados; produtos de carne em forma de hambúrgueres; produtos de carne processada; salsicha de carne. (cf. processo INPI).

12. (3) Por decisão do diretor de marcas do INPI proferida em 21 de agosto de 2020, foi concedido o registo da marca. (cf. processo INPI).

13. (4) Em 21-11-2018, a recorrida CP CHAROLÊS PORTUGAL - ASSOCIAÇÃO DE CRIADORES
DE CHAROLÊS DE PORTUGAL solicitou o registo da marca mista coletiva nacional nº 614215 abrangendo a classe 29 da Classificação internacional de Nice (carne): (cf. processo INPI)



CARNE CHAROLÊS CERTIFICADA
CHAROLÊS PORTUGAL CONTROLADO POR
CERTIS RÓTULO APROVADO PELO
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, FLORESTAS
E DESENVOLVIMENTO RURAL


14. (5) Em 21/07/2021, a recorrente ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE CRIADORES DE BOVINOS DA RAÇA CHAROLESA veio requerer no INPI a declaração de nulidade das marcas descritas em 1.º e 4.º. (cf. processo INPI).

15. (6) A recorrente - Associação Portuguesa de Criadores de Bovinos de Raça Charolesa (APCBRC) - foi constituída por escritura pública de 21.11.2011, por um grupo de criadores de bovinos de raça Charolesa, com a finalidade de promover a divulgação dessa raça bovina, o seu melhoramento e seleção no nosso país. (cf. documento nº 2 junto com o recurso).

16. (7) Para além das marcas referidas em 1.º e 4.º, a recorrida é ainda titular da seguinte marca mista nacional nº 614216, requerida em 21-11-2018:

CARNE CHAROLÊS PREMIUM

17. (8) A recorrida CP CHAROLÊS PORTUGAL - ASSOCIAÇÃO DE CRIADORES DE CHAROLÊS DE PORTUGAL é uma associação portuguesa de direito privado, sem fins lucrativos, constituída em 06.07.2018, tendo por objetivos ou fins estatutários a) Congregar os criadores da raça bovina Charolesa, em todo o território Nacional e estrangeiro que manifestem o interesse em fazer parte; b) Manter a pureza da raça, desenvolvendo ações que tendam a favorecer a melhoria do desempenho zootécnico nos seus aspetos científicos, técnicos e económicos, assim como, da difusão de bons reprodutores com garantias étnicas; c) Cooperar na erradicação de defeitos hereditários e cumprir com as regras técnicas e de higiene veterinária definidas pela Legislação Nacional e Comunitária; d) Receber inscrições dos animais; recolher, atestar, preservar e publicar a ascendência e descendência (pedigree) dos animais da raça; e) Registar elementos de ordem funcional e de performance, assim como os prémios obtidos em provas e concursos organizados pela Associação, em colaboração com outras entidades congéneres ou homologados pelos Serviços Oficiais competentes; f) Promover, patrocinar e apoiar eventos que tenham como objetivo a presença de bovinos da raça para concurso, exposição ou comercialização; g) Fomentar a criação de bovinos da raça Charolesa através do apoio na formação de novos núcleos de animais puros; h) Promover a importação e a exportação de reprodutores e de outros meios de reprodução da raça Charolesa; i) Apoiar e orientar o uso da raça em cruzamento com raças de carne ou leiteiras, como forma de promoção das qualidades raciais para a produção de carne de qualidade; j) Assegurar o mais elevado nível de formação técnica aos criadores sobre as várias áreas da seleção genética e bovinicultura de carne; k) Divulgar a raça, o mérito dos animais ou das explorações com distinção na defesa da raça, através da publicação de revistas, notícias, livros, folhetos ou memórias; l) Estabelecer e sustentar relações com outras congéneres ou filiar-se em Federações com o mesmo sentido de melhor cumprir os seus objetivos de preservação da raça; m) Disponibilizar e receber a colaboração pontual ou protocolar com entidades da Administração Pública, entidades de ensino e investigação ligados ao sector; n) Acolher as expressões Charolês, Carne de Charolês, Charolais Meat, através do registo apropriado, para que as mesmas apenas possam ser utilizadas pela Associação e por terceiros para fins comerciais através de produtos e rotulagem, quando devidamente autorizadas ou protocoladas pela Associação; o) Ter o poder de criar estatutos que permitam a condução efetiva das atividades e regulamentar os procedimentos de inscrição ou outros que se justifiquem; p) Representar os associados e respetivos interesses legítimos em tudo o que se relacione com os presentes estatutos; q) Cumprir e fazer cumprir com a legislação Nacional e Comunitária referente à gestão dos Livros Genealógicos, assim como, de matéria sanitária; r) Promover o associativismo entre criadores;”. (cf. escritura pública junta com a resposta no processo do INPI).

18. (9) A recorrida CP CHAROLÊS PORTUGAL - ASSOCIAÇÃO DE CRIADORES DE CHAROLÊS DE PORTUGAL foi reconhecida em 06.09.2021 pela Direção Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV) como “Associação de criadores”, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (CE) 2016/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, de 8 de junho, tendo à mesma sido confiada a gestão dos registos dos animais no Livro Genealógico Português da Raça Bovina Charolesa. (cf. ofício da Direção geral de Alimentação e veterinária de 06.09.2021, junto com a resposta no processo do INPI).

19. (10) A Recorrida fez registar as marcas - Marca Nacional Coletiva de Associação n.º 614215, e Marca Nacional n.º 639971 - para a concretização das suas finalidades e objetivos estatutários, especificamente os de acolher as expressões Charolês, Carne de Charolês, Charolais Meat, através do registo apropriado, para que as mesmas apenas possam ser utilizadas pela Associação e por terceiros para fins comerciais através de produtos e rotulagem, quando devidamente autorizadas ou protocoladas pela Associação. (cf. art.º 3.º, al. n) dos Estatutos da Associação juntos com a resposta no processo do INPI).

20. (11) Pelo Aviso (extrato) n.º 18801/2018 (Reconhecimento de Organismo de Controlo e Certificação) publicado no Diário da república, II Série de 14 de dezembro, foi tornado público o despacho da Sra. Subdiretora-geral da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, de 4 de dezembro de 2018, com o seguinte conteúdo: «De acordo com o Decreto-Lei n.º 323-F/2000, de 20 de dezembro, e verificada a conformidade do pedido de reconhecimento com o disposto no artigo 10.º do citado decreto-lei, é concedido por despacho da Senhora Subdiretora-Geral, de 3 de dezembro de 2018, o reconhecimento à Certis - Controlo e Certificação, Lda. como organismo de controlo para produtos de carne de bovino "Charolês" e "Charolês Premium". (cf. Diário República II série, de 14.12.2018).

21. (12) Pelo Aviso (extrato) n.º 18899/2018 (Aprovação do caderno de especificações para a produção e comercialização de carne de bovino «Charolês» e «Charolês Premium») publicado no Diário da república, II Série de 17 de dezembro foi tornado público o despacho da Sra. Subdiretora-geral da Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, de 4 de dezembro de 2018, com o seguinte conteúdo: «De acordo com o disposto nos n.º 1 e n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 323-F/2000, de 20 de dezembro, bem como, nos termos do n.º 1 do Despacho Normativo n.º 30/2000, de 12 de junho, e, verificada a conformidade da candidatura apresentada, por despacho de 3 de dezembro de 2018, da senhora subdiretora-geral, é autorizado à Charolês Portugal, Associação de Criadores de Charolês de Portugal, o direito de utilizar o caderno de especificações e o rótulo associado para a produção e comercialização de carne de bovino «Charolês» e «Charolês Premium» (cf. Diário República II série, de 17.12.2018).


Fatos não provados na sentença recorrida
22. Nenhuns.

Quadro legal relevante

23. Têm relevo para a decisão os seguintes textos legais:


Directiva (EU) 2015/2436 (marcas)

Artigo 3.º
Sinais suscetíveis de constituírem uma marca
Podem constituir marcas todos os sinais, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, ou desenhos, letras, números, cores, a forma ou da embalagem do produto ou sons, na condição de que tais sinais:
a) sirvam para distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas; e
b) possam ser representados no registo de uma forma que permita às autoridades competentes e ao público determinar, de forma clara e precisa, o objeto claro e preciso da proteção conferida ao seu titular.

Código da Propriedade Industrial ou CPI

Artigo 208.º
Constituição da marca
A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, cor, a forma do produto ou da respetiva embalagem, ou por um sinal ou conjunto de sinais que possam ser representados de forma que permita determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao seu titular, desde que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas.

Artigo 218.º
Fundamentos de recusa do registo
1 - Às marcas coletivas e às marcas de certificação ou de garantia aplicam-se, com as necessárias adaptações, os fundamentos de recusa previstos para as marcas de produtos e serviços.
2 - O registo de marca é ainda recusado quando:
a) A marca não preencha as condições previstas nos artigos 214.º e 215.º;
b) Não seja respeitado o disposto no artigo 216.º;
c) A marca seja suscetível de induzir o público em erro relativamente ao caráter ou significado da marca, nomeadamente se esta for suscetível de dar a impressão que se trata de outra realidade que não uma marca coletiva ou uma marca de certificação ou de garantia;
d) Não seja apresentado o regulamento de utilização da marca;
e) O regulamento de utilização da marca não contenha as indicações necessárias, ou seja, contrário à ordem pública e aos bons costumes.

Artigo 221.º
Disposições aplicáveis
São aplicáveis às marcas coletivas e às marcas de certificação ou de garantia, com as devidas adaptações, as disposições do presente Código relativas às marcas de produtos e serviços.

Artigo 231.º
Fundamentos de recusa do registo
1 - Para além do que se dispõe no artigo 23.º, o registo de uma marca é recusado quando esta:
a) Seja constituída por sinais que não possam ser representados graficamente ou de forma que permita determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao seu titular;
b) Seja constituída por sinais desprovidos de qualquer caráter distintivo;
c) Seja constituída, exclusivamente, por sinais ou indicações referidas nas alíneas b) a d) do n.º 1 do artigo 209.º;
d) Contrarie o disposto nos artigos 208.º, 211.º e 224.º
2 - Não é recusado o registo de uma marca constituída, exclusivamente, por sinais ou indicações referidas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 209.º se, antes da data do pedido de registo e na sequência do uso que dela for feito, esta tiver adquirido caráter distintivo.
3 - É ainda recusado o registo de uma marca que contenha em todos ou alguns dos seus elementos:
a) Símbolos, brasões, emblemas ou distinções do Estado, dos municípios ou de outras entidades públicas ou particulares, nacionais ou estrangeiras, o emblema e a denominação da Cruz Vermelha, ou de outros organismos semelhantes, bem como quaisquer sinais abrangidos pelo artigo 6.º-ter da Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, salvo autorização;
b) Sinais com elevado valor simbólico, nomeadamente símbolos religiosos, salvo autorização, quando aplicável, e exceto quando os mesmos sejam usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais do comércio dos produtos ou serviços a que a marca se destina e surjam acompanhados de elementos que lhe confiram caráter distintivo;
c) Expressões ou figuras contrárias à lei, moral, ordem pública e bons costumes;
d) Sinais que sejam suscetíveis de induzir o público em erro, nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica do produto ou serviço a que a marca se destina;
e) Sinais ou indicações que contrariem o disposto na legislação nacional, na legislação da União Europeia ou em acordos internacionais de que a União Europeia seja parte, que conferem proteção a denominações de origem e indicações geográficas;
f) Sinais ou indicações que contenham, em todos ou alguns dos seus elementos, menções tradicionais para o vinho que se encontrem protegidas pela legislação da União Europeia ou por acordos internacionais de que a União Europeia seja parte;
g) Sinais ou indicações que contenham, em todos ou alguns dos seus elementos, especialidades tradicionais garantidas que se encontrem protegidas pela legislação da União Europeia ou por acordos internacionais de que a União Europeia seja parte;
h) Sinais ou indicações que contenham, em todos ou alguns dos seus elementos, denominações de variedades vegetais que se encontrem protegidas pela legislação da União Europeia ou por acordos internacionais de que a União Europeia seja parte.
4 - É também recusado o registo de uma marca que seja constituída, exclusivamente, pela Bandeira Nacional da República Portuguesa ou por alguns dos seus elementos.
5 - É ainda recusado o registo de uma marca que contenha, entre outros elementos, a Bandeira Nacional nos casos em que seja suscetível de:
a) Induzir o público em erro sobre a proveniência geográfica dos produtos ou serviços a que se destina;
b) Levar o consumidor a supor, erradamente, que os produtos ou serviços provêm de uma entidade oficial;
c) Produzir o desrespeito ou o desprestígio da Bandeira Nacional ou de algum dos seus elementos.
6 - Quando invocado por um interessado, constitui também fundamento de recusa o reconhecimento de que o pedido de registo foi efetuado de má-fé.

Artigo 238.º
Conceito de imitação ou de usurpação
1 - A marca registada considera-se imitada ou usurpada por outra, no todo ou em parte, quando, cumulativamente:
a) A marca registada tiver prioridade;
b) Sejam ambas destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
c) Tenham tal semelhança gráfica, figurativa, fonética ou outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão, ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada, de forma que o consumidor não as possa distinguir senão depois de exame atento ou confronto.
2 - Para os efeitos da alínea b) do número anterior:
a) Produtos e serviços que estejam inseridos na mesma classe da classificação de Nice podem não ser considerados afins;
b) Produtos e serviços que não estejam inseridos na mesma classe da classificação de Nice podem ser considerados afins.
3 - Considera-se imitação ou usurpação parcial de marca o uso de certa denominação de fantasia que faça parte de marca alheia anteriormente registada.

Artigo 259.º
Nulidade
1 - Para além do que se dispõe no artigo 32.º, o registo de marca é nulo quando na sua concessão, tenha sido infringido o previsto nos n.ºs 1 e 3 a 6 do artigo 231.º
2 - É aplicável às ações de nulidade, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 231.º

Apreciação do recurso

A. Marcas susceptíveis de induzir o público em erro

24. A recorrente defende que as duas marcas nacionais aqui em crise, de cujo registo é titular a recorrida, a saber, a marca individual n.º 639971 e a marca colectiva n.º 614215 contêm elementos susceptíveis de induzir o público em erro, pois, apesar de aludirem a carne, charolês, charolesa, consoante o caso, permitem assinalar qualquer tipo de carnes, o que infringe o disposto no artigo 231.º n.º 3 – d) do CPI e é causa de nulidade de ambas as marcas, nos termos do artigo 259.º n.º 1 do CPI.

25. Da análise dos despachos do INPI juntos aos autos resulta que em 12.7.2019 foi concedida à recorrida a marca nacional colectiva 614215 e em 21.8.2020 foi concedida à recorrida a marca nacional n.º 639971 (cf. documentos juntos com a referência citius 102489). A este propósito, na sentença recorrida, o facto 1/parágrafo 10 supra, designa a marca n.º 639971 como colectiva ao passo que o facto 10/parágrafo 19 se lhe refere simplesmente como marca nacional. Este Tribunal leva em conta os documentos constantes do processo de registo que correu no INPI (cf. referência citius 102489), dos quais resulta que a marca n.º 639971 é uma marca nacional individual e não colectiva – cf. artigos 607.º n.º 4 e 663.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC). Pelo que, as marcas aqui em crise, que a seguir serão analisadas, consistem numa marca nacional individual, com o n.º 639971 e numa marca nacional colectiva, com o n.º 614215.

26. Feito este esclarecimento, convém começar por sublinhar que o registo das marcas em Portugal e na União Europeia é um registo por produtos ou serviços, conforme resulta do artigo 238.º n.º 2 do CPI e do artigo 3.º da Directiva 2015/2436. Assim, no que diz respeito às duas marcas aqui em litígio, importa recordar que o respectivo registo não constitui um registo por classes, na medida em que o exclusivo concedido pelo artigo 249.º do CPI à sua titular (a recorrida) não cobre automaticamente os demais produtos ou serviços pertencentes à mesma classe dos indicados pela recorrida no registo, ou seja, não cobre automaticamente todos os produtos incluídos no mesmo grupo da classificação internacional de Nice utilizada, nem exclui liminarmente aqueles que estejam incluídos em classes diferentes. Só os abrangerá, estejam eles em que classe estiverem, caso se verifique o confronto entre produtos ou serviços que estejam numa relação de afinidade. Assim, contrariamente ao que parece pretender a recorrida quando defende que as marcas em crise são enganosas porque as classes em que estão registadas permitem comercializar qualquer tipo de carne, a classificação internacional de Nice utilizada nos registos em análise, tem uma mera relevância organizativa e tributária (cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, 2.ª Edição, Almedina, páginas 271 e 272).

27. Dito isto, no que respeita à marca n.º 639971, cuja nulidade é invocada pela recorrente, trata-se de uma marca individual na medida em que foi registada por uma única empresa, a associação aqui recorrida e, em consequência, pode ser usada apenas por essa empresa, sem prejuízo de esta poder autorizar terceiros a usá-la mediante concessão de licenças de exploração, como prevê o artigo 31.º do CPI.

28. A marca individual tem funções económicas e funções jurídicas que importa distinguir. A função económica da marca consiste na diferenciação entre produtos ou serviços semelhantes, permitindo a associação, na mente do consumidor, entre a marca e as características do produto e orientar o consumidor nas aquisições futuras. Contudo, a protecção legalmente concedida à marca individual não garante a fruição de todas as vantagens económicas decorrentes da sua utilização (cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, 2.ª Edição, Almedina, páginas 240 e 241).

29. Com efeito, a função jurídica essencial da marca individual é a indicação da procedência empresarial dos produtos ou serviços – cf. artigo 208.º do CPI. Ou seja, a função juridicamente tutelada da marca individual, aqui em crise, consiste em garantir que todos os produtos ou serviços que a ostentam foram fabricados ou prestados sob o controlo de uma única empresa, a recorrida, à qual pode ser atribuída a responsabilidade pela qualidade desses produtos – cf. acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), C- 291/16, parágrafo 37. Acresce que, a marca não deve induzir o público em erro, como decorre do princípio da verdade da marca previsto no artigo 231.º n.º 3-d) do CPI.

30. Assim, é à luz da função jurídica da marca individual, que consiste em indicar a proveniência empresarial do produto (cf. artigo 208.º do CPI) e do princípio da verdade da marca, consagrado no artigo 231.º n.º 3-d) do CPI, que proíbe o registo de sinais que possam induzir o público em erro sobre a natureza, qualidade, utilidade ou proveniência geográfica do produto, que este Tribunal apreciará se a marca individual aqui em crise é enganosa, como alega a recorrente.

31. A esse propósito, a recorrente tem razão quando defende que a situação em análise nos presente autos é diversa da que foi apreciada no acórdão do TJUE C-371/18 mencionado pelo Tribunal a quo, pois nesse acórdão o que estava em litígio era saber se o emprego de termos que não são claros nem precisos para designar produtos, acarreta a nulidade da marca e a resposta do TJUE foi negativa. No caso em análise não existe falta de clareza ou precisão dos termos empregues, como a seguir será explicado.

32. Com efeito, para saber se a marca é enganosa há que levar em conta os seguintes factores: a marca individual n.º 639971 inclui os elementos nominativos “CHAROLÊS PORTUGAL ASSOCIAÇAO DE CRIADORES CARNE CHAROLESA CERTIFICADA”; no seu registo foram indicadas as classes 4 e 29 da classificação internacional de Nice (cf. facto 2/parágrafo 11), que abrangem sebo de carne, carne e outros produtos à base de carne ou dela derivados aí mencionados; tal como foi explicado acima no parágrafo 26, o exclusivo concedido pelo registo não cobre automaticamente todos os produtos indicados nas classes 4 e 29 da classificação internacional de Nice assim como não exclui automaticamente produtos constantes de outra classe.

33. Dos factores indicados no parágrafo anterior, apreciados à luz da função jurídica da marca individual, que é indicar a proveniência dos produtos, e do princípio da verdade da marca que, segundo as alegações da recorrente, estaria em crise quanto à indicação da natureza e da qualidade da carne (charolesa /charolês), extrai-se que a marca n.º 639971 contém elementos suficientemente precisos para indicar a origem empresarial dos produtos comercializados e que não é enganosa quanto à natureza e à qualidade dos produtos que assinala.

34. Na verdade, os termos utilizados na marca individual n.º 639971 indicam a proveniência empresarial dos produtos uma vez que parte dos elementos dessa marca são até idênticos aos contidos na denominação social da recorrida, “CP Charolês Portugal – Associação de Criadores de Charolês de Portugal”, o que permite indicar a proveniência empresarial dos produtos.

35. A este propósito, o Tribunal leva em conta que a recorrida é uma associação portuguesa de direito privado, sem fins lucrativos, que tem por objetivos ou fins estatutários congregar os criadores da raça bovina charolesa que manifestem o interesse em fazer parte da associação, manter a pureza da raça, desenvolver ações para favorecer a melhoria do desempenho zootécnico, cooperar na erradicação de defeitos hereditários, cumprir com as regras técnicas e de higiene veterinária definidas pela legislação, receber as inscrições dos animais, recolher, atestar, preservar e publicar a ascendência e descendência (pedigree) dos animais da raça (cf. facto 8/parágrafo 17).

36. Pelo que, à luz da função jurídica da marca individual, acima indicada no parágrafo 30 e do princípio da verdade da marca consagrado no artigo 231.º n.º 3 – d) do CPI, a marca nacional n.º 639971 cumpre a sua função jurídica e não é deceptiva, ou seja, não é susceptível de induzir o público em erro sobre a natureza, qualidade ou proveniência empresarial da carne comercializada. Isto porque os elementos nominativos utilizados na marca, a saber, “CHAROLÊS PORTUGAL ASSOCIAÇAO DE CRIADORES CARNE CHAROLESA CERTIFICADA”, por um lado, não são susceptíveis de enganar o consumidor sobre a natureza e a qualidade do produto uma vez que aludem a “Carne Charolesa”; por outro lado, indicam a proveniência empresarial, uma vez que aludem a “Charolês Portugal Associação de Criadores”, elementos que também estão presentes na denominação da recorrida.

37. Questão diversa é a de saber se, para defesa e promoção da carne bovina charolesa, a recorrida não poderia ter lançado mão de uma marca de certificação (cf. artigo 215.º do CPI). Nesse caso, a função indicativa da proveniência empresarial ficaria subalternizada pois a função juridicamente tutelada da marca de certificação é a de garantir a qualidade ou a genuinidade dos produtos (cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, 2.ª Edição, Almedina, páginas 326 a 330). No entanto, no caso em análise, o que está em causa é uma marca individual da recorrida, a marca nacional n.º 639971, cuja função jurídica essencial é a da indicação da proveniência empresarial dos produtos; ora, pelos motivos acima explicados, tal marca cumpre a função jurídica de indicação da proveniência empresarial; acresce que não induz os consumidores em erro sobre a natureza e a qualidade dos produtos assinalados, uma vez que os indica de forma clara e precisa.

38. No que respeita à segunda marca posta em crise pela recorrente, trata-se da marca nacional colectiva n.º 614215 – cf. artigo 214.º do CPI.

39. Tendo a recorrente alegado a nulidade da marca colectiva n.º 614215, com base nos artigos 231.º n.º 3 – d) e 259.º n.º 1 do CPI, estes preceitos aplicam-se às marcas colectivas, com as necessárias adaptações, por remissão dos artigos 218.º n.º 1 e 221.º do CPI.

40. A função juridicamente tutelada da marca colectiva não coincide com a da marca individual. Na verdade, na marca colectiva, a indicação da proveniência é colectivizada, uma vez que a marca não se reporta especificamente à empresa que introduz no mercado os produtos, mas destina-se a ser usada por uma pluralidade de pessoas para assinalar esses produtos, embora o seu registo seja titulado apenas por uma entidade, a recorrida (cf. Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, 2.ª Edição, Almedina, páginas 326 a 330). Ou seja, a marca colectiva aqui em crise visa atestar que os produtos ou serviços que a ostentam são provenientes de um membro da associação aqui recorrida e que respeitam a disciplina definida por esta. Adicionalmente, como já foi mencionado, aplica-se à marca colectiva o princípio da verdade da marca consagrado no artigo 231.º n.º 3 -d) do CPI.

41. Assim, é à luz da função jurídica da marca colectiva enunciada no parágrafo anterior e do princípio da verdade da marca consagrado no artigo 231.º n.º 3-d) do CPI que será apreciado o alegado caracter enganoso da marca n.º 614215.

42. Para esse efeito o Tribunal leva em conta os seguintes factores: a marca colectiva n.º 614215 inclui os elementos nominativos “CARNE CHAROLÊS CERTIFICADA CHAROLÊS PORTUGAL CONTROLADO POR CERTIS RÓTULO APROVADO PELO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, FLORESTAS E DESENVOLVIMENTO RURAL”; no seu registo foi indicada a classe 29 da classificação internacional de Nice (cf. facto 4/parágrafo 13), em que se incluem carne e outros produtos à base de carne ou dela derivados aí mencionados; tal como foi explicado acima no parágrafo 26, o exclusivo concedido pelo registo não cobre automaticamente todos os produtos indicados na classe 29 da classificação internacional de Nice, nem exclui automaticamente os produtos constantes de outras classes; apurou-se que a recorrida tem o direito de utilizar o caderno de especificações e o rótulo associado para a produção e comercialização de carne de bovino «Charolês» e «Charolês Premium» (cf. facto 12/parágrafo 21).

43. Assim, dos factores mencionados no parágrafo anterior extrai-se que a marca colectiva n.º 614215 não só atesta que os produtos que a ostentam são provenientes de um membro da associação titular da marca e respeitam a disciplina fixada por esta (como consta dos elementos nominativos da marca “CERTIFICADA CHAROLÊS PORTUGAL CONTROLADO POR CERTIS RÓTULO APROVADO PELO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, FLORESTAS E DESENVOLVIMENTO RURAL”) como não é enganosa sobre a natureza e qualidade desses produtos (uma vez que entre os elementos nominativos da marca se encontram “CARNE CHAROLÊS”).

44. Por todo o exposto, improcede o recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.


Decisão

Acordam as Juízes desta secção em:

I. Julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.

II. Condenar em custas a recorrente – artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.

III. Ordenar o cumprimento do disposto no artigo 46.º do CPI após trânsito e baixa dos autos.



Lisboa, 21 de Junho de 2023
Paula Pott
Eleonora Viegas
Ana Mónica Pavão