Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
586/15.5TDLSB-G.L1-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ESTATUTO ADMINISTRADOR JUDICIAL
CRIME DE PECULATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I–A publicação da Lei n.º 22/2013, de 25 de Fevereiro, que estabelece o estatuto do administrador judicial, ao impor, no n.º 2 do seu artigo 12.º, o dever destes profissionais actuarem com absoluta independência e isenção, não podendo praticar quaisquer actos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados, deveres cuja violação sancionou no plano administrativo e contra-ordenacional, não descriminalizou os comportamentos que consubstanciam uma apropriação de valores confiados ao administrador judicial.
 II–De resto, os deveres de independência e isenção impostos por essa norma não esgotam minimamente o conteúdo dos bens jurídicos protegidos pela incriminação do peculato, que, para além da tutela da probidade e fidelidade dos funcionários, protege também interesses patrimoniais.
III–Preenchendo a conduta, simultaneamente, a factualidade típica do crime e da contra-ordenação verifica-se uma situação de concurso efectivo ideal a que é aplicável o disposto no artigo 20.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
IV–Independentemente da natureza privada da actividade exercida e da caracterização dos interesses prosseguidos no processo em que foi nomeado, um administrador judicial, nomeadamente quando exerce no processo as funções de administrador da insolvência, desempenha uma função pública jurisdicional – alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal –, tendo, por isso, para efeitos penais, a qualidade de funcionário.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


1–No dia 3 de Junho de 2016, a Sr.ª juíza colocada na ...ª Secção de Instrução Criminal – Juiz ... – da Instância Central de Lisboa da comarca de Lisboa proferiu nestes autos o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:

O arguido E.M.G. veio a fls. 3002 insurgir-se contra a manutenção da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, requerendo a sua imediata revogação e a declaração de invalidade de todos os actos praticados no inquérito.
Fundamenta o requerido em duas ordens de razões:
a)A descriminalização da conduta que lhe é imputada pelo Ministério Público, alegando que a previsão no artigo 19.º da Lei n.º 22/2013 (Estatuto do Administrador Judicial) de contra-ordenações pela violação dos deveres a que se encontram adstritos os Administradores de Insolvência, demonstra que o legislador pretendeu apenas sancionar a mesma como ilícito contra­ordenacional e não como ilícito penal;
b)A natureza exclusivamente privada da actividade do Administrador de Insolvência, o qual não integra o conceito de funcionário para os efeitos do artigo 386.º do Código Penal.
O Ministério Público deduziu oposição ao requerido a fls. 3017, alegando que a pretensão do arguido não tem fundamento legal ou acolhimento jurisprudencial, cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que constam de fls. 3019 e seg..
Quanto à alegada descriminalização da conduta do Administrador de Insolvência que utiliza em proveito próprio, para os fins que entende pertinentes e que em exclusivo o beneficiam, o património das sociedades sob a sua gestão, a mesma não tem qualquer fundamento na Lei Penal ou no Estatuto do Administrador de Insolvência.
É certo que a conduta do arguido, porque privou as sociedades por si administradas de valores destinados à sua recuperação ou ao ressarcimento dos seus credores, viola o dever constante do artigo 12.º, n.º 2, do EAJ, mas esta determinação não significa que o legislador pretendeu isentar o Administrador Judicial, que actue nos mesmos termos indiciados quanto ao ora arguido, de responsabilidade penal.
São aliás inúmeros os exemplos no ordenamento jurídico em que a responsabilidade contra-ordenacional e criminal se apresentam numa relação de concurso, designadamente no Direito Estradal, quando a prática de uma contra-ordenação prevista no Código da Estrada é causal de um crime rodoviário e no Direito dos Valores Mobiliários, quando a prática de uma contra-ordenação prevista no CVM integra simultaneamente o tipo objectivo dos crimes previstos nos artigos 378.º e seg. do CVM.
Para tal relação de concurso o legislador previu expressamente uma solução que, como refere o Ministério Público, se encontra prevista no artigo 20.º do DL 433/82, de 27.10, ou seja, o facto ilícito será sempre punido como crime.
Tal é justamente a situação dos presentes autos em que se verifica uma relação de concurso aparente entre contra-ordenação prevista no EAJ e ilícito penal, que corresponderá ao previsto rio artigo 375.º do Código Penal, devendo o arguido ser punido apenas no âmbito desta norma.
Vem ainda o arguido alegar que, caso se considere a sua conduta ilícito penal, não pode ser punido no âmbito do artigo 375.º do Código Penal porquanto não é funcionário para os efeitos do artigo 386.º do Código Penal.
Nesta parte, igualmente considero que a sua alegação não tem qualquer fundamento e que a qualificação do Administrador de Insolvência como funcionário nos termos do artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal possui sólido suporte legal e jurisprudencial.
Os elementos típicos do crime de peculato, p. p. no artigo 375.º do Código Penal, correspondem a:
a)Que o agente seja um funcionário para efeitos do artigo 386.º do Código Penal;
b)Que tenha a posse do bem (dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções;
c)Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por actos objectivamente idóneos e concludentes que traduzam a “inversão do título de posse ou detenção”.
d)Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.
A consumação ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente[1].
Este crime tutela, por um lado, bens jurídicos patrimoniais e, por outro, a probidade e fidelidade dos funcionários.
O conceito de funcionário para o preenchimento do elemento objectivo do crime de peculato encontra-se definido pelo artigo 386.º do Código Penal, tratando-se de um conceito amplo, que difere do conceito de funcionário para efeitos administrativos mas que, para o que ao caso importa, exige que o agente tenha “sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou Jurisdicional”.
Em tal conceito integra-se indubitavelmente o Administrador de Insolvência, que tal como os Funcionários Judiciais e Magistrados é um servidor da Justiça e do Direito, artigo 12.º, n.º 1, do EJN, que actua como “pessoa incumbida da fiscalização e da orientação dos actos integrantes do processo especial de revitalização, bem como da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência”, artigo 2.º, n.º 1, do EAJ.
Deste modo, concluímos, tal como nos Acórdãos de citados a fls. 3019 e seg., que o Administrador de Insolvência é funcionário para os efeitos do artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, dado que o conceito de funcionário, para o Direito Penal, integra “qualquer actividade realizada com fins próprios do Estado e a actividade relacionada com a liquidação de patrimónios em processo de falência ou a venda em acção executiva é fim próprio do Estado levada a efeitos através do órgão de soberania Tribunais”[2].
Mais se salienta que no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que apreciou a aplicação ao arguido da medida de coacção prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal, mais uma vez, a 2.ª Instância não teve quaisquer dúvidas em assim considerar e em salientar a gravidade da conduta do arguido, indiciado, para além do mais, pela prática de crime de peculato, punível com pena de prisão até 8 anos e em concluir pela correcta aplicação daquela medida de coacção privativa da liberdade, mas inteiramente proporcional à gravidade dos factos e à sanção previsivelmente a aplicar em julgamento.
Assim, integrando o arguido, na qualidade de Administrador de Insolvência, o conceito de funcionário e resultando fortemente indiciados os demais elementos típicos do crime, em especial, o uso abusivo, em proveito próprio, de património que lhe estava confiado judicialmente no exercício daquelas funções, deve concluir-se que se mantêm os pressupostos de Direito que determinaram a aplicação ao arguido de medida de coacção privativa da liberdade, improcedendo o alegado a fls. 3002 e seg..
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Atendendo ao facto de o arguido já se ter pronunciado quanto à manutenção da medida de coacção, não se considera necessário proceder à sua audição para os efeitos do artigo 213.º, n.º 3, Código de Processo Penal.
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E.M.G. encontra-se sujeito a medidas de coacção privativas da liberdade desde 4.12.2015 e por se encontrar indiciada nos autos a prática por este dos crimes de peculato e branqueamento, p. p. nos artigos 375.º e 368.º-A, n.º 1, do Código Penal.
Do exame dos autos resulta manterem-se os indícios da prática pelo arguido dos crimes supra referidos, cujos fundamentos de Direito se encontram supra apreciados, mantendo-se igualmente inalteradas as exigências cautelares, não existindo atenuação de tais exigências, tal como doutamente foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Foi declarada a especial complexidade dos presentes autos.
Não foram ultrapassados os prazos a que alude o artigo 215.º Código de Processo Penal.
Pelo exposto, mantendo-se inalterados os pressupostos de facto e de Direito que determinaram a sujeição do arguido a obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, visto o preceituado no artigo 212.º e segs. do Código de Processo Penal, mantenho a mesma.
Notifique e comunique à DGRSP.

2–O arguido interpôs recurso desse despacho.

A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

A–Descriminalização da conduta do arguido.
I.Vem o presente recurso interposto do despacho do tribunal a quo que indeferiu o requerimento do arguido, ao abrigo disposto no artigo 122.º, n.º 1, 212.º, n.º 1, alíneas a) e b), 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 8, 217.º, n.º 1 e 2, do CPP para imediata extinção/revogação de todas as medidas de coação e declaração de invalidade de todos os atos praticados no inquérito e respetivo arquivamento dos autos, porquanto a matéria de que está indiciada constitui contraordenação e não crime.
II.Porém, o tribunal a quo, embora reconhecendo que a conduta do arguido se subsume ao disposto no artigo 12.º, n.º 2, da Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, invocou, erradamente, o disposto no artigo 20.º do RGCO para concluir que se tratando de um concurso aparente entre contraordenação e crime o arguido deve ser sempre punido a título de crime.
III.Desde logo, o artigo 20.º do RGCO não regula um concurso aparente, mas, ao invés, um concurso (efetivo) ideal heterogéneo, não sendo pois de aplicar aos casos de concurso aparente aos quais, aliás, têm de se aplicar as regras que lhe são próprias. Assim, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.30.2000 e o da Relação do Porto de 19.12.2007, melhor identificados na motivação e doutrina convergente ali citada.
IV.Contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, contraordenação e crime não são a mesma coisa, pois aquela é um aliud em relação a este, ou seja, o ilícito de mera ordenação social é um ramo jurídico autónomo com regras próprias que o distinguem dos demais ramos do direito, designadamente do direito penal que, aliás, é subsidiário (art. 32.º do RGCO) nos termos dos artigos 165.º, d), e 227.º, q), da Constituição – Ac. do Tribunal Constitucional de 03.05.2011.
V.Nesta conformidade, e ressalvado o devido respeito, os exemplos de concurso citados pelo tribunal a quo (Código de Estrada e Código Valores Mobiliários) demonstram o contrário do concluído, i. e., que nestes casos se está perante um concurso (efetivo) ideal heterogéneo, uma vez que na tipificação de crime e contraordenação se preveem diferentes condutas e se protegem bens jurídicos distintos não havendo, pois, similitude com o caso dos autos.
VI.No caso concreto de que nos ocupamos, está-se perante um concurso aparente entre a contraordenação prevista no artigo 12.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei 22/2013 e o crime (seja ele qual for, mas peculato não é de certeza), pelo que, de acordo com as regras de hierarquia e de relação de especialidade, prevalece a lei especial da contraordenação uma vez que esgota a valoração jurídica da situação. inter alia Ac. da Relação de Lisboa de 09.03.2000 e os supra citados.
VII. Assim, com a instituição do ilícito de mera ordenação social visou-se descriminalizar muitas infrações, apontando-se para a aplicação administrativa das sanções pecuniárias – v. g. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 344/93, de 12.05.1993 e n.º 110/90, de 18.04.1990 – Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12/12/2007 relatado pelo venerando juiz desembargador Artur Oliveira in www.dpsi.pt com o n.º 0744681.
VIII.A citada Lei n..º 22/2013, de 26 de Fevereiro, veio estabelecer o Estatuto do Administrador Judicial, revogando a Lei 32/2004 de 22 de Julho e no que aqui interessa instituiu um severo regime sancionatório próprio (contraordenacional) conforme artigos 19.º e 20.º.
IX.Esta Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro (aqui em causa) é uma Lei da Assembleia da República e com ela quis o legislador, com a legitimidade democrática que tem, consagrar um regime específico de responsabilidade profissional do administrador da insolvência qualificando e punindo a violação dos deveres profissionais no âmbito do ilícito de mera ordenação social geradores de contraordenação. Cfr. Exposição de Motivos à proposta de Lei 107/XII.
X.A conduta imputada ao arguido subsume-se, como reconhecido na decisão sub judice, à contraordenação prevista nos artigos 12.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013 de 26.02, pelo que a conduta do arguido, a ter constituído crime, está descriminalizada, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal e artigo 29.º, n.º 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa. cfr. inter alia Ac. Tribunal da Relação de Évora de 11.07.2013.
XI.Destarte, a norma extraída do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro, é inconstitucional, por violação do princípio/imperativo de aplicação da lei mais favorável, ínsito no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, aplicada pelo tribunal a quo no sentido de que em concurso aparente entre contraordenação e crime o agente é sempre punido a título de crime.
XII.Outrossim, a norma extraída da conjugação do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27.10 com o artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal, aplicada pelo tribunal a quo em derrogação da norma constante no artigo 12.º, n.º 2, e artigo 19.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro é inconstitucional, por violar o princípio da tipicidade, da legalidade penal e lei penal mais favorável, consignado no artigo 29.º, n.º 1 e 4, da Constituição.

B)-Incompetência ratione materiae.
XIII.Por outro lado, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, al. a), da citada Lei n.º 22/2013 de 26.02, a competência para instrução do processo disciplinar, contraordenacional e aplicação de sanções aos administradores da insolvência está atribuída à comissão de acompanhamento e fiscalização da atividade, sendo ainda esta entidade competente para suspender preventivamente os administradores da insolvência.
XIV.Tais competências estão deferidas à CAAJ – Comissão de Acompanhamento Auxiliares de Justiça, nos termos dos artigos 1.º, n.º 2, 3.º, n.º 1, als. g) e h), da Lei n.º 77/2013 de 21 de Novembro e das decisões proferidas por esta entidade administrativa autónoma nos respetivos processos cabe recurso para os tribunais administrativos, nos termos do 8.º, n.º 2.
XV.Também se vê da norma transitória constante do artigo 36.º, n.º 8, da citada lei 77/2013 de 21 de Novembro que compete à CAAJ “(...) instruir processos disciplinares e contraordenacionais aos auxiliares da justiça sujeitos ao seu acompanhamento, fiscalização e disciplina, bem como aplicar as respetivas sanções disciplinares, coimas e sanções acessórias, por factos praticados por ação ou omissão, ainda que anteriores à data de entrada em vigor da presente lei.”.
XVI.A denúncia nos presentes autos foi apresentada no dia 16/01/2015, portanto já na vigência das Leis 22/2013 de 26 de Fevereiro e 77/2013 de 21 de Novembro, pelo que tendo o Ministério Público recebido a mesma e a conduta imputada ao arguido ser subsumida à contraordenação prevista no artigo 12.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei 22/2013 de 26.02, devia ter determinado o arquivamento dos autos derivado da incompetência, em razão da matéria, da jurisdição comum, sem prejuízo de poder participar os fatos denunciados à CAAJ.
XVII.Ao assim não proceder, praticou atos proibidos por lei, pelo que todo o processado pelo Ministério Público e tribunal a quo é nulo – artigos 32.º, n.º 1, 118.º, n.º 1, e 119.º, alínea e) do CPP, devendo, consequentemente, ser o processo arquivado, o que hic et nunc se requer que seja ordenado.
Sem conceder e

C)-Do crime imputado ao arguido.
XVIII.Ainda que assim se não considerasse, o que, porém, não se admite, não colhe a conclusão do tribunal a quo invocando haver sólido suporte legal e jurisprudencial de que o administrador da insolvência é considerado funcionário, para efeitos penais, pois não só não teve em conta as profundas alterações introduzidas em todo o regime insolvencial, como também descurou os normativos jurídico-constitucionais que hodiernamente regem a matéria.
XIX.Na verdade e tanto quanto se conseguiu apurar, o Tribunal Constitucional não foi ainda confrontado com a questão da inconstitucionalidade da norma constante no artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, por violação do princípio da tipicidade previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, aplicada no sentido de ser aplicada aos administradores da insolvência sem lex scripta.
XX.Também não é menos verdade que a jurisprudência caduca sempre que em virtude de lei nova com ela não se conforme, pois, se assim é para as leis, por maioria de razão há-de ser para a jurisprudência ou doutrina cujo objeto é precisamente a aplicação e/ou estudo daquelas.
XXI.Vale isto por dizer que não é mais sustentável invocar a jurisprudência rectius decisões judiciais que no momento da sua prolação não tiveram em conta as profundas e significativas alterações legislativas, entretanto, introduzidas na ordem jurídica, seja porque não foram suscitadas seja porque ainda não estavam em vigor.
XXII.Certo é que, no caso concreto, e tendo em conta as profundas e radicais alterações introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei n.º 39/2003, de 22.08, Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18.03, Lei 32/2004 de 22.07, Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro e Lei n.º 77/2013 de 21 de Novembro, que tiveram como consequência a desjudicialização do processo de insolvência (onde e no que aqui interessa impera e tão só a vontade dos credores e administração/liquidação sob normas de direito privado) e consequente reconhecimento/consagração legal do caráter privado da atividade profissional do administrador da insolvência, não é mais possível afirmar que o administrador da insolvência é chamado a participar no desempenho de uma atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional.
XXIII.Desde logo, como decorre da inserção sistemática o crime de peculato só se verifica se e quando praticado no exercício de funções públicas, como se vê do Título V, Capítulo IV, Secção I, do Código Penal e como se salientou no, aliás, douto Parecer do Conselho Superior do Ministério Público à Proposta de Lei n.º 107/XII/2. “(...) na medida em que estamos perante uma atividade que não é exatamente uma função pública (...).”.
XXIV.A própria CAAJ acentua o caráter exclusivamente privado da atividade quando, após parecer externo e reflexão interna, conclui que: «A CAAJ desempenha funções de regulação de duas atividades económicas que nasceram da desintervenção do Estado (...).Em razão dessa privatização seria inadequado que o acompanhamento, supervisão e disciplina dos profissionais dessas áreas – é dizer: a sua regulação – fossem cometidos à direção do Governo.
XXV.Ou seja, a administração e liquidação dos patrimónios das massas insolventes não é um fim próprio ou exclusivo do Estado, por força, quanto mais não fosse, da desjudicialização operada com a entrada em vigor do CIRE em 2003, mas, ao invés, rege-se por normas de direito substantivo próprias e de natureza exclusivamente privada onde impera a vontade dos credores sujeitos ao direito privado.
XXVI.Carece, pois, e salvo o devido respeito, de atualidade jurídico-legal, as conclusões extraídas nos acórdãos não identificados, mas como referidos a fls. 3019 e seguintes, nos quais o tribunal a quo se louvou para sustentar que se está perante um crime de peculato, tanto mais que os “fundamentos” se reportam a um outro acórdão (referenciado em rodapé) mas cuja factualidade se reporta aos anos 1998 a 1999, portanto, muito antes das profundas alterações legislativas que mudaram o paradigma fático e jurídico da insolvência e respetivos intervenientes.
XXVII.Ademais, e ainda assim, sempre se dirá que a função pública implica a reunião de três elementos essenciais: a) serviço de interesse geral ou de utilidade pública; b) prestado exclusivamente pelo Estado e c) sob regime jurídico especial de direito público.
XXVIII.Como se vê, a atividade profissional do administrador da insolvência não é um serviço de interesse geral, pois destina-se à satisfação dos credores, não é, nunca foi, prestado pelo Estado, e não se rege por regime especial de direito público, mas, sim, de direito privado, sendo, pois, uma atividade profissional atípica em relação ao direito público, ou melhor, à atividade administrativa ou jurisdicional do Estado.
XXIX.O artigo 12.º, n.º 1, do EAJ invocado pelo tribunal a quo não se aplica ao caso sub judice, porquanto se trata de uma norma de conduta irrelevante para a questão da materialidade da atividade e aqui em questão, sendo que a sua eventual violação pode constituir ilícito disciplinar, como, de resto, sucede, com tantas outras normas idênticas, v. g., artigo 88.º do EOA, o que, porém, não transforma o advogado em funcionário para efeitos penais.
XXX.Conforme decidido pelo STJ nos seus acórdãos de 11.04.2013 e de 06.07.2011, in www.dgsi.pt à atividade do administrador da insolvência aplica-se ex vi legis o regime de direito privado, não se tratando, portanto, do exercício de funções públicas.
XXXI.Aliás, é ainda de salientar, como acentuado nos acórdãos do STJ supra referidos, que se o legislador configurasse a atividade do administrador da insolvência como compreendida no desempenho ou participação numa atividade administrativa ou jurisdicional do Estado, então quem respondia pelos atos ou omissões do administrador da insolvência era o Estado, o que não só não está previsto na Lei 37/2007 de 3.12, como outrossim não tem qualquer eco, i. e., relação com os regimes de responsabilidade civil previstos no artigo 59.º do CIRE e artigos 12.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei 22/2013 de 26.02.
XXXII.Como já referido, a desjudicialização do processo de insolvência, levada a cabo pelo legislador, com legitimidade democrática, tendo dado os primeiros passos em 1998, materializou-se com a entrada em vigor do CIRE, no ano de 2003 e a desjudicialização consiste na transferência de algumas atividades que eram atribuídas ao poder judiciário e, portanto, previstas em lei como de sua competência, para o âmbito de entidades extrajudiciais, admitindo que estes privados possam realizá-las por meio de procedimentos de direito privado.
XXXIII.E vale repetir, nestas conclusões, que isto é tanto assim que podemos ver que na Lei 62/2013 de 26 de Agosto (Lei Organização Sistema Judiciário) o legislador elencou do artigo 4.º a 21.º as profissões judiciárias como o juiz, magistrado do Ministério Público, advogado, solicitador e oficial de justiça, não considerando rectius não incluindo a atividade profissional do administrador da insolvência como “profissão judiciária”, ou nas palavras do legislador, “das profissões que interagem no seio do sistema judicial” (epígrafe do Título II, capítulo I).
XXXIV.O tribunal a quo considerou que o arguido foi chamado a desempenhar ou participar numa função jurisdicional do Estado pela simples circunstância de ser nomeado pelo juiz, não levando em linha de conta, por um lado, que inúmeras são as situações de nomeação de terceiros pelos tribunais, para as mais variadas atividades, v. g., 253.º, n.º 3, in fine, e 394.º, n.º 1 e 2, do Código das Sociedades Comerciais e, por outro lado, que tem toda a pertinência e atualidade o decidido no, aliás, douto acórdão do STJ de 02.10.1991, processo n.º 42.065 in CJ, XVI, Tomo IV, pág. 32: «Chamados a desempenhar atividade jurisdicional serão os jurados, os juízes sociais, os assessores técnicos, a que se refere o artigo 210.º da CRP.» (acórdão citado pelo STJ no processo n.º 1/13.9 de 17/04/2015 in www.dgsi.pt)
XXXV.Na esteira do assim decidido, o legislador veio fixar o sentido e alcance do artigo 386.º, n.º 1, al. c), do Código Penal de 95, através da Lei Geral da República n.º 32/2010 de 02.09, concretizando como funcionário, para efeitos penais, o árbitro, jurado e perito, efetuando, assim, uma interpretação autêntica ao citado artigo 386.º do Código Penal, delimitando, em concreto, o âmbito de sujeição, aplicando-se, pois, mesmo retroativamente, o que vale por dizer que a alínea d) do n.º 1 não admite qualquer interpretação jurisdicional extensiva quanto à função pública administrativa ou jurisdicional do Estado, na medida em que pela interpretação autêntica o legislador fixou, em definitivo, o alcance da referida disposição, com força vinculativa para os tribunais.
XXXVI.Também a atividade profissional do administrador da insolvência, regida por normas de direito privado, não se compreende numa função pública administrativa do Estado, porquanto esta é "(...) uma realidade de natureza funcional, traduzida no exercício de poderes-deveres de promoção contínua de interesses públicos primariamente definidos pela lei, apoiado na prerrogativa de autotutela declarativa, dependente de habilitação normativa e sujeito ao emprego obrigatório de procedimentos jurídicos e formas típicas de conduta." – Professor Sérvulo Correia in Curso de Doutoramento em Administração Pública, pág. 12.
XXXVII.Ontologicamente não se pode afirmar num lado, na jurisdição civil, que a atividade do administrador da insolvência é privada, i. e., submetida ao regime de direito privado e, doutro lado, na jurisdição penal, afirmar que se trata do exercício de funções públicas – é incoerente e, logo, desconforme aos princípios do Estado de Direito Democrático, baseado na dignidade da pessoa humana, postulados nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, n.º 3, 16.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 4 e 5, da Constituição.
XXXVIII.Insistimos que o administrador da insolvência não pode ser considerado servidor do Estado nem funcionário para efeitos penais na medida em é incumbido de administrar, fiscalizar e, quando aplicável, liquidar ex vi legis (artigo 46.º, n.º 1, do CIRE) um património autónomo de direito privado (que pode conter, e em regra contém, empresas e/ou estabelecimentos comerciais em atividade) convertido propriedade privada dos credores, destinado a satisfazer os créditos destes depois de pagas as suas próprias dívidas, pelo que o único aspeto a aqui considerar é a sua natureza privada, cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 05.07.2010.
XXXIX.Além de que – insista-se – a equiparação a funcionário penal tem de estar expressamente prevista numa lei penal, emanada pela Assembleia da República, ou autorizada por esta, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição, não sendo suficiente uma referência genérica a preencher casuisticamente pelo arbítrio dos tribunais.
XL.Assim mesmo decidiu o Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.º 864/96 e 589/97, sendo que nestes, aliás, doutos acórdãos o tribunal declarou inconstitucional a norma constante dos artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, e 5.º, e), do Decreto-Lei n.º 371/83, de 6 de Outubro que equiparava os funcionários da CGD a funcionários para efeitos penais, nos termos do artigo 437.º, n.º 1, al. c), do Código Penal (atual artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal), por tal equiparação não estar abrangida na autorização legislativa.
XLI.Se assim é para um decreto-lei, por maioria de razão há-de ser quando a equiparação a funcionário, para efeitos penais, é efetuada por decisão judicial, em interpretação extensiva, violando, aliás, e não só a Lei interpretativa 32/2010 de 02.09 e portanto sem suporte em qualquer lei emanada ou autorizada pela Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição, como outrossim o princípio da tipicidade e legalidade penal constante no artigo 29.º da Constituição.
XLII.E a norma extraída do artigo 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal não pode ser interpretada como sendo uma lacuna intencional do legislador para evitar situações de falta de punibilidade, porquanto tal norma é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade e tipicidade penal consagrado no artigo 29.º da Constituição e artigo 1.º do Código Penal, sendo que: "(...) lacunas, deficiências de regulamentação ou de redação funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 183/2008 de 12.03.2008.
XLIII.A norma constante no artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal é uma norma materialmente inconstitucional, por violar o princípio da tipicidade e legalidade penal constante no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, na medida em que permite interpretação jurisdicional extensiva, para efeitos de preenchimento de lacunas, dos elementos do tipo penal relativos aos conceitos de funcionário, não concretizando em concreto os sujeitos submetidos ao seu campo de aplicação.
XLIV.É outrossim inconstitucional o citado artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, por violação do artigo 266.º, n.º 1, da Constituição, por violação do princípio da legalidade administrativa, quando aplicada no sentido de que a atividade profissional (de natureza privada) do administrador da insolvência se compreende numa função pública administrativa do Estado.
XLV.Também é inconstitucional o artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, por violação do artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, por violação do princípio de reserva jurisdicional, quando aplicada no sentido de que a atividade profissional (de natureza privada) do administrador da insolvência se compreende numa função pública jurisdicional do Estado.
XLVI.Inconstitucional é a norma extraída do artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, conjugada com os artigos 52.º, 53.º, 55.º e 59.º do Decreto-lei n.º 53/2004 de 18.03, por violação do princípio da tipicidade e legalidade penal constante no do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, quando aplicada no sentido de que a atividade profissional (de natureza privada) do administrador da insolvência se compreende na função pública jurisdicional do Estado.
XLVII.De igual modo, inconstitucional é a norma extraída do artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, conjugada com os artigos 52.º, 53.º, 55.º e 59.º do Decreto-lei n.º 53/2004 de 18.03, por violação do princípio da tipicidade e legalidade penal constante no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, quando aplicada no sentido de que a atividade profissional (de natureza privada) do administrador da insolvência se compreende na função pública administrativa do Estado.
XLVIII.Também é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consignado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, a norma extraída do disposto no artigo 386.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código Penal, na parte em que deixa ao arbítrio dos tribunais a definição da qualidade de funcionário para efeitos penais, quando, comparativamente, os árbitros, jurados e peritos estão rectius passaram a estar especialmente definidos, mediante interpretação autêntica.
XLIX.Não sendo funcionário, para efeitos penais, nos termos do artigo 386.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, ao arguido não pode ser imputado o crime de peculato que não só pressupõe, ou melhor, exige a qualidade de funcionário como outrossim obriga a que a atividade reputada por ilícita se dê no exercício de funções públicas.
L.A que acresce que numa análise, ainda que perfunctória, aos elementos subjetivos e objetivos do tipo do crime de peculato, vemos, sem grande esforço, que estes não estão preenchidos in casu, na medida em que, quanto mais não fosse, no peculato está sempre em causa um direito patrimonial do Estado – a sua propriedade (tratando-se de bens estaduais) ou a sua posse legítima (tratando-se de bens de particulares), o que, manifestamente, não é o caso, por expressa opção do legislador – Assim: Conceição Ferreira da Cunha (citando o insigne professor Cavaleiro de Ferreira) in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 688.
LI.Também, e afastado o tipo de peculato, a facticidade imputada ao arguido não preenche a tipicidade do crime de abuso de confiança, por falta dos elementos objetivo e subjetivo do crime, designadamente o elemento específico “intenção de apropriação” e imputação do resultado (lesão ao direito de propriedade ou posse), uma vez que este é imputado a quem tinha, e tem, o dever legal de prevenir o resultado. Com efeito,
LII.Não se duvidará que o denunciante, bem como qualquer outra instituição de crédito, tem, enquanto depositário, o dever jurídico específico de impedir que o depósito constituído (com fundamento legal e contratual) a favor de terceiros (a massa insolvente é um património autónomo de direito privado destinado a pagar as dívidas do insolvente) seja afetado por atos do depositante ou mesmo por atos dos seus colaboradores, o que resulta, além do mais, do disposto nos artigos 150.º, n.º 6, e 167.º do CIRE e artigo 434.º e segs., 1142.º e 1193.º do Código Civil e ainda dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei 298/92 de 31.12 com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 1/2008 de 3.01 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras).
LIII.Assim, a ação do arguido, à qual não pode, em caso algum, ser imputado o resultado, até para proteção dos credores, a constituir ilícito penal, sem conceder que se trata de contraordenação, pode ser o de infidelidade, p. p. pelo artigo 224.º do Código Penal, posto que, e além dos demais elementos do tipo, a relação de confiança rectius a atuação do administrador judicial (insolvência) funda-se na lei e não em qualquer outro ato – cfr. neste sentido Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos in Código Penal, Anotado, 3.ª Edição, 2.º Vol. Rei dos Livros pág. 945.
LIV.Por outro lado, tratando-se de uma contraordenação não é possível a imputação de um crime de branqueamento de capitais, nem num eventual crime de infidelidade, além de que não estão preenchidos os elementos subjetivos e objetivos do tipo.
LV.Ademais e no que concerne ao imputado crime de branqueamento de capitais, e na esteira do decidido pelo, aliás, douto acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ de 22/03/2007, o mesmo não deve ter-se por minimamente indiciado, posto que existe consumação pelo crime precedente, na medida em que os atos subsequentes são uma continuação deste, ou seja, deve considerar-se ainda prolongamento natural deste, isto é, simples propósito de garantir a fruição normal do produto do crime precedente.
LVI.Quanto ao eventual crime de fraude fiscal, parece-nos que se tratando de vantagens suscetíveis de virem a ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo no âmbito do processo de contraordenação inexiste a possibilidade de condenação por tal crime, assim se pronunciando a doutrina e jurisprudência.
D) - Das medidas de coação
LVII.A correção da qualificação jurídica da conduta implica a imediata extinção/revogação de todas e quaisquer medidas de coação, porquanto se está perante uma contraordenação e esta não admite quaisquer medidas coativas mormente a privação da liberdade.
LVIII.Ainda que assim se não entenda, mas sem conceder, sempre a correção da qualificação jurídica dos factos implica outrossim a imediata revogação das medidas de coação de privação da liberdade, porquanto estão ultrapassados os prazos máximos, previstos no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, seja de imputar ao arguido o crime de abuso de confiança ou de infidelidade, sendo que, relembre-se, este não admite medida de privação de liberdade.
LIX.Como se decidiu no acórdão deste tribunal ad quem de 14.06.2016, no apenso B), ainda não transitado, por reclamado, afastado que está o perigo de continuação da atividade reputada por criminosa, "subsistirá" o eventual perigo para a aquisição e conservação da veracidade da prova, uma vez que é necessário investigar a eventual existência de cúmplices, o que, porém, não se concorda uma vez que não é imputado ao arguido qualquer comportamento que indicie em concreto que em liberdade vá prejudicar gravemente a investigação.
LX.Com efeito, é de ponderar que o arguido não tem antecedentes, admitiu/esclareceu os fatos, colaborou e colabora com a investigação explicando todo o sucedido o que levou o Ministério Público a ir à procura de novos e mais elementos (cúmplices), com nítido prejuízo para o arguido que assim viu dilatar a duração da medida de coação de privação da liberdade, pelo que a esta data não é adequada, necessária e proporcional a medida de coação de privação da liberdade do arguido, pelo que o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 191.º, n.º 1 e 2, 193.º, n.º 1 e 2, e 204.º, todos do CPP.
LXI.É ao caso de aplicar o decidido no acórdão deste tribunal ad quem de 09.12.1992, processo n.º 0296823 in www.dgsi.pt, de que não se justifica a privação da liberdade, na medida em que a admissão dos factos, a colaboração, o arrependimento e a tentativa de reparação dos danos salvaguardam as exigências processuais de natureza cautelar desde que o arguido fique vinculado a outras medidas cautelares v. g. a caução.
LXII.Em matéria de medidas de coação privativas da liberdade a regra rebus sic stantibus (criada in casu sem qualquer consagração constitucional ou sequer legal), tem de ser interpretada de forma mais flexível, i. e., menos rígida, atenta a sua natureza precária, posto que é a própria Constituição que assim o exige, no artigo 28.º, n.º 2, ao dispor que a medida privativa da liberdade não pode ser decretada nem mantida sempre que possa ser substituída por outra mais favorável ou prestada caução o que na interpretação do artigo 212.º, n.º 1, al. b), 3 e 4, do CPP deve ser sempre tido em consideração.
LXIII.Deve outrossim ser revogada a medida de coação de proibição de contatos com todos os funcionários da L…… e da S…….., porquanto a mesma não se apresenta necessária e adequada, assumindo, ao invés, a natureza de uma medida securitária, incompatível com o Estado de Direito, pelo que foi outrossim violado o disposto nos artigos 200.º, n.º 1, al. d), 204.º, al. b), e 212.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 3, do CPP.
LXIV.Apelando, e demonstrado que está o afastamento da qualidade de funcionário, para efeitos penais, o desaparecimento da carga axiológica, ligada ao exercício de funções públicas, carregada pelo crime de peculato, cujos elementos objetivos e subjetivos também se não verificam, recomenda a imediata restituição do arguido à liberdade, ainda que com condições, na medida em quer no crime de infidelidade quer no crime de abuso de confiança a pena pode ser especialmente atenuada ou isenta, nos termos do artigo 206.º do Código Penal.
LXV.A terminar, reportando-se o termo inicial do presente inquérito ao dia 16/01/2015, data em que foi apresentada denúncia contra o arguido, estão ultrapassados todos os prazos máximos de duração do inquérito, previstos no artigo 276.º, n.º 1 e 2, alíneas b) e c), do CPP, sendo ainda certo que a própria declaração de excecional complexidade foi proferida já depois de esgotados tais prazos razão pela qual foi interposto o competente recurso, mas cujo prazo de validade também está largamente ultrapassado, pelo que deve ser ordenada a imediata extinção das medidas de coação, com a consequente restituição da liberdade ao arguido.

Nestes termos e nos melhores de direito, e sempre com o muito douto suprimento de vossas excelências, venerandos juízes desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, determinando-se:
(i)Por descriminalizada a conduta do arguido, por ao caso caber a contraordenação prevista nos artigos 12.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, a invalidade, em razão da matéria, de todos os atos praticados no processo pelo Ministério Público e pelo tribunal a quo, determinando-se a extinção das medidas de coação e, consequentemente, ordenado o arquivamento do processo;
(ii)Quando assim se não entenda, mas sem conceder, por, além de não ser funcionário para efeitos penais e não se tratar de crime cometido no exercício de funções públicas, corrigida a qualificação jurídica do fato imputado ao arguido e, por via disso, declarada a invalidade de todos os atos de inquérito praticados, porquanto a investigação compete à 5.ª secção do DIAP de Lisboa e ordenada a redistribuição do processo por esta secção, revogando-se todas as medidas de coação, por uma outra não privativa da liberdade, porque, por um lado, está largamente excedido o prazo máximo da medida de coação de privação da liberdade, como outrossim se atenuaram as alegadas exigências cautelares;
(iii)Sem conceder e por dever do patrocínio, a assim se não entender, deve então ser revogada a medida de coação por uma outra não privativa da liberdade, designadamente por caução, e revogada/modificada a medida de coação de proibição de contactos, uma vez que os perigos invocados, inicialmente, atenuaram-se significativamente, destacando-se ser impossível o arguido voltar a cometer infrações idênticas às quais está indiciado e a possibilidade de perturbação do inquérito ser outrossim impossível, com o que farão costumada e esperada justiça.

3–Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 3277.

4–O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 3491 a 3501).

II–FUNDAMENTAÇÃO.

5–O presente recurso foi interposto da primeira parte do despacho de fls. 3095 a 3099, que se transcreveu, aquela que apreciou o requerimento do arguido que se encontra a fls. 3002 a 3010, no qual ele, ao abrigo do disposto nos artigos 122.º, n.º 1, 212.º, n.º 1, alíneas a) e b), 215.º, n.ºs 1, alínea a), e 8, e 217.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, pediu a declaração de invalidade de todos os actos praticados no inquérito, com o respectivo arquivamento e a consequente imediata extinção/revogação de todas as medidas de coacção impostas.
Significa isto que o arguido não recorreu da parte do despacho que, ao abrigo do artigo 213.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, procedeu ao reexame das medidas de coacção antes impostas.

6–De acordo com o n.º 1 do artigo 212.º do Código de Processo Penal «as medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a)Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b)Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.»
Se bem vemos as coisas, a fundamentação apresentada pelo arguido no seu recurso reporta-se essencialmente à transcrita alínea a), à situação de as medidas de coacção terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei, só a final sendo feita uma ligeira referência à ocorrência de factos novos que podem ter alterado as circunstâncias anteriormente verificadas.

Argumenta o recorrente, em síntese, que:
a)Desde 2013, a conduta que lhe é imputada não consubstancia a prática do crime de peculato, tendo a mesma sido descriminalizada;
b)Em função dessa descriminalização, o Ministério Público e o juiz de instrução são incompetentes para averiguar os factos e aplicar as correspondentes sanções;
c)Não tendo o arguido a qualidade de funcionário, nunca poderia ter praticado um crime de peculato;
d)A contra-ordenação ou mesmo o crime que pode ter cometido não admitem a imposição das medidas de coacção que lhe foram aplicadas.
Apreciemos então, pela ordem indicada, as questões suscitadas pelo recorrente.

7–Sustenta o arguido que a publicação da Lei n.º 22/2013, de 25 de Fevereiro, que estabelece o estatuto do administrador judicial, ao impor, no n.º 2 do seu artigo 12.º, o dever destes profissionais actuarem com absoluta independência e isenção, não podendo praticar quaisquer actos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados, descriminalizou qualquer comportamento que represente a violação desses mesmos deveres uma vez que no n.º 2 do artigo 19.º dessa lei qualificou uma tal violação como contra-ordenação.
Não vemos, salvo o devido respeito, que assista qualquer razão ao recorrente, desde logo porque as citadas disposições legais se limitam a estabelecer os deveres profissionais que impendem sobre os administradores judiciais, cuja violação a lei sanciona no plano administrativo e contra-ordenacional, em nada beliscando a responsabilidade criminal que sobre os mesmos possa impender.
De resto, os deveres de independência e isenção impostos por essa norma não esgotam minimamente o conteúdo dos bens jurídicos tutelados pela incriminação do peculato, que, para além da tutela da probidade e fidelidade dos funcionários, protege claramente interesses patrimoniais[3].
Não houve, por isso, qualquer derrogação da norma incriminadora que tenha gerado a descriminalização da conduta imputada ao arguido.

8–Preenchendo a conduta, simultaneamente, a factualidade típica do crime e da contra-ordenação verifica-se uma situação de concurso efectivo ideal a que é aplicável o disposto no artigo 20.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro[4].
Como afirma Faria Costa[5], «bem pode suceder que o mesmo facto constitua, simultaneamente, crime e contra-ordenação. Ora, nesta circunstância, como não podia deixar de ser, face ao indiscutível maior valor jurídico-penal implícito na definição do crime, impõe o legislador que o agente seja sempre punido a título de crime – vale por dizer: a norma mais densa absorve a norma menos densa – não obstante poderem ser-lhe aplicadas as sanções acessórias previstas na contra-ordenação (artigo 20.º do RGCO)».
Não vemos, salvo o devido respeito, que este entendimento infrinja, por alguma forma, a norma ou os princípios constitucionais invocados pelo recorrente.

9–Indiciando-se a prática de um crime de peculato e não apenas de uma contra-ordenação, fica prejudicada a pretensão do recorrente de que este tribunal considere que o Ministério Público e o juiz de instrução são incompetentes, em razão da matéria, para a prática dos actos que a cada um compete no âmbito deste processo penal.

10–Sustenta também o recorrente que a sua conduta nunca poderia integrar a prática do crime de peculato que lhe é imputado porque ele, enquanto administrador judicial, não detém a qualidade exigida pelo tipo incriminador.
Não tem o recorrente, também quanto a esta questão, qualquer razão. Independentemente da natureza privada da actividade exercida e da caracterização dos interesses prosseguidos pelo processo em que foi nomeado, o certo é que um administrador judicial, nomeadamente quando exerce no processo as funções de administrador da insolvência, desempenha uma função pública jurisdicional – alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal –, sendo até qualificado pelo artigo 1.º da Lei n.º 77/2013, de 21 de Novembro, como um auxiliar de justiça.
À mesma conclusão chega Damião da Cunha quando afirma que «[a] expressão “desempenhar actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional” quer pois abranger todo o conjunto de actividades (de que se destaca, primordialmente, a distinção entre actividade de gestão pública e de gestão privada) que estão associadas à função administrativa ou jurisdicional»[6]. Acrescenta o mesmo autor, um pouco mais à frente, na segunda parte da nota 30, que «nos crimes integrados no âmbito do capítulo referente ao peculato estão em causa agentes de gestão – no sentido de que praticam certos actos (p. ex. de cobrança de receita, que não envolvem “autoridade”), ou que têm a seu “cargo” negócios relacionados com a função pública (ou seja, negócios privados referentes a interesses de um órgão administrativo ou jurisdicional, a título próprio ou por delegação)».
O verbo “chamar”, acrescenta o mesmo autor, «deve ser entendido num sentido corrente, pretendendo abranger todas as hipotéticas formas por que alguém é habilitado a exercer funções públicas».
O recorrente é, por isso, para efeitos penais, um funcionário, que é a qualidade do agente exigida pela norma incriminadora do peculato.
Tal conclusão deriva claramente dos pertinentes normativos legais, não se encontrando qualquer fundamento para, a tal propósito, falar de interpretação extensiva, de lei interpretativa e da violação das normas e dos princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
Preenchendo a conduta do arguido a incriminação do peculato, afastada está a apreciação de outras incriminações alternativas, assim como caem por terra as objecções levantadas pelo recorrente ao preenchimento dos tipos de branqueamento de capitais e de fraude fiscal, que, de resto, de modo algum acarretariam os efeitos pretendidos pelo arguido.

11–Sendo imputada ao arguido a prática de um crime de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, e tendo sido declarada a especial complexidade do processo, decisão que, embora eventualmente ainda não transitada, foi recentemente confirmada por este Tribunal da Relação, o prazo da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação até ser deduzida acusação é de 1 ano – artigo 215.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal – prazo que ainda se não esgotou.
Improcede, por tudo isto, o recurso interposto pelo arguido.

12–Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto o n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais[7] e a Tabela III a ele anexa a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 6 UC.

III–DISPOSITIVO.

Face ao exposto, acordam os juízes da ...ª secção deste Tribunal da Relação em:
a)Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido E.M.G..
b)Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UC.



Lisboa, 12 de Outubro de 2016



(Carlos Rodrigues de Almeida)
(João Moraes Rocha)



[1]Acs. Relação do Porto, de 26.06.2013, no Processo n.º 48/10.7TAVLP.P1 e de 1-10-2014, no Processo n.º 9051/09.9TDPRT.P2, Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código Penal, págs. 889-890 e Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in Código Penal Anotado e Comentado, págs. 915-917, citados no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de
17.03.2015, no Processo n.º 29/08.OTAAVS:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005 f080b/e0546f90efd6066e80257e190038e213?OpenDocument
[2]Acs. RC de 20.06.2012, Proc. n.º 591/02.1JACBR.C1, no qual o arguido, liquidatário judicial, coloca igualmente em causa a sua qualidade de funcionário, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/967afe9464163b7e80257a32003b91 f8?OpenDocument.
[3]Ver, quanto aos bens jurídicos tutelados pela incriminação do peculato, CUNHA, Conceição Ferreira da, in «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 688, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in «Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 1199, e BARREIROS, José António, in «Crime de Peculato», Labirinto das Letras, Lisboa, 2013, p. 23 e ss.
[4]Por todos, ver ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in «Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 93.
[5]COSTA, José de Faria, in «Noções Fundamentais de Direito Penal», 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 34.
[6]CUNHA, José Manuel Damião da, in «O Conceito de Funcionário para Efeito da Lei Penal e a “Privatização” da Administração Pública», Coimbra Editora, Coimbra, 2008, em especial, p. 28 e 29
[7]Redacção dada pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro.