Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10486/18.1T8LRS.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: ACÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
CONSERVATÓRIA DO REGISTO PREDIAL
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.  O DL nº 273/2001, de 13.10, foi o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.
2.  Essa transferência de competências não afasta a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial, quer quando o requerente preveja que o requerido se vai opor à sua pretensão, quer quando o pedido, ponderada a causa de pedir, extravasa a mera ação registral.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 17.10.2018, A e esposa B, intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Loures, a presente ação para justificação judicial contra C e esposa D, pedindo que seja reconhecido e declarado que os AA. são os donos e legítimos possuidores das frações autónomas designadas pelas letras “B” e “E”, descritas na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob a ficha …/Caneças, inscritas na matriz predial urbana da freguesia da União das Freguesias de Ramada e Caneças sob o artigo matricial …, que adquiriram por usucapião, com efeitos reportados a 12.07.2002. Devendo, - ser ordenada a inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial de Odivelas, para reatamento do trato sucessivo por usucapião a favor dos AA. com efeitos reportados a 12.07.2002; - ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR; - ser ordenada a requalificação oficiosa dos registos, que contendam com a aquisição originária dos AA.; - ser ordenada a inscrição matricial a favor dos AA. por as terem adquirido em 12.07.2002, por usucapião, sem que possa ser exigido aos AA., o pagamento das execuções fiscais intentadas contra os RR. e das penhoras que impendem sobre as referidas frações autónomas, a favor da Autoridade Tributária.
Fundamentam a sua pretensão nos seguintes termos, em síntese:
Por contrato promessa de compra e venda, celebrado em 14.08.2001, os RR. prometeram vender aos AA. duas frações autónomas, livres de quaisquer ónus ou encargos: a fração autónoma designada pela letra “B”, a que corresponde a Loja B destinada a comércio, do prédio sito na Rua …, lote 1 A, …, em Caneças, descrita na CRP de Odivelas sob a ficha …/Caneças e inscrita na matriz sob o art. …-B, pelo preço de 8.000.000$00 (39.903,83€); e a fração autónoma designada pela letra “E”, a que corresponde o 2º andar esquerdo para habitação, do mesmo prédio, inscrita na matriz sob o art. …-E, pelo preço de 24.000.000$00 (119.711,50€).
A título de sinal e princípio de pagamento, os AA. pagaram aos RR., em 14.08.2001, a quantia de 5.000.000$00 (24.939,89€), devendo o remanescente ser pago no ato da escritura pública de compra e venda das frações autónomas prometidas vender livres de quaisquer ónus ou encargos, que seria efetuada no mais curto espaço de tempo.
Em 02.07.2002, por pretenderem fazer a escritura de compra e venda e entrar na posse dos imóveis, os AA. efetuaram o pagamento da SISA que era devida, e em 12.07.2002, como (de acordo com o que lhes foi informado pelo promitente vendedor marido) não fosse ainda possível realizar as escrituras de compra e venda, por os RR. não terem podido obter os distrates da hipoteca registada a favor da Caixa Económica Montepio Geral, os AA. procederam ao pagamento do remanescente do preço, tendo nessa mesma data (12.07.2002) sido entregues pelos RR. todas as chaves dos imóveis e conferida a tradição material aos AA. que entraram na posse dos imóveis, como se seus já fossem.
Tendo, mais tarde, sido entregue aos AA. pelos RR., o referido distrate da inscrição hipotecária, não foi celebrada a escritura pública de compra e venda por falta de disponibilidade dos RR.
Desde 12.07.2002 que, de forma pública e pacífica, os AA. têm a posse efetiva dos imóveis, tendo feito as alterações e obras que entenderam.
Acontece, porém, que sobre as frações incidem, pelo menos, dez penhoras, todas posteriores aos contratos promessa celebrados em 14.08.2001 e ao início da posse dos AA. em 12.07.2002.
Desde 12.07.2002, que os AA. têm a sua casa de morada de família na referida fração “E”, e exploram e retiram rendimentos para si e seu agregado familiar na fração “B”, para comércio, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja.
Os AA. tentaram contactar os RR. diversas vezes, com o intuito de conseguirem que estes procedessem ao pagamento das penhoras e procedessem à outorga das escrituras, o que não surtiu efeito.
Interpelaram-nos para cumprir, por carta, em 25.01.2017, tendo-se os RR. remetido ao silêncio, e agendada a escritura para 03.02.2017, e, posteriormente para 20.3.2017, mantiveram o incumprimento.
Conclusos os autos, em 25.10.2018, foi proferido o seguinte despacho: “Os AA. intentaram a presente acção para justificação de reatamento do trato sucessivo nos termos do art. 116º nº 2 do Cód. do Registo Predial, tendo peticionado o seguinte na parte relevante para a presente decisão: “- Ser reconhecido e declarado que os A.A. são os donos e legítimos possuidores das fracções autónomas designadas pelas letras “B” e “E”, descritas na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob a ficha …/Caneças, inscritas na matriz predial urbana da freguesia da União das Freguesias de Ramada e Caneças sob o artigo matricial …, que adquiriram por usucapião, com efeitos reportados a 12.07.2002. Devendo, - ser ordenada a inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial de Odivelas, para reatamento do trato sucessivo por usucapião a favor dos AA. com efeitos reportados a 12.07.2002. - ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR. - ser ordenada a requalificação oficiosa dos registos, que contendam com a aquisição originária dos AA.” Nos termos do art. 116º nº 2 do Cód. do Registo Predial, “Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respectivo titular, exigida pela regra do nº 2 do artigo 34º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo”, acrescentando o nº 3 deste art. 116º que “Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado”. Nos arts. 117ºB e segs. do mesmo Código prevê-se a tramitação do processo de justificação, que se inicia com a “apresentação do pedido em qualquer serviço de registo com competência para a prática de actos de registo predial” (nº1 do art. 117º-B), sendo que nos termos do art. 117-H nº 2, “Se houver oposição, o processo é declarado findo, sendo os interessados remetidos para os meios judiciais”. Se não houver oposição, o processo continua a correr termos na conservatória, sendo decidido pelo conservador, só havendo lugar à remessa dos autos para o tribunal de 1ª instância competente na área da circunscrição a que pertence a conservatória, no caso de recurso da decisão do conservador, como prevê o art. 117ºI nº 1. Este tipo de acção, que se configura como um processo especial, inicia-se assim na Conservatória do Registo Predial, tendo o art. 116º do Cód. do Reg. Predial na sua redacção actual deixado de prever a acção de justificação judicial. Daí que este juízo central cível seja absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção. Esta excepção é de conhecimento oficioso (art. 97º nº1 do C.P.C.). Nestes termos, indefere-se liminarmente a petição inicial (arts. 96º, al. a) e 99º nº1 do C.P.C.). Custas pelos AA. Notifique”.
Não se conformando com o teor deste despacho, apelaram os AA., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
A. Vem o presente recurso ordinário interposto, da sentença, que indeferiu liminarmente a petição inicial para justificação de reatamento do trato sucessivo, por o mui douto Tribunal a quo, considerar o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção.
B. Salvo o devido respeito, que é muito, os recorrentes, não podem concordar com a posição sufragada pelo tribunal de 1ª Instância, razão pela qual, interpõem recurso com efeito suspensivo de tal decisão, nos termos e com os fundamentos infra expostos.
C. A competência material determina-se de acordo com o pedido, os recorrentes, intentaram contra C e mulher, D uma acção para justificação judicial, com pedido de condenação dos RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. e a absterem-se de praticar ou omitir actos que pudessem turbar a posse dos AA, determinando-se para reatamento do trato sucessivo, a inscrição de aquisição a favor dos AA. por usucapião, com efeitos reportados a 12.07.2002, com concomitante requalificação oficiosa dos registos, que contendam com a aquisição originária dos AA. e cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR.
D. Pedindo a final que fosse reconhecido e declarado que os A.A. são os donos e legítimos possuidores das fracções autónomas designadas pelas letras “B” e “E”, descritas na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob a ficha …/Caneças, inscritas na matriz predial urbana da freguesia da União das Freguesias de Ramada e Caneças sob o artigo matricial …, que adquiriram por usucapião, com efeitos reportados a 12.07.2002.
E. Que fosse ordenada a inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial de Odivelas, para reatamento do trato sucessivo por usucapião a favor dos AA. com efeitos reportados a 12.07.2002; ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor dos RR. e ordenada a requalificação oficiosa dos registos, que contendam com a aquisição originária dos AA.
F. E, por último, mas não menos importante que, fosse ordenada a inscrição matricial a favor dos AA. por as terem adquirido em 12.07.2002, por usucapião, sem que pudesse ser exigido aos AA., o pagamento das execuções fiscais intentadas contra os RR e das penhoras que impendem sobre as referidas fracções autónomas, a favor da Autoridade Tributária.
G. A acção sub judice, não obstante na sua formulação ser uma acção especial hoje de competência das Conservatórias do Registo Predial, não é, contudo, exclusiva das mesmas, não tendo sido vedada a intervenção do Tribunal, como órgão de soberania que administra a Justiça em nome do Povo, neste tipo de acção.
H. Tanto mais que, o pedido formulado pelos AA., é um pedido cumulativo, parte que se encontra na competência da conservatória, mas uma outra parte, em que, apenas o Tribunal como órgão de soberania que é, pode proferir uma sentença que determine que a Autoridade Tributária, proceda à inscrição matricial a favor dos AA., sem que lhes possa exigir o pagamento das dívidas fiscais dos RR. C e mulher, D.
I. Decisão e sentença a proferir para a qual, a Conservatória é incompetente, não tendo poderes, nem legitimidade para poder declarar o Direito nesta asserção do pedido formulado pelos AA, razão pela qual se defende que, é o Tribunal, quem, in casu, tem competência para apreciar a presente acção especial.
J. O que é facto é que, o legislador não atribuiu competência exclusiva às Conservatórias do Registo Predial e notários para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião, nem retirou alguma matéria da competência dos Tribunais, para a atribuir a outras entidades, não judiciais ou jurisdicionais.
K. Preceitua o artigo 20º nº 1 da Constituição (CRP) que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
L. Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art. 202º nº 1 da CRP), incumbindo-lhes assegurar a defesa desses direitos e interesses e dirimir os conflitos (nº 2 desse artigo) e as suas decisões são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º nº 2 da CRP).
M. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras entidades (art. 211º nº 1 da CRP), e a todos é assegurado o acesso aos tribunais judiciais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
N. Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. poderem utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs).
O. No requerimento inicial do processo de justificação, o interessado «pede o reconhecimento do direito em causa» (nº 2), «para (o conservador) efectuar o registo ou registos em causa» (nº1). Quer isto dizer que, o pedido de reconhecimento do direito está limitado na sua eficácia pela finalidade que visa: a realização do registo. A tanto se resume o alcance do processo previsto no art. 117º-B do CRP.
P. O alcance das acções judiciais, próprias dos tribunais - é muito mais vasto - as decisões dimanam de órgãos de soberania com a dignidade constitucional que lhes é dispensada nos art. 20º e 202º e segs da CRP: sendo as suas decisões obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas, prevalecendo sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º nº 2 da CRP).
Q. Ora, o pedido dos AA não se resume a verem reconhecido o seu direito de propriedade com base na usucapião e ao cancelamento da 1ª inscrição, mas sim e também que cumulativamente, seja ordenada a inscrição matricial a favor dos AA. por usucapião, por terem adquirido as fracções autónomas em 12.07.2002, sem que possa ser exigido aos AA., o pagamento das execuções fiscais intentadas contra os RR. e das penhoras que impendem sobre as referidas fracções autónomas, a favor da Autoridade Tributária.
R. Tal pedido, vai muito para além do pedido de cancelamento da inscrição a favor dos RR. em virtude desse pedido de condenação, em nosso entender, o processo judicial não podia terminar com o indeferimento liminar por incompetência material como foi decidido pela 1ª instância.
S. Razão pela qual se defende e reconhecer como competente o Tribunal, devendo a petição inicial ter sido admitida e o processo prosseguir os seus ulteriores trâmites.
T. O recurso aos tribunais pressupõe - a existência de um direito que careça da intervenção daqueles - a fim de se evitar algum prejuízo relevante para o seu titular.
U. Em face das penhoras que impendem sobre as fracções autónomas a usucapir, e das dívidas fiscais dos RR., a AT impõe aos adquirentes o prévio pagamento das dívidas fiscais dos RR. e das penhoras que impendem sobre os imóveis objeto da presente ação, para proceder ao averbamento matricial a seu favor.
V. A Conservatória carece de competência para ordenar à Autoridade Tributária que proceda ao averbamento à inscrição a favor dos AA., pois quem tem legitimidade para aferir e dizer o Direito, são os Tribunais.
W. O interesse em agir decorre de um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar, emergente de um qualquer facto ou situação objectiva, susceptível de prejudicar o seu titular.
X. Razão pela qual, deve ser reconhecido e declarado que a competência material para a presente acção de justificação judicial, atendendo ao pedido cumulativamente formulado pelos AA, é dos Tribunais.
Terminam pedindo a revogação da sentença recorrida, e a sua substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos.
O recurso foi admitido na sequência de reclamação nos termos do art. 643º do CPC, tendo-lhe sido fixado o efeito meramente devolutivo.
Citados os RR. nos termos do nº 7 do art. 641º do CP, não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões dos recorrentes (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC), a única questão a decidir é se o tribunal cível é ou não competente, em razão da matéria, para tramitar e conhecer do presente processo.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O tribunal recorrido indeferiu liminarmente a presente ação por entender que a mesma configurava a ação especial de justificação de reatamento de trato sucessivo prevista no art. 116º do CRPredial que se inicia na respetiva Conservatória do Registo Predial, sendo, pois, o juízo central cível absolutamente incompetente para dela conhecer.
Sustentam os apelantes que, não obstante na sua formulação a ação em causa seja da competência da CRP, tal competência não é exclusiva desta, não estando vedada a intervenção do tribunal, nomeadamente, tendo em atenção os pedidos formulados, como acontece no presente caso, em que o peticionado extravasa a competência da CRP.
Apreciemos.
Dispõe o art. 116º do CRP (aprovado pelo DL. nº 224/84, de 6.07, na redação introduzida pelo DL. 273/2001, de 13.10), que “1 - O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 2 - Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do nº 2 do artigo 34º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 3 - Na hipótese prevista no número anterior, a usucapião implica novo trato sucessivo a partir do titular do direito assim justificado”.
Foi com a Lei nº 2049, de 6 de Agosto de 1951, que se iniciou uma viragem quanto à procura de um meio adequado de fazer corresponder a situação real da titularidade dos direitos de propriedade sobre os imóveis com a respetiva situação registral através do mecanismo da obrigatoriedade do registo predial [1].
A Lei nº 2049 criou novos expedientes extrajudiciais de suprimento da falta de determinados documentos exigidos para os casos de registo obrigatório (posteriormente tornados extensivos ao próprio registo facultativo pelo DL nº 40.603, de 18.5.1956), sob a forma de escritura de justificação notarial.
O CRP de 1959 veio prever a possibilidade de justificar direitos sobre imóveis mediante o recurso a dois meios alternativos: extrajudicial, mediante a celebração de escritura pública, e judicial, mediante ação especial de justificação judicial, nele especialmente regulada (arts. 199º e ss.), sistema que se manteve, no essencial no CRP de 1967 (aprovado pelo DL nº 47.611, de 28.3.1967), no qual a justificação judicial ficou regulada nos (arts. 205º e ss.).
Não obstante se tratar de um processo especial, a justificação judicial nunca foi regulada no CPC.
No CRP aprovado pelo DL nº 224/84, de 6-07, o legislador optou por deixá-lo de fora, considerando que ele deveria ser inserido no local próprio do CPC, mas, como não terá, então, sido considerado oportuno alterar este diploma, foi publicado um diploma autónomo, o DL nº 284/84, de 22.08, de carácter considerado de transitório, sem grandes alterações no regime que até então era consagrado.
O DL nº 312/90, de 2.10, regulou o processo especial de suprimento, criando,  pela primeira vez, um procedimento especial a correr pelas conservatórias do registo predial com vista ao suprimento da falta de títulos necessários ao registo, a que os interessados poderiam recorrer em alternativa ao processo judicial e à escritura de justificação notarial [2].
O atual processo de justificação a correr pelos serviços de registo predial foi instituído pelo DL nº 273/2001, de 13.10.
E foi este, de facto, o primeiro diploma a instituir a transferência dos tribunais para as conservatórias das competências relativas aos processos de carácter eminentemente registral.
Consta do respetivo preâmbulo que “O presente diploma opera a transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os próprios conservadores de registo, inserindo-se numa estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam verdadeiro litígio. Trata-se de uma iniciativa que se enquadra num plano de desburocratização e simplificação processual, de aproveitamento de atos e de proximidade da decisão, na medida em que a maioria dos processos em causa eram já instruídos pelas entidades que ora adquirem competência para os decidir, garantindo-se, em todos os casos, a possibilidade de recurso. … No âmbito do registo predial, comercial e, por remissão, automóvel, o processo de justificação, anteriormente efetuado notarial ou judicialmente ou pelo conservador, passa a ser, em regra, decidido pelo próprio conservador, mantendo-se paralelamente o processo de justificação notarial previsto na lei do emparcelamento e o processo de justificação administrativa para inscrição de direitos sobre imóveis a favor do Estado.”.
A questão que se coloca é a de saber se essa transferência de competências afasta, de todo, a possibilidade de nos tribunais judiciais correr a referida ação de justificação judicial.
Afigura-se-nos que não.
Vicente J. Monteiro, em Desjudicialização da Justificação de Direitos sobre Imóveis, disponível no sítio do “CENoR”, www.fd.uc.pt/cenor, págs. 14/15, escreve que “…, as dúvidas começaram a surgir após a publicação do referido Decreto-Lei nº 273/2001, porquanto, além de outras normas legais, incluindo o citado Decreto-Lei nº 312/90, foi revogado o Decreto-Lei nº 284/84, de 22 de agosto, que era, como vimos o diploma que regulava o processo especial de justificação judicial. … Contudo, é de questionar se, no caso de o interessado que pretende justificar o seu direito contra determinado titular inscrito, que já sabe que se vai opor à sua pretensão, eventualmente por questões de animosidade pessoal, pode ou não instaurar ação declarativa, nomeadamente de reivindicação, invocando a usucapião. É que, se ele começar por instaurar um processo de justificação no registo predial, já se sabe que é necessário proceder à notificação do titular inscrito, e se este se opuser o conservador deve declarar o processo por findo, nos termos do nº 2 do art. 117º-H, restando-lhe o recurso aos meios judiciais. Por isso, entendo que a invocada incompetência dos tribunais deve ser avaliada com a devida parcimónia, devendo evitar-se atos e procedimentos inúteis no registo, quando já se sabe que vai haver algum tipo de oposição, devendo, nesse caso, instaurar-se desde logo a competente ação declarativa, revelando o interessado na petição os factos em que assenta o seu direito e pedindo que o réu seja notificado para contestar”.
Ou seja, prevendo o requerente que o(s) requerido(s) se vai opor à sua pretensão, nada obstará a que lance logo mão da respetiva ação judicial.
Não será a situação em causa, uma vez que os apelantes alegam na PI que estão na posse dos imóveis desde 12.7.2002 de forma pública e pacifica, portanto, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos requeridos.
Também no Ac. da RC. de 7.9.2010 (Virgílio Mateus), em www.dgsi.pt, se sumariou que: “1. - Em virtude do direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e em virtude de a todo o direito corresponder a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, sem que haja lei a determinar o contrário, segue-se que a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância de os AA. terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs.) para efeitos de registo. 2. É da competência material dos Tribunais, e não da Conservatória do Registo Predial, uma ação em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, e cumulativamente o pedido de reconhecimento de que o prédio comprado é diverso daquele em relação ao qual obtiveram a inscrição de aquisição”.
Os tribunais judiciais são tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, conforme dispõe o art. 211º, nº 1 da Constituição.
A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo A. na petição inicial, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e, também, o pedido formulado, não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas do autor, como resulta do art. 5º, nº 3 do CPC [3].
Referia o Prof. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 que “a competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (sublinhado nosso).
Ora, ponderando o que supra se deixou escrito, os pedidos formulados pelos Requerentes, nomeadamente, o expresso em último lugar [4], tendo em conta a factualidade alegada, afigura-se-nos estarmos perante uma situação em que àqueles será lícito recorrer aos tribunais judiciais para definir o seu alegado direito, com força de caso julgado.
Em conclusão, procede a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, declarando-se competente o juízo central cível para conhecer a presente ação, que deverá prosseguir os seus termos.
Sem custas.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida, declarando-se competente o juízo central cível para conhecer a presente ação, que deverá prosseguir os seus termos.
Sem custas.
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Lisboa, 2021.01.05
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
Carla Câmara
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[1] Obrigatoriedade que, de facto, só viria a ser instituída com a publicação do DL nº 40.603, de 18.5.1956, e apenas relativamente aos prédios situados nos concelhos onde fosse entrando em vigor o regime de cadastro geométrico da propriedade rústica, cujo levantamento foi então iniciado.
[2] Conforme consta do preâmbulo deste diploma, “A extensa destruição de atos do registo predial provocada pelos recentes incêndios ocorridos nas Conservatórias de São João da Madeira e de Ponte de Lima aconselha a que se adotem medidas de exceção para essas e para situações semelhantes, em ordem a assegurar, dentro do possível, a fluidez do comércio jurídico. Aproveita-se a oportunidade para, no âmbito da reforma que se vem empreendendo dos serviços dos registos e do notariado, introduzir medidas relevantes no sentido da desburocratização dos serviços, designadamente ao criar-se um processo especial de suprimento da prova do registo e ao estatuir-se sobre a simplificação do registo em caso de reatamento do trato sucessivo. Trata-se de uma medida de inegável relevância, já que torna a relação entre o utente e a Administração, no caso a competente conservatória do registo predial, mais simplificada. Na verdade, e sobretudo naquelas áreas do País onde se processaram, e ainda processam, inúmeras transações sem terem sido acompanhadas de quaisquer formalidades, era, por vezes, extremamente complexo para o utente fazer a prova do reatamento do trato sucessivo. Com a alteração ora introduzida, sem se pôr em causa a segurança que o registo deve possuir, institui-se um mero procedimento administrativo, a cargo do respetivo conservador, suficientemente expedito, mas rodeado de todas as garantias, nomeadamente a possibilidade de recurso para os tribunais, com vista ao reatamento do trato sucessivo”.
[3] Neste sentido cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 14.05.2009, P. 09S0232 (Sousa Peixoto), in www.dgsi.pt.
[4] E independentemente da sua procedência ou improcedência.