Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8324/2007-8
Relator: SILVA SANTOS
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: No incidente de incumprimento de prestação mensal de alimentos contra o pai do menor em que é reclamado o pagamento pelo IGFSS se se tiver de imputar ao Fundo de Garantia a sua responsabilidade deve este pagar tão somente as prestações vencidas desde o momento em que foi requerida a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
(FSS)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA – SECÇÃO CÍVEL:

I.
. ……, mãe do menor .…… deduziu, no tribunal judicial das Caldas da Rainha, incidente de incumprimento de prestação mensal de alimentos contra o pai do menor, .…….,

Afirma que, desde Março de 2005, deixou de contribuir com a mensalidade que ficou estipulada em acordo homologado por sentença nos autos de regulação do poder paternal apensos.

Notificado o requerido pugnou pela improcedência do presente incidente de incumprimento.

Foi solicitado relatório social acerca das condições sócio-económicas do requerido, o qual se mostra junto aos autos de fls. 25 a 28.

Foi realizado o inquérito a que alude o artigo 3.°, n.° 3, da Lei n.° 75/98, de 19 de Novembro (cfr. fls. 35 a 42).

Os autos foram com vista, tendo o Ministério Público promovido a aplicação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.

II.
Após saneamento processual, fixaram-se os seguintes factos:

1. O menor F… nasceu em 11 de Outubro de 1990;
2. No âmbito dos autos de regulação do poder paternal aos quais os presentes autos se encontram apensos, foi homologado por sentença, em 24 de Fevereiro de 1999, acordo celebrado entre a Mãe e o Pai do ……., no qual ficou estabelecido que o Pai contribuiria mensalmente com a quantia de 25.000$00 para o menor;
3. O Pai do menor pagou a última prestação de alimentos devida ao seu filho em Março de 2005;
4. O pai do menor encontra-se desempregado desde Abril de 2005, tendo recebido subsídio de desemprego no valor de 334,32 € até Outubro de 2006;
5. O agregado familiar do requerido é composto por si, pela sua companheira, pelos dois filhos menores de ambos e pelo pai da sua companheira;
6. As despesas mensais do agregado familiar do requerido ascendem ao montante de 58 €, sendo as mesmas suportadas pelo seu sogro, uma vez que a sua companheira se encontra, também, desempregada;
7. O agregado familiar da mãe do menor é composto por esta, pelo seu marido, pelo ……… e pelas duas filhas menores de
Tribunal Judicial da Comarca de Caldas da Rainha
Processo n.° 30057-A/1998
8. O agregado familiar da mãe do F… reside em casa arrendada, unifamiliar, em bom estado de conservação, possui dois quartos sala com cozinha incorporada e casa de banho;
9. A mãe do menor e o seu marido auferem mensalmente o montante médio de 770 €, sendo as despesas fixas mensais computadas em cerca de 334 E.

III.
E, face a tais factos, decidiu-se fixar em 125 € (cento e vinte e cinco euros) a prestação mensal a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, a título de alimentos devidos ao ………, a qual é devida desde Junho de 2005.

IV.
Desta decisão recorre o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pretendendo a alteração da decisão com os seguintes fundamentos:

•          1° A douta sentença recorrida interpretou e aplicou de forma errónea, ao caso sub judice, o art°1° da Lei 75/98 de 19/11 e o art° 4° n°s 4 e 5 do Dec-Lei n° 164/99 de 13 de Maio;
•          2° Com efeito, o entendimento do douto Tribunal a quo, de que no montante a suportar pelo FGADM devem ser abrangidas as prestações já vencidas desde Junho de 2005 e não pagas pelo progenitor (judicialmente obrigado a prestar alimentos) não tem, salvo o devido respeito, suporte legal;
•          3° O Dec-Irei n° 164/99 de 13 de Maio é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações;
•          4° No n° 5 do art° 4 do citado diploma, é explicitamente estipulado que "o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações,
por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, nada sendo dito quanto às prestações em divida pelo obrigado a prestar alimentos;
•          5° Existe uma delimitação temporal expressa que estabelece o momento a partir do qual o Fundo deve prestar alimentos ao menor necessitado;

•          6° Não foi intenção do legislador dos supramencionados diplomais legais, impor ao Estado, o pagamento do débito acumulado pelo obrigado a prestar alimentos;
•          7° Constituiu, pelo contrário, preocupação dominante, nomeadamente do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma, evitar o agravamento excessivo da despesa pública e um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa;
•          8° A afectação de recursos públicos escassos exige rigor e controlo adequado.
•          9° Tendo presente o preceituado no art° 9 do Código Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado, apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo        Tribunal dentro de determinados parâmetros art° 3° n°3 e art° 4° n° 1 do Dec-Lei 164/99 de 13/5 e art° 2° da Lei 75/98 de 19/11;
•          10° A prestação que recai sobre o Estado é, pois, urna prestação autónoma, que não visa substituir definitivamente a obrigação de alimentos do devedor, mas, antes, proporcionar aos menores a satisfação de uma necessidade actual de alimentos, que pode ser diversa da que determinou a primitiva prestação;
•          11° O FGADM não garante o pagamento da prestação de alimentos não satisfeita pela pessoa judicialmente obrigada a prestá-los, antes assegurando, face à verificação cumulativa de vários requisitos, o pagamento de uma prestação "a forfait" de um montante por regra equivalente - ou menor - ao que fora judicialmente fixado.
•          12° Só ao devedor originário é possível exigir o pagamento das prestações já fixadas, como decorre do disposto no art° 2006 do CC, constatação que é reforçada pelo disposto no art° 7 do Dec-Lei 164/99 ao estabelecer que a obrigação principal se mantém, mesmo que reembolso haja a favor do Fundo,
•          13°      Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação de alimentos fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito dó Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal; a última visa assegurar, no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência;
•          14° Enquanto o art° 2006 do Código Civil está intimamente ligado ao vínculo familiar - art° 2009° do CC – e dai que quando a acção é proposta, já os alimentos seriam devidos, por um princípio de Direito Natural, o Dec-lei 164/99 "cria" uma obrigação nova, imposta a uma entidade que antes da sentença, não tinha qualquer obrigação de os prestar.
•          15° Muito bem decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – agravo n° 1386/01 de 26-06-01- no sentido de p Estado não responder pelo débito acumulado do obrìgado a alimentos tratando-se de prestações de diversa natureza. No mesmo
sentido, entre outros, os Acórdãos citados no ponto 46 das presentes alegações.
•          16° Não colhe o argumento de que o menor não pode ficar à mercê das contingências do processo e seu arrastamento pelos Tribunais, porquanto, como é do conhecimento geral, no entretanto, e enquanto o processo se encontra pendente do Tribunal, a verdade é que alguém tem de alimentar o menor, sob pena de este não sobreviver.
•          17° O pagamento das prestações relativas ao período anterior não visaria propriamente satisfazer as necessidades presentes de alimentos a menor, constituindo, antes, um crédito de quem, na ausência do requerido, custeou unilateralmente (ao longo do anos) a satisfação dessas necessidades.
•          18° O Estado substituiu-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida por este, mas para assegurar os alimentos de que o menor necessita; para que este não volte a ter frio, não volta a ter fome (e não para evitar que ele tivesse frio ou fome, pois tal é impossível, Já passou_ E tarde de mais)_
•          19° Daí a necessidade de produção de prova sobre os elementos constantes da lei n° 75/98 de 19 de Novembro e do Dec-Lei. n° 164/99 de 13 de Maio, que o Tribunal deve considerar na fixação da prestação a efectuar pelo estado, prestação essa que não é necessariamente equivalente à que estava em dívida pelo progenitor.
•          20° O legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tomasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura sócio-económica já então perfeitamente delineada;
•          21 ° Há ainda que salientar que as atribuições de cariz social do Estado não se esgotam no FGADM, o qual
constitui uma ínfima parte das mesmas, sendo certo que a todas o Estado tem de dar satisfação.
•          22° Os diplomas em apreço apenas se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva – art° 12° do Código Civil;
•          23° Não pode proceder-se à aplicação analógica do regime do art° 2006, dada a diversa natureza das prestações alimentares.
•          24° O FGADM somente deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações fixadas e devidas a partir da prolação da sentença judicial, e não pelo pagamento do débito acumulado do obrigado a alimentos, a partir da data da proposição da acção.
•          25° O que se entende facilmente se atentarmos na finalidade da criação do regime instituído pelos supra citados diplomas legais, que é o de assegurar (garantir) os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos.

Termos em que deve ser considerado procedente o presente recurso de agravo e, consequentemente, revogada a douta sentença recorrida, devendo ser substituída por outra decisão, na qual o FGADM do IGFSS seja obrigado a efectuar o pagamento das prestações apenas a partir do mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal

Foram apresentadas contra alegações pelo M. P. defendendo-se a correcção da decisão recorrida e assim se entendendo que o recurso não merece provimento.

IV.
É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões contidas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684. 3 e 690.1 do CPC.

Face às conclusões das alegações temos que o objecto do recurso se resume:
    • A questão a apreciar neste recurso consiste em saber se a prestação a suportar pelo Fundo da Garantia de Alimentos Devidos a Menores se inicia quando a pessoa obrigada judicialmente a prestar alimentos deixou de os satisfazer ou, pelo contrário, se o seu início se verifica após notificação do Fundo nesse sentido ou, eventualmente, noutro momento?

V.
A questão tem sido discutida na jurisprudência, sendo inúmeros os processos existentes em dissemelhante sentido. [2]

Como tal, também diferentes têm sido as conclusões alcançadas.

Por isso, sinteticamente, retém-se:

O artigo 3°, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei n° 164/99 de 1/5, determina que o Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao efectivo cumprimento da obrigação, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189° do Decreto-Lei n° 314/1978, de 27 de Outubro.

Nos termos do artigo 4º, nº 5 do citado Decreto-Lei nº 164/99, o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não se aludindo a quaisquer prestações em dívida.

Por seu turno, preceitua o artigo 2º, da Lei nº 75/98, de 19/11, que as prestações atribuídas nos termos desta lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4UC e, que para determinação do montante a fixar, se atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.

A finalidade da criação do regime do Fundo é o de assegurar/garantir os alimentos devidos a menores e não o de substituir a obrigação alimentícia que recai sobre o obrigado a alimentos, que em princípio são os pais, sendo, por isso, a responsabilidade do Fundo residual, só podendo ser accionada em condições muito específicas.

Sendo residual, obviamente, que tal responsabilidade é autónoma da do primitivo devedor.

Sendo diferente e autónoma pode também ser distinta quanto ao seu montante.

E quanto ao momento em que é devida, se se tiver de imputar ao Fundo de Garantia a sua responsabilidade?

O fundamento invocado pelo recorrente - no n° 5 do art° 4 do citado diploma, é explicitamente estipulado que "o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do Tribunal, nada sendo dito quanto às prestações em divida pelo obrigado a prestar alimentos - não parece decisivo.

Aqui se contém o modo de regulamentar e “obrigar” o «pagamento», mas não determina o seu “montante” ou sequer o valor das dívidas já vencidas.

Face ao disposto no art. 2006 do C.C. «os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo no disposto no artigo 2273º».

O devedor a ter em consideração aqui é o primitivo devedor que não o Fundo.

Repare-se que o Fundo não foi convocado para o incidente e não teve participação de mérito no processo.

Só teve conhecimento da sua «condenação» no momento em que foi notificado da decisão.

Como conciliar então o conteúdo das citadas disposições legais e a própria decisão.

«O regime do artigo 2006.º do Código Civil não decorre imediata e necessariamente do facto de se reconhecer que outra entidade passa também a assumir o crédito de alimentos que o obrigado judicialmente não cumpriu. A lei, posto que reconheça que essa entidade se sub-roga, pelo cumprimento, na posição do credor de alimentos, pode fixar um quadro de substituição que limite no plano quantitativo a intervenção do terceiro. Ou seja, o regime do artigo 2006.º do Código Civil pode ser afastado e é o que sucede quando a lei impõe a substituição do devedor limitada aos créditos vencidos após requerimento de intervenção do Fundo na base de interpretação que se acolhe pelas razões anteriormente indicadas[3].

Por outro lado, há que ter em consideração o momento em que, jurisdicionalmente, se entende a convocação de outrem para assunção de garantia, independentemente de, na altura, se assumir de modo irreversível que tal garantia é devida juridicamente.

Nesta perspectiva-se, entende-se mais consentânea com a realidade e os diversos interesses que… “no caso vertente, deve pagar tão somente as prestações vencidas desde o momento em que foi requerida a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores»[4].

Ora, na sentença consta que… o Ministério Público promoveu a aplicação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.

Constata-se que tal pedido ocorreu em 12/02/07 (cfr. fls. 43).

Assim sendo, deve ser pois a partir desse momento, que se deve considerar o início do pagamento das prestações devidas a efectuar pelo Fundo de Garantia.

Nessa medida, procedem, ainda que de forma parcial, as conclusões do recorrente, o que determina a procedência parcial do recurso.

VI.
Deste modo, pelo exposto, na procedência parcial do agravo, revoga-se a decisão impugnada na parte correspondente, fixando-se o momento a partir do qual é devido pagamento da quantia em questão pelo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, na data em que foi requerida a sua intervenção para o efeito, no caso, a partir de 12/02/07, mantendo-se no mais.

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 10.04.08

Silva Santos
Bruto da Costa
Catarina Arelo Manso
_____________________________________________________
[1] Proc. Nº  8324-07 Agravo
[2] Cfr. as inúmeras decisões referidas pelo recorrente nas respectivas alegações e as demais inseridas na bse de dados do M.J. – dgsi.
[3] Ac. de 13/12/07 deste Tribunal e secção por nós subscrito, relator Salazar Casanova, disponível na base de dados do M. J. – dgsi.
[4]  ibidem.