Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9085/2007-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
COMINAÇÃO
SUBSIDIARIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Uma vez que a incriminação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal tem carácter subsidiário, a autoridade ou o funcionário só podem fazer a cominação aí prevista quando o legislador não tenha estabelecido expressamente que o comportamento deve ser sancionado diversamente, seja por uma outra incriminação, seja como um ilícito de diferente natureza.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

1 – O arguido (C) foi julgado no 4º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada e aí condenado, por sentença de 30 de Março de 2007, como autor de um crime de desobediência simples p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal na pena de três meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no montante global de € 450,00.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:

1. «No dia 28 de Fevereiro de 2007, pelas 14h30m, na Canada Grande, a P.S.P. apreendeu o veículo de matrícula QG-...-84, propriedade do arguido, por este transitar sem que estivesse regularizado o respectivo registo de propriedade ou titularidade do documento de identificação;
2. Aquando da apreensão o agente da P.S.P. nomeou o arguido fiel depositário, comunicando-lhe a obrigação de não utilizar o veículo ou alienar por qualquer forma e que a utilização ou alienação do veículo “o fará incorrer no crime de desobediência”;
3. No dia 06-03-2007, pelas 22h15m, o arguido circulava com o referido veículo no Largo do Poço Velho, em São Roque, concelho de Ponta Delgada;
4. O arguido sabia que ao conduzir o veículo nas condições descritas em 3), desrespeitava uma ordem legítima emanada de autoridade competente, que lhe foi devidamente comunicada;
5. Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que não podia circular com o referido veículo enquanto este se encontrasse apreendido e mantivesse a qualidade de fiel depositário;
6. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
7. O arguido é sondista; no exercício desta actividade aufere cerca de € 104,00 semanais; vive com a mãe, que é doméstica; contribui com cerca de € 150,00 mensais para as despesas do agregado familiar; tem o 9º ano de escolaridade;
8. O arguido foi condenado em 26.04.2004 pela prática em 25.04.2004, de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 348º, n.º 1 e 2, do Código Penal, por referência ao art. 22º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12.02, na pena de 60 dias de multa».

2 – No dia 24 de Abril de 2007, o Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. «Estando a actividade policial sujeita aos princípio da legalidade estrita das medidas de polícia, previsto no art. 272.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, os agentes da Polícia de Segurança Pública apenas podem dar ordens ou determinar proibições aos cidadãos nas situações enquadradas nas suas competências específicas e nos termos expressamente previstos na lei, constituindo vício de incompetência dar ordens ou determinar proibições sobre matérias incluídas na competência de outros órgãos públicos e vício de violação de lei dar ordens ou determinar proibições em situações não previstas nas normas legais;
2. Devem, ainda, as medidas de polícia e as ordens dos agentes policiais em que se traduzem estas medidas, como todos os actos públicos potencialmente lesivos dos direitos fundamentais, estar sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos;
3. Em obediência a estes princípios e ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal, a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º, do C.P., conforme já era reconhecido na redacção do art. 188.º do Código Penal de 1886, tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou a ordens e proibições concretas determinadas por órgãos ou agentes da administração pública, nos quais se enquadra a actividade dos agentes fiscalizadores do trânsito, nestas se enquadrando as normas que prevêem a aplicação de uma coima, sanção contra-ordenacional, para a desobediência a ordens ou proibições relativas à legislação rodoviária,
4. Nomeadamente a contra-ordenação prevista no art. 161.º, n.º 7, do Código da Estrada, que pune com coima de 300 € a 1500 € quem conduzir veículo automóvel cujo documento de identificação tenha sido apreendido, situação a que se subsume a condução de veículo automóvel apreendido nos termos do art. 162.º, n.º 1, do Código da Estrada, uma vez que a alínea e) do n.º 1 do art. 161.º do Código da Estrada prevê a apreensão dos documentos do veículo quando este for apreendido;
5. A própria evolução da legislação rodoviária sobre a apreensão e imobilização de veículos por violação deste tipo de normas legais, desde o Decreto-Lei n.º 110/90, de 3 de Abril – que punia a violação da imobilização do veículo com a desobediência qualificada -, passando pela Lei n.º 63/93, de 21 de Agosto, - que previa a revisão ou revogação de normas penais incriminadoras relativas à violação de normas sobre o trânsito -, passando pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio – Código da Estrada publicado ao abrigo da Lei n.º 63/93 e no qual se previa a revogação da legislação que estivesse em contradição com o novo Código da Estrada, prevendo este, no art. 162.º, n.º 6, a punição com coima para quem conduzisse veículo cujo livrete tenha sido apreendido e previa, ainda, a perda do veículo a favor do Estado se o registo de propriedade não fosse regularizado no prazo de 90 dias – até ao Código da Estrada actual, publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, - que mantém basicamente o regime do Código da Estrada de 1994 -, permite concluir que existiu um movimento de descriminalização das sanções às normas rodoviárias, as quais permitiram a transformação de muitas situações tipificadas como crime de desobediência em contra-ordenações;
6. Excepto nos casos em que o legislador expressamente tipificou determinadas actuações como desobediências, e não foram poucas – arts. 138.º, n.º 2, 152.º, n.º 3, 154.º, n.º 2, 155.º, n.º 4, 160.º, n.º 3, (situações estas relativas ao cumprimento de decisões ou de situações relacionadas com a condução com álcool, que podem colocar em grave perigo os restantes utentes da via) - todas as violações de normas previstas no Código da Estrada – de carácter meramente administrativo - são puníveis com coimas, nomeadamente no caso em que o veículo tenha sido bloqueado e removido, estando materialmente impossibilitado de circular, e alguém, que não a autoridade competente, desbloquear o mesmo (art. 164.º, n.º 5, do CE);
7. Podemos, desta feita, concluir que abrir a possibilidade de o arguido (C) ser punido com uma pena privativa da liberdade, através da norma penal em branco prevista no art. 348.º, n.º 1, al. b), do C.P. - por meio da cominação do agente fiscalizador do trânsito - numa situação que materialmente não justifica tal compressão dos direitos fundamentais do arguido e para a qual o próprio ordenamento jurídico  prevê outras formas de resolver o problema da desconformidade do registo de propriedade automóvel, constitui uma clara violação do art. 18.º, n.º 2, do C.P..
8. Ao assim não entender, o Tribunal Singular violou os normativos constitucionais e legais acima referidos, os quais, interpretados da forma descrita, deveriam ter levado à absolvição do arguido (C) da prática, também, do crime de desobediência, pelo que a douta sentença deve ser substituída por acórdão deste Superior Tribunal que, absolvendo o arguido faça a necessária justiça».

3 – Esse recurso foi admitido em 7 de Maio de 2007 (fls. 74).
4 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do Ministério Público.
O processo foi remetido a este tribunal no dia 12 de Outubro de 2007 (fls. 78).

5 – Neste tribunal, a sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado no dia 23 de Outubro, apôs nele o seu visto.

6 – Realizada a audiência e produzidas as alegações orais, cumpre apenas apreciar e decidir se a conduta do arguido, que o tribunal considerou assente, constitui o crime de desobediência pelo qual ele foi condenado na 1ª instância.

II – FUNDAMENTAÇÃO

7 – A questão colocada pelo recorrente é simples e, por isso, apenas justifica uma resposta breve.
De acordo com o n.º 1 do artigo 348º do Código Penal, «quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) …
b) na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
Poderia, por isso, pensar-se que nada obstava à punição do arguido por um tal crime.
Não é, porém, isso que acontece uma vez que, dado o carácter subsidiário desta incriminação, a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra[1].
Ora, no caso concreto, tendo a apreensão do veículo tido por base o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 162º do Código da Estrada e implicando ela, de acordo com a alínea e) do n.º 1 do artigo 161º do mesmo diploma, a apreensão do documento de identificação do automóvel[2], a condução do veículo nessa situação constitui contra-ordenação e é sancionada com uma coima de 300 a 1500 € (n.º 7 do mesmo artigo 161º)[3].
Por isso, não podia o agente da autoridade efectuar uma tal cominação[4] e não deveria, consequentemente, o arguido ter sido punido pela prática de um crime de desobediência.
Daí que o recurso interposto pelo Ministério Público não possa deixar de proceder.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público absolvendo o arguido (C) do crime pelo qual tinha sido condenado na 1ª instância.
Sem custas.
²
Lisboa, 5 de Dezembro de 2007
 (Carlos Rodrigues de Almeida)
 (Horácio Telo Lucas)
(Pedro Mourão)
 (João Cotrim Mendes – Presidente da secção)
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[1] Ver, neste mesmo sentido, MOTA, José Luís Lopes da, in «Crimes contra a Autoridade Pública», in «Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal», Volume II, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, p. 437.
[2] Ou do «certificado de matrícula», criado pelo Decreto-Lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro, diploma posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 85/2006, de 23 de Maio.
[3] A esta mesma conclusão chega Lopes da Mota, ob. cit. p. 443.
[4] Não se pode deixar de assinalar que a análise do auto de fls. 7, que na sentença se indica como prova da cominação efectuada pela autoridade policial, nos deixa dúvidas quanto à efectiva verificação deste acto uma vez que no campo pré-impresso não foi colocada qualquer cruz no local próprio e os espaços em branco respectivos não foram preenchidos com os elementos de identificação do arguido.