Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
582/18.0YRLSB-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
NULIDADE DE PATENTE
RESTRIÇÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I O tribunal arbitral necessário previsto na Lei 62/2011 é competente para apreciar, por via da dedução de excepção peremptória, a questão da nulidade da patente ou Certificado Complementar de Protecção relativa a medicamento.

II Embora o Tribunal Constitucional reconheça que nem toda a restrição ao princípio do contraditório implica, necessariamente, uma violação do artigo 20.º da Constituição, acaba por concluir que a norma constante do art.º 35.º do CPI revela-se excessiva porquanto prejudica de modo desproporcionado o direito à defesa do requerente de AIM. Termos em que deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da proibição de indefesa (artigo 20.º da Constituição em conjugação com o seu 18.º, n.º 2).

SUMÁRIO: (elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO:


MERCK SHARP & DOHME, CORP. intentou acção arbitral necessária contra :
ACTAVIS GROUP PTC, ambas melhor identificadas nos autos.

A Demandante invocou ser titular da patente europeia n.º 720 599 (EP’ 720 599) e do CCP 150 e do CCP 189, concedidos tendo por patente base a já referida EP 720599. Como titular desses direitos de propriedade industrial obteve autorização de introdução no mercado (AIM) do medicamento de referência EZETROL, passando esse medicamento a ser comercializado em Portugal. Sucede que a Autora teve conhecimento que a Ré requereu autorizações de introdução no mercado (AIMs) para medicamentos genéricos Ezetimiba + Sinvastatina e genéricos Ezetimiba, princípios activos protegidos pela patente de que a Autora é titular.

Vem, pois, a Demandante pedir, designadamente, a condenação da Demandada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer qualquer medicamento genérico contendo Ezetimiba e  Ezetimiba + Sinvastatina.
                             
A Demandada apresentou contestação na qual requereu a suspensão dos autos, nos termos do disposto no art.º 272.º do CPC ou que a acção seja julgada improcedente e a Demandada absolvida de todos os pedidos.

A Demandada fundamenta o seu pedido de suspensão em duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, no facto de, não obstante ter requerido o AIM, declarar que não irá iniciar a comercialização dos seus medicamentos genéricos antes da caducidade do CCP 150 (em 17/04/2018).
Em segundo lugar, na circunstância de a invalidade do CCP 189, por falta de preenchimento das condições estabelecidas no art.º 3.º, alíneas a) e c) do regulamento CCP ter sido invocada em duas acções que se encontram pendentes no 1º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual, a saber: (i) processo n.º 216/16.8YHLSB, intentado pela TEVA PHARMA – PRODUTOS FARMACÊUTICOS LDA e (ii) processo 281/17.0YHLSB, intentada pela SANDOZ A/S e SANDOZ FARMACÊUTICA; LDA. Na perspectiva da Demandada, a pendência de uma acção declarativa de nulidade do CCP 189 constitui uma questão prejudicial relativamente àquela que é objecto do presente processo.

A Demandada coloca ainda em causa o objecto da presente acção arbitral por considerar que o Tribunal apenas se pode pronunciar sobre pedidos que tenham relação com as AIMs em apreço nos presentes autos e não também quaisquer medicamentos genéricos contendo os ingredientes activos  ezetimiba + sinvastatina.

A Demandante apresentou resposta às excepções invocadas, considerando que devem ser apreciados na acção todos os pedidos por si formulados na petição inicial e defendendo a incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar a alegada invalidade do CCP 189.
              
Seguidamente o Tribunal Arbitral proferiu despacho saneador no qual identificou os factos assentes e fixou a matéria de facto controvertida, decidindo também pela respectiva competência  para apreciar a excepção da invalidade do Certificado Complementar de Protecção 189 suscitada pela Demandada.

Inconformada com esta decisão a Demandante interpôs recurso de apelação, formulando, no essencial, as seguintes conclusões:

1 O presente recurso vem interposto pela Recorrente do Acórdão saneador proferido pelo Tribunal Arbitral de 9 de janeiro de 2018 por meio do qual este se declarou competente para apreciar e decidir da validade ou invalidade do CCP 189 com reflexo e valor inter partes, na sequência da invocação da excepção de invalidade invocada pela Recorrida Actavis.
2 A questão sub judice no presente recurso reside em saber se, em geral, deve um tribunal arbitral ser considerado competente para poder apreciar e conhecer, em geral, da validade de uma patente ou, in casu, de um CCP.
3 O CCP 189 foi concedido tendo por patente base a EP 720 599, do qual a Recorrente é também titular e por referência à primeira autorização de introdução no mercado europeu do medicamento contendo o produto que consiste na associação Ezetimiba+ Sinvastatina.
4 Nos atermos do artigo 5.º do Regulamento CCP, este certificado confere os mesmos direitos que os conferidos pela patente de base e está sujeito às mesmas limitações e obrigações.
5 Um CCP ( e, portanto, também o CCP 189) corresponde em suma a um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, correspondendo a um direito de propriedade industrial absoluto e, como tal, oponível erga omnes.
6 A equiparação entre uma patente e um CCP não se faz só quanto aos direitos conferidos, nos termos do art.º 5.º do Regulamento CCP; faz-se também quanto aos tribunais competentes para promover a sua anulação e ao processo que para tanto devem seguir.
7 Um dos princípios basilares que preside à protecção da propriedade industrial encontra-se plasmado no artigo 4.º, n.º2 do CPI, que estabelece que a concessão de direitos de propriedade industrial implica a presunção jurídica (“ iuris tantum”) dos requisitos da sua concessão.
8 O único meio facultado pelo CPI para a elisão da presunção de validade de um título de propriedade industrial é a acção de nulidade ou de anulação, a intentar pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, junto de um tribunal judicial, conforme resulta claramente do artigo 35.º n.º1 e 2 do CPI.
9 Foi intenção do legislador estabelecer uma reserva de justiça estadual e a concentrar num único tribunal especializado o contencioso sobre a validade de direitos de propriedade industrial, tornando, deste modo, inarbitrável pelo Tribunal Arbitral qualquer pretensão atinente à apreciação e conhecimento dos fundamentos de invalidade de um direito de propriedade industrial, incluindo de um CCP.
10 Em primeiro lugar, a inarbitrabilidade da invalidade dos direitos de propriedade industrial (onde se incluem os CCPs) por tribunais arbitrais prende-se, desde logo, com a natureza dos direitos em causa, pois a declaração de invalidade, com meros efeitos inter partes, redundaria, na prática, na invalidação subjectivamente parcial do mesmo CCP, a qual passaria assim a ser inválida apenas em relação à Recorrida, continuando a ser válida e oponível contra todos os outros interessados.
11 A declaração de invalidade nestas circunstâncias destruiria a natureza de direito absoluto do direito do CCP, oponível erga omnes, sem que nada na lei autorize tal destruição.
12 Em segundo lugar, a inarbitrabilidade da invalidade dos direitos de propriedade industrial por tribunais arbitrais prende-se com a solenidade associada ao procedimento administrativo de concessão de direitos de propriedade industrial, pois, considerando a natureza absoluta dos direitos privativos que resultam do CCP e da sua patente de base, encontram-se adstritos a averbamento e inscrição no título todos e quaisquer factos que limitem, modifiquem ou extingam esses direitos.
13 Em terceiro lugar, a inarbitrabilidade da invalidade dos direitos de propriedade industrial por tribunais arbitrais prende-se com razões de lealdade da concorrência e transparência de mercado.
14 A aceitação da apreciação da excepção de invalidade do CCP 189 em acções arbitrais poderia levar à prolação de decisões contraditórias(…).
Assim, caso a acção de nulidade ou anulação junto do TPI que foi proposta nos termos do art.º 35.º do CPI seja julgada improcedente, julgando-se válido o CCP 189, tal decisão embora eficaz erga omnes, teria de conviver com eventuais decisões arbitrais individuais que teriam considerado o CCP 189 inválido, permitindo assim a sua infracção por agentes económicos que são parte nessas acções individuais.
15 Deste modo se conclui que, em razão de todo o exposto, não é sindicável pelo Tribunal Arbitral, ainda que em sede de excepção, a matéria da alegada invalidade do CCP suscitada pela ACTAVIS, com fundamento na alegada inobservância do disposto no art.º 3.º do regulamento (CE) n.º 469/2009.
16 A necessidade de celeridade na resolução deste tipo de litígios não pode sobrepor e justificar o desrespeito pelos preceitos legais aplicáveis, muito menos num domínio onde a segurança jurídica deve ser um dos princípios norteadores do sistema.
17 A posição sufragada pelo tribunal Arbitral está em total e expressa contradição com o entendimento maioritário jurisprudencial, seguido em sede tanto arbitral como judicial, em concreto pelo tribunal ad quem, o Tribunal da Relação de Lisboa.
18 Não se ignora, no entanto que o Tribunal Constitucional se pronunciou recentemente sobre a constitucionalidade da denegação da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a validade de uma patente, com efeito inter partes, muito embora tal Acórdão não tenha força obrigatória geral.
19 A norma constitucional que se considera violada é o art.º 20.º n.º4 da CRP, em particular a específica dimensão do direito à tutela jurisdicional efectiva designada por “proibição da indefesa”.
20 Não apenas as premissas que fundamentam o entendimento do Tribunal são erradas , o que comprometeu a exactidão do juízo de inconstitucionalidade que proferiu, como  a ponderação exigida pelo artigo 18.º n.º2 da CRP só foi feita a metade.
21 A inviabilidade de alegar a invalidade da patente, em resultado das regras de competência material do TPI, não implica qualquer perda do direito de defesa da Demandada, apenas alterando os termos em que a satisfação de tal direito pode ocorrer.
22 Admitir-se a defesa por excepção em acções arbitrais comportará consequências negativas inadmissíveis para este direito fundamental dostitulares das patentes.
23 Significa isto que a interpretação recorrida veio admitir uma solução que legitima a violação do conteúdo essencial de um direito enquadrável na categoria dos direitos liberdades e garantias, por força do art.º 42.º da CRP (ou, pelo menos, de um direito com natureza a eles análoga, por força do art.º 62.º da Constituição), sendo pois materialmente inconstitucional por colidir com o artigo 18.º n.º2 e 3 da CRP.
24 Em suma, uma interpretação dos artigos 35.º n.º1 do CPC e 2.º da Lei n.º62/2011 segundo a qual é admissível a declaração de nulidade de uma patente por um tribunal arbitral com efeitos inter partes importa a diminuição da extensão e do alcance do conteúdo essencial do direito fundamental de propriedade industrial das titulares de patentes de forma desproporcional, sendo materialmente inconstitucional por violação doa rtigos 42.º, 62.º e 18.º n.º2 e 3 da CRP e representando uma solução em violação do artigo 13.º da lei Fundamental.
25 Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e por conseguinte, deve ser revogado o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral na parte em que se declara competente para conhecer da validade ou invalidade do CCP 189 com reflexo e valor inter partes, substituindo tal decisão por outra que julgue o tribunal Arbitral incompetente para apreciar tal matéria.

ATAVIS GROUP PTC apresentou contra alegações pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

IIOS FACTOS.

A questão a apreciar é exclusivamente de direito, sendo relevantes para a decisão os elementos constantes do relatório.

IIIO DIREITO.

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição, a única questão em apreço consiste em saber se o Tribunal Arbitral é competente para apreciar, por via de dedução de excepção, a questão da nulidade da patente ou CCP do medicamento em causa, por tal matéria estar reservada à competência exclusiva do Tribunal de Propriedade Industrial TPI.

A Lei 62/11 de 12-12[1] instituiu um regime de arbitragem necessária para a composição dos litígios emergentes da atribuição de autorização de introdução no mercado (AIM) de medicamentos pelo INFARMED, quando estão em causa medicamentos genéricos protegidos por patentes ou por certificados complementares de protecção (CCP) na titularidade de terceiros. Está, pois, em causa saber se será admissível que o alegado infractor dos referidos direitos de propriedade industrial  venha defender-se, na acção arbitral, alegando que a patente ou CCP invocados não são válidos.

“Parece haver unanimidade no sentido de que, perante o disposto no art.º 35º, nº1, do CPI, ao exigir que a invalidade da patente registada resulte de decisão judicial, a respectiva nulidade ou anulação só podem ser decretadas, com eficácia erga omnes, pelo TPI, ao qual se mostra atribuída, desde a sua criação, uma reserva de competência material exclusiva sobre este tema – não sendo, consequentemente, admissível que o interessado/requerido deduza pedido reconvencional sobre a invocada matéria da nulidade da patente, em termos de alargar o objecto do processo a esta questão, deixando-a definida com força de caso julgado material.

Pelo contrário, a doutrina e a jurisprudência mostram-se divididas quanto à possibilidade de, nesse processo, pendente perante o tribunal arbitral necessário, ser invocada, a título de estrito meio de defesa, como mera excepção peremptória, a referida nulidade da patente, cabendo então ao tribunal arbitral apreciá-la, mediante decisão cuja eficácia permaneceria confinada exclusivamente ao processo em causa, não produzindo a decisão proferida, mesmo nos casos em que julgasse demonstrada a invocada nulidade da patente, os típicos efeitos de caso julgado material.

Sustentando esta possibilidade, podem citar-se nomeadamente Remédio Marques (A Arbitrabilidade da Excepção de Invalidade da Patente no Quadro da Lei nº 62/2011, in Revista de Direito Intelectual, nº2/2014, pág. 215), Dário Moura Vicente ( O regime Especial de Resolução de Conflitos em Matéria de Patentes, in ROA, Ano 72, pág. 981) e José Alberto Vieira ( A competência do Tribunal Arbitral Necessário para Apreciar a Excepção de Invalidade da Patente Registada, in Revista de Direito Intelectual, , nº2/2015, pág. 195).

Em sentido contrário, podem invocar-se nomeadamente Manuel Oehen Mendes (Breves Considerações sobre a Incompetência dos Tribunais Arbitrais Portugueses Para Apreciarem a Questão da Invalidade das Patentes e dos Certificados Complementares de Protecção para Medicamentos, in Estudos de Direito Intelectual em Homenagem ao Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão, pág. 927) e Evaristo Mendes (Arbitragem Necessária. Invalidade de Patente, Direito a uma Tutela Jurisdicional Efectiva e Questões Conexas, in Propriedades Intelectuais, 2015, n.º3, p.103.”[2]

Os argumentos esgrimidos por aqueles que pugnam, tal como a ora Apelante, pela incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer, ainda que a título incidental, da nulidade da patente ou CCP prendem-se com a “ disfuncionalidade” que resulta desta tese “permitindo que sobre tal matéria seja proferida decisão jurisdicional pelo tribunal arbitral, cujos efeitos permanecem circunscritos ao processo, não se repercutindo no registo da patente: na verdade, tal orientação permite que subsista intocado o registo constitutivo da patente, apesar da prolação de decisão jurisdicional que, no âmbito de tal processo, considerou nula a patente registada – conduzindo a que a dita patente passe a funcionar intermitentemente na ordem jurídica, sendo o direito ao uso exclusivo que essencialmente a caracteriza invocável contra a generalidade dos sujeitos, mas já não contra aquele ou aqueles que tivessem obtido procedência quanto à matéria da excepção peremptória de nulidade, incidentalmente suscitada e decidida sem eficácia erga omnes…Teríamos, pois, uma inelutável relativização de um direito absoluto, levando,(…) a que a patente, objecto de intocado registo constitutivo - lavrado por entidade pública qualificada que apreciou previamente à sua feitura o escrupuloso cumprimento dos requisitos legais para a atribuição do direito privativo industrial – fosse incidentalmente inválida apenas em relação a um possível infractor próximo, permanecendo válida e operante em relação a todos os demais interessados”[3].

Em suma, entendem que a inviabilidade de o R. suscitar incidentalmente, na acção arbitral, a excepção peremptória de nulidade do direito patenteado se configura como proporcional e adequada, radicando, em última análise, na natureza da relação controvertida, no carácter constitutivo do acto de reconhecimento dos direitos de propriedade industrial e nas razões de interesse público e de congruência do sistema que levaram a reservar o conhecimento de tais vícios apenas ao TPI – não implicando, consequentemente, o desvio à regra constante do nº1 do art. 91º do CPC qualquer violação do direito de defesa, da regra do contraditório ou do princípio do processo equitativo.[4]

Por sua vez os argumentos daqueles que entendem que o Tribunal Arbitral é competente para conhecer da invocada nulidade de direitos de propriedade industrial, em sede de defesa por excepção e com efeitos inter partes, baseiam-se no princípio constitucional consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva[5]. “O artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente legítimos, impondo igualmente que esse direito se efetive – na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz – através de um processo equitativo (n.º 4) (…) No caso em presença está em causa a específica dimensão do direito à tutela jurisdicional efetiva, designada por “proibição de indefesa”. Este princípio, decorrente do reconhecimento do direito geral ao contraditório inerente ao direito a um processo justo implicado no direito fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20.º da Constituição, afirma uma proibição da limitação intolerável do direito de defesa perante o tribunal (…)O princípio do contraditório pressupõe, portanto, como regra a admissibilidade e conhecimento da defesa por impugnação e exceção na mesma ação. A proibição de indefesa enquanto elemento indispensável da via judiciária de tutela efetiva implica não apenas a impugnação dos fundamentos da ação como a possibilidade de os ver todos apreciados na mesma. Não se trata, no entanto, de um princípio absoluto, devendo, antes, ser ponderado com outros princípios conflituantes.”.[6]

E, assim, considerando estes princípios foi decidido pelo Tribunal Constitucional, no acórdão já citado:
“Julgar inconstitucional a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes”.

Embora os argumentos dos defensores da primeira tese, invocados pela Apelante e muito bem explicitados no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra mencionado sejam fortes e pertinentes, propendemos para considerar que é preferível suportar os riscos da apontada “disfuncionalidade” que pode suceder, decorrente da possibilidade de uma patente passar a funcionar “intermitentemente” na ordem jurídica, do que a violação de princípios fundamentais da nossa ordem jurídica, com assento constitucional, como os já apontados direitos ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do contraditório.

Na verdade, embora o Tribunal Constitucional reconheça que nem toda a restrição ao princípio do contraditório implica, necessariamente, uma violação do artigo 20.º da Constituição, acaba por concluir que no caso em apreço, “a norma objeto do presente julgamento [art.º 35.º do PCI] revela-se excessiva porquanto prejudica de modo desproporcionado o direito à defesa do requerente de AIM. Termos em que deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da proibição de indefesa (artigo 20.º da Constituição em conjugação com o seu 18.º, n.º 2)”[7]

E fundamenta a sua decisão invocando a seguinte argumentação que transcrevemos por espelhar aquilo que corresponde à nossa convicção:
“Subsiste, portanto, uma questão essencial: saber se o ónus imposto à parte, no caso, o requerente da AIM, consistente na interposição da ação de declaração de nulidade ou anulação da patente, revela respeito pela regra da proporcionalidade, tendo em conta o fim visado, revelando-se como uma restrição admissível do direito à tutela efetiva dos direitos das partes, no respeito pelo preceituado no artigo 20.º da Lei Fundamental.

Ora, na verdade, a instauração da referida ação de invalidação da patente dificilmente terá influência sobre a resolução do conflito pendente na arbitragem. A declaração de nulidade pelo TPI, com eficácia erga omnes, tem efeitos ex tunc(eficácia retroativa), mas com ressalva dos efeitos jurídicos já produzidos em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado (artigo 36.º CPI). Ora, tendo em conta a duração habitual dos pleitos, é improvável que a decisão da jurisdição comum sobre a validade da patente transite em julgado em momento anterior ao do trânsito em julgado da decisão arbitral. Significa isto que, mesmo que a empresa de medicamentos genéricos obtenha a declaração de nulidade da patente relativa ao medicamento de referência, sempre continuará vinculada relativamente à indemnização ou a sanções pecuniárias compulsórias fixadas e transitadas em julgado o que, na realidade, deixa em aberto a possibilidade de condenação do agente do medicamento genérico pela prática de uma infração de um direito de propriedade industrial cujo título, afinal, é inválido. Assim, a mera possibilidade de interposição de uma ação de declaração de nulidade ou anulação não se revela um meio alternativo eficaz para suprir a necessidade de defesa do requerente de AIM, podendo redundar numa ablação total do seu direito de defesa pela impossibilidade de invocação da nulidade da patente na ação arbitral.

É certo que para obstar àquele efeito, o demandado na ação arbitral pode requerer uma “suspensão” do processo até o TPI se pronunciar. Nesse caso, «o tribunal arbitral deferirá a pretensão se – excecionalmente, dados os termos em que o exclusivo é concedido e a circunstância de se tratar de patentes em fim de vida, via de regra já escrutinadas a nível mundial – houver fortes indícios capazes de vencer a presunção de validade de que a patente goza» (cfr. Evaristo Mendes, “Arbitragem Necessária. Invalidade de Patente, Direito a uma Tutela Jurisdicional Efetiva e Questões Conexas”, in Propriedades Intelectuais, n.º 3, 2015, 103;cfr. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016, ponto 8).

A necessidade de desencadear, pelo interessado na emissão da AIM do medicamento genérico, a pertinente ação de invalidação da patente que obsta à pretendida introdução no mercado, conjugada com a possibilidade de requerer e obter a suspensão da instância arbitral até que tal ação seja julgada, constituem, com efeito, meios procedimentais – alternativos à dedução perante o tribunal arbitral da exceção de nulidade da dita patente – que permitem satisfazer o seu direito a questionar a validade da patente que obsta à comercialização por ele pretendida.

No entanto, a obtenção da suspensão da instância arbitral deve ser considerada incerta. Atendendo-se ao regime aplicável a essa situação, verifica-se que a possibilidade de o demandado requerer a suspensão da instância se encontra prevista no artigo 272.º do Código de Processo Civil (CPC), dependendo da verificação de requisitos positivos e negativos. Por um lado, é necessária a verificação de uma causa prejudicial (requisito positivo) – entendendo-se que se verifica nexo de prejudicialidade entre duas ações pendentes justificativo da suspensão (a situação em que a decisão de uma ação pode afetar o julgamento a proferir na outra). Por outro lado, o seu deferimento depende também da verificação de requisitos negativos elencados no n.º 2 do artigo 272.º do CPC. De acordo com este preceito, «não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens».

Assim, a decretação da suspensão não pode ser tida como certa a priori, pois só diante das circunstâncias de cada caso é que os juízes avaliarão a pertinência e adequação de deferir o pedido de suspensão da instância arbitral.

Não deve ignorar-se, para além disso, que a suspensão da instância não encontra na ação arbitral o campo de aplicação ideal, sabido que é constituir uma mais-valia da arbitragem precisamente a oferta de celeridade na resolução do litígio. Note-se que a Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, estabelece, no seu artigo 43.º, n.º 1, a regra geral de que «os árbitros devem notificar às partes a sentença final proferida sobre o litígio que por elas lhes foi submetido dentro do prazo de 12 meses a contar da data de aceitação do último árbitro». Independentemente da questão de saber se aquele prazo de caducidade encontra, ou não, justificação para ser aplicado nas arbitragens necessárias como a prevista no regime sob análise, certo é que o interesse da celeridade na composição do litígio constitui um apelo inegavelmente associado ao recurso à arbitragem. Ora, esta vocação de celeridade constitui fator que pode desincentivar a suspensão da instância.

Não pode, portanto, excluir-se a hipótese de o tribunal arbitral não determinar a suspensão. Nesse caso (…) se a suspensão da instância não for decretada, mesmo que o TPI venha a declarar a nulidade erga omnes, o trânsito em julgado da decisão arbitral inviabiliza os efeitos retroativos da decisão judicial, nos termos do artigo 36.º, in fine, do CPI. Os efeitos já produzidos pela decisão arbitral manter-se-iam, embora fundados numa patente inválida. Terá de se concluir, nesse caso, que a solução em causa nem sempre permitirá acautelar os direitos de defesa do requerente da AIM, podendo originar uma situação da sua total supressão”.

Como resulta demonstrado na argumentação constante do Acórdão do Tribunal Constitucional, também a solução preconizada pela Apelante não é isenta de graves inconvenientes, e cremos que são superiores àqueles que admitimos poderem decorrer da possibilidade de o Tribunal Arbitral poder apreciar por via de excepção e com efeitos inter partes, a questão da invalidade do direito de propriedade industrial.

Em face do exposto, improcedem as conclusões da Apelante, devendo manter-se a decisão recorrida.

IVDECISÃO.

Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão do Tribunal Arbitral.

Custas pela Apelante.



Lisboa, 5 de julho de 2018



Maria de Deus Correia
Nuno Sampaio
Maria Teresa Pardal


              
[1]Lei da Arbitragem Voluntária (LAV)
[2]Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 14-12-2016, Processo 1248/14.6YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3]Idem.
[4]Idem.
[5]Vide acórdão do Tribunal Constitucional n.º 251/2017, de 24 de maio de 2017, Processo 297/16 – 1.ª secção, disponível em www.dgsi.pt.
[6]Idem.
[7]Idem.