Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
103/13.1TBSCF.L1-4
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ERRO DE IDENTIDADE
ERRO DE ESCRITA
RECTIFICAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I. A regra do art.º 249.º do CC contém um princípio geral de direito aplicável a actos judiciais e extra-judiciais, isto é, actua não apenas em casos das declarações negociais de vontade regidas pela Lei Civil, mas também em outros casos em que se verifique a sua razão de ser, designadamente nas declarações que as partes produzem nas peças processuais no decurso do processo.
II. Existe erro na identificação do impugnante, é certo, mas as circunstâncias referidas e o teor do requerimento parecem evidenciar tratar-se exactamente disso mesmo. Isto é, um  evidente erro, provavelmente sugestionado pela notificação. Apesar de estarem disponíveis todos os elementos que permitiriam a apresentação da impugnação em conformidade com as regras processuais, ao querer identificar-se correctamente a impugnante identificou-se como tal o destinatário da notificação da decisão, mas querendo-se que o recurso fosse daquela, a AA, Lda.
III. Revelando-se o erro da declaração no próprio requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa e nas circunstâncias que precederam a sua apresentação, a situação é enquadrável no disposto no art.º 249º do CC, isto é, merecedora de rectificação, devendo considerar-se o acto como validamente apresentado, no sentido de se entender que o recurso foi apresentado pela arguida AA, lda, conforme requerido na audiência de julgamento.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:I. RELATÓRIO
I.1 Pelo IDSA, IPRA – Instituto para o Desenvolvimento Social dos Açores, foi instaurado processo contra-ordenacional contra AA, Lda., no âmbito do qual foi proferida decisão aplicando-lhe uma coima no montante de € 6 250,00, em cúmulo jurídico, pela prática de ilícitos contra-ordenacionais previstos e punidos nos termos dos artigos 29.º 1 e 2 al. a, 40.º n.º 1 e 5, 242.º 1 e 233.º n.º3, da Lei n.º 110/2009 (Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social).
A decisão da autoridade administrativa foi notificada na pessoa de BB.
Na sequência dessa notificação foi apresentada impugnação judicial da decisão, junto da entidade administrativa, dirigida ao Tribunal Judicial de Santa Cruz das Flores, iniciada nos termos seguintes:
BB, (…)».
Com as alegações foi junta procuração a favor da mandatária subscritora das mesmas e outros, subscrita, como mandante, por BB.
I.2 Remetidos os autos aos serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Santa Cruz das Flores, pelo Digno Magistrado foi proferido o despacho seguinte:
- «A impugnação da decisão administrativa foi efectuada pelo recorrente, AA, Lda, o qual possui legitimidade possui interesse em agir, nos termos do art.º 59.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
O M.P. não se opõe a que a presente decisão seja tomada mediante simples despacho, conforme art.º 64.º n.º1 do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Assim, remeta os presentes autos à Secretaria Judicial para distribuição, de acordo com o artigo 62.º n.º1 do mesmo diploma legal».
I.3 Recebidos os autos em juízo, pela Senhora Juíza do Tribunal a quo foi proferido o despacho seguinte:
- «Notifique-se a recorrente para, em 10 dias, proceder à liquidação da taxa de justiça devida pela impugnação da decisão administrativa, em conformidade com a norma constante do art.º 685.º D do CPC, aplicável subsidiariamente, em obediência ao disposto no art.º 8.º, n.º 4 do RCP e com a advertência de que, se não o fizer em 10 dias, a impugnação judicial não será conhecida.
Por ser atempado e respeitar as exigências de forma previstas no art.º 59.º, n.º 3 do RGCC, admito o presente recurso (art.º 63.º, n.º 1 do RGCOC, a contrario).
Designo o dia 21 de Novembro de 2013, pelas 10h00, para a realização da audiência de discussão de julgamento, nos termos do art.º 65.º do RGCOC.
Notifique, também, a autoridade administrativa, nos termos do art.º 70.º do diploma em questão.
(…)».
 O julgamento foi adiado mais do que uma vez por impossibilidade de comparência da ilustre mandatária do recorrente, em razão de falta de ligação aérea por más condições atmosféricas, conforme requerimentos dirigidos aos autos e acolhidos pelo Tribunal a quo.
Em 26-02-2014, procedeu-se à realização da audiência de julgamento,    mencionando-se na respectiva acta como presentes, para além do mais, a “Arguida: AA, Lda, aqui representada pelo seu legal representante BB”, bem como a respectiva mandatária.
Resulta ainda da acta que, durante a produção de prova, após a inquirição de quatro  testemunhas - duas por videoconferência e duas presentes -  foi pedida a palavra pela ilustre mandatária que, no uso dela requereu o seguinte:
- «A recorrente só no início da presente audiência é que tomou conhecimento do lapso cometido na indicação da sua identificação contida no texto introito da informação judicial nos presentes autos, de facto a colocação do nome do senhor BB que é sócio único e gerente da arguida a AA, Lda., ficou a dever-se a um simples erro de escrita pelo qual a recorrente se penitencia. Atendendo a este facto, requer-se a V. Exa que revele o lapso cometido e aceite a rectificação do mesmo, passando a constar do introito da impugnação da arguida a AA, l, Lda. Espera deferimento».
Logo de seguida, consta da acta que «Pelo Digno magistrado do Ministério Público, foi promovido o seguinte: “Ainda que se entendesse como alega a recorrente, tal se deveu a um mero lapso de escrita, a verdade é que, a procuração forense que consta dos autos encontra-se outorgada pela pessoa singular AA e não pela respectiva pessoa colectiva. Na verdade concordamos que se tratará de um lapso, contudo o mesmo não pode ser corrigido em sede de audiência de discussão e julgamento, em que agora nos encontramos, uma vez que o objecto e os respectivos intervenientes da causa já se encontram definidos, Assim o Ministério Público opõe-se ao requerido”. Mais promoveu que prescinde da testemunha por si arrolada (…)».
Pela senhora Juíza foi então proferido o despacho seguinte:
- «Uma vez que a arguida no âmbito do processo administrativo é “AA, Lda”, e o recorrente é “BB”, que, em nome próprio, veio impugnar judicialmente o recurso de contra ordenação, não se trata aqui de uma questão de lapso de escrita (ainda mais, porque a procuração constante de fls. 16 se encontra outorgada por BB), mas de uma questão de legitimidae do recorrente, que será apreciada em sede de sentença.
Assim, indefere-se a requerida retificação.
(..)».
Consta, ainda da acta, que “Finda a produção de prova, pela Mmª Juiz de Direito foi concedida a palavra, sucessivamente, ao Digno Magistrado do M.º Público e ao Ilustre mandatário presente, para em alegações orais exporem as conclusões de facto e de direito que hajam extraído da prova produzida”, bem assim a designação de dia para a leitura da sentença.
Na data designada para esse efeito, a audiência prosseguiu com a leitura da sentença junta aos autos, da qual consta, para além do mais, o seguinte:
O artigo 59.º do Regime geral das Contra-ordenações (Decreto _lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, na redacção do Decreto-lei n.º 356/89 de 17 de Outubro, e do Decreto-Lei n.º 244/94, de 14 de Setembro) preceitua que “A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial” (n.º1); e que “O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor” (n.º2).
No caso sub judicio, o ora recorrente veio, invocando a qualidade de arguido apresentar impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa – fls.3.
Tendo o ora recorrente subscrito, em seu nome, procuração forense – fls. 16.
Ora, compulsada a decisão administrativa, constata-se que o ora recorrente não é pessoa arguida neste processo de contra-ordenação. A pessoa arguida no presente processo de contra-ordenação é a sociedade “AA, Lda”.
Como assim – e de acordo com o n.º 2 do art.º 59.º do Regime Geral das Contra-Ordenações – ao ora recorrente falece legitimidade para, por si, interpor o recurso judicial que nestes autos interpôs da decisão de aplicação de coima à sociedade “AA, Lda”.
Desta forma, o ora recorrente não goza de legitimidade para a interposição de recurso judicial da decisão de aplicação de coima pela autoridade administrativa.
Pelo exposto, rejeita-se, por ilegitimidade, o recurso de impugnação judicial interposto, e consequentemente, mantém-se a decisão administrativa proferida.
(..)».
I.4 Inconformada com essa decisão a arguida interpôs recurso, devidamente motivado, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados.
As alegações foram concluídas com as conclusões seguintes:
(…)
I.5 Notificado do requerimento do recurso e respectivas alegações, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou contra-alegações, finalizadas com as conclusões seguintes:
(…)
I.6 Nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu parecer (art.º 416.º do CPP), distanciando-se da posição sustentada nas contra-alegações, para concluir que o recurso merece ser acolhido. Após fazer uma síntese dos dados dos autos, refere-se no parecer o seguinte:
-«(…)
Contudo, afigura-se-nos que o bom senso que deve presidir a todas as tomadas de posição, pelo menos, aconselharia que se tivesse tido em consideração o requerimento efectuado em audiência e o facto de que, mal ou bem, é a arguida AA, lda que figura como arguida em todos os actos processuais.
Pelo que, s.m.o. , deveria ter sido suspensa a instância e notificada a arguida para, em prazo judicialmente fixado, vir aos autos suprir a falta de procuração e ratificar todo o processado (art.º 40.º  n.º 1 do CPC).
Afigura-se-nos, pois, ser de proceder o recurso».
 I.7 Notificada nos termos e para os efeitos do art.º 417.º n.º2, do CPP, a recorrente não respondeu.
I.8 Foi cumprido o disposto no art.º 418.º do CPP, remetendo-se o processo aos vistos, acompanhado do projecto de acórdão.
I.9 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso, a questão colocada para apreciação consiste exclusivamente em saber se o Tribunal a quo errou ao decidir, na sentença, rejeitar a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, “por ilegitimidade”, do recorrente, tendo antes indeferido o requerimento apresentado em audiência de julgamento pela recorrente, pedindo a rectificação da impugnação judicial, para passar a “constar do introito (..) a AA, Lda”.
FUNDAMENTAÇÃO
II.1     MOTIVAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto com relevo para a apreciação do recurso é a que consta elencada no relatório.
II. Fundamentação de Direito
Aplica-se ao caso o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. E, por determinação do art.º 60.º, subsidiariamente, desde que o contrário não resulte daquela lei, “(..), com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra -ordenação previstos no regime geral das contra –ordenações”, isto é, no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e n.º 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro.
II.1 Duas notas breves para introduzir a questão sob recurso.
Dispõe o n.º2, do art.º 59.º do DL 433/82: “O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor”.
Assim, em primeiro lugar, como se refere na decisão recorrida, é ponto assente, diremos mesmo, indiscutível, que quem detém a legitimidade para impugnar a decisão de autoridade administrativa é o arguido, isto é, aquele que na sequência de determinado procedimento contra-ordenacional  viu ser-lhe aplicada uma sanção, tanto podendo interpor o respectivo recurso por si próprio como através de mandatário constituído,  dado não ser obrigatória a constituição de advogado, como resulta da expressão  “pelo arguido ou pelo seu defensor”.
No caso vertente, conforme consta devidamente identificado na notificação da decisão administrativa (fls. 43), o arguido é “AA, lda”.
Por conseguinte, quem detinha legitimidade para interpor o recurso era a referida sociedade unipessoal, fazendo-o pessoalmente, isto é, através do seu único representante legal – BB – ou através de mandatário constituído por aquela sociedade, sendo certo, porém, que a procuração seria outorgada pelo representante legal em representação da sociedade.
Em suma, este seria inequivocamente o procedimento processualmente correcto.
 Em segundo lugar, embora a questão não tenha sido suscitada, releva também assinalar que o facto de o Tribunal a quo ter admitido o recurso, constando expressamente do despacho inicial “Por ser atempado e respeitar as exigências de forma previstas no art.º 59.º, n.º 3 do RGCC, admito o presente recurso (art.º 63.º, n.º 1 do RGCOC, a contrario)”, não obsta, no caso em concreto, a que posteriormente tenha invertido aquela posição, para decidir pela rejeição do recurso, dado que não se formou caso julgado formal.
Melhor explicando, a excepção de caso julgado formal pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo, mas é necessário que exista uma declaração expressa que aprecie em concreto uma determinada questão sobre um certo pressuposto processual. Naquele despacho inicial o Tribunal a quo limitou-se a proceder à apreciação genérica e tabelar de aspectos formais relacionados com a admissibilidade do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, ou seja, não se debruçou especificamente sobre a questão da legitimidade do recorrente. Daí dizer-se que não se formou caso julgado formal e, logo, que não ficou precludida a possibilidade de posteriormente decidir em sentido diverso. [Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 187; Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2008, p. 201; e, na jurisprudência, Acórdãos do STJ: de 12-12-1990, proc.º n.º  02918, Prazeres Pais; de 28-10-1993, proc.º 084215, José Magalhães; e, de11-10-1994, proc.º 080712,  Sousa Inês;  todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Porém, a questão, não se esgota por aqui, importando saber se era ou não admissível a rectificação pretendida pela recorrente no requerimento apresentado na audiência de julgamento.
II.2 Dispõe o art.º 249.º do CC o seguinte: “O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.
A propósito da norma, elucida o Ac. do STJ de 06-10-1994: “[I] O erro de cálculo, o erro de escrita e o erro de expressão são modalidades de erro obstáculo ou erro na declaração, caracterizando-se por a vontade do declarante se formar correctamente, com perfeito conhecimento de todas as circunstâncias susceptíveis de influirem na sua formação, sucedendo que, ao transmitir-se a vontade se diz coisa diferente da que se quer dizer, representando um erro que acontece na formulação da vontade. [II] A inexactidão em que se traduz o erro de cálculo tem que revelar-se pelo teor da declaração emitida, (..)” [Proc.º n.º 085562, Costa Raposo, disponível em www.dgsi.pt].
   Segundo a orientação da jurisprudência dos tribunais superiores, que temos por pacífica, é entendido que esta regra, por via do disposto no art.º 295.º do CC, contém um princípio geral de direito aplicável a actos judiciais e extra-judiciais, isto é, actua não apenas em casos das declarações negociais de vontade regidas pela Lei Civil, mas também em outros casos em que se verifique a sua razão de ser, designadamente nas declarações que as partes produzem nas peças processuais no decurso do processo  [Nesse sentido, entre outros: Ac. STJ de 19-11-1993, proc.º n.º 283756, Fernando Fabião; Ac. da Rel. de Lisboa de 3-10-1991, Proc. nº 0031956, Boavida Barros; Ac. da Rel de Lisboa, de 08-07-1999, proc.º 036576, Fernando do Vale; Ac. da Rel. Lisboa de 11-05-2006, proc.º n.º 3561/2006-6, Fátima Galante; e, Ac. da Rel. Lisboa de 15-01-2013, proc.º n.º 493/09.0TCFUN.L1-1, Rui Vouga; (todos disponíveis em www.dgsi.pt)].        
  Assinalando esse entendimento jurisprudência e, acolhendo-o, pronunciam-se também Pires de Lima e Antunes Varela, na obra Código Civil Anotado, em anotação  ao art.º 249.º [4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, p. 234, nota 2].
Nessa consideração, como se elucida em Ac. da Relação do Porto, de 08-09-1990, «sendo o requerimento de interposição de recurso uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinados efeitos processuais, ser-lhe-á aplicável o princípio contido no artigo 249º do Código Civil, segundo o qual o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à rectificação desta» [Proc.º nº 0123707, Carlos Matias; no mesmo sentido,  Ac. da Rel. Lisboa de 15-01-2013, acima citado; (disponíveis em www.dgsi.pt)].
Concluindo, como se sintetiza no Acórdão da Relação de Coimbra de 24-05-2005:
-  «O erro é uma falsa representação da realidade: é a ignorância que se ignora. Pratica-se determinado acto, concebendo as coisas por modo diverso daquele que, na realidade, são, mas não fora esse imperfeito conhecimento e o acto não teria sido praticado. De entre as diversas modalidades de erro apenas interessa para o caso, o chamado erro de escrita em que há, na verdade, uma divergência entre o que se quer e o que se diz.
Esse erro é corrigível em face do contexto ou das circunstâncias da declaração: ao ler o texto logo se vê que há erro e logo se entende o que o interessado queria dizer. Essa modalidade de erro respeita à interpretação e daí que o acto devidamente interpretado em função do seu contexto (elemento sistemático) e circunstâncias (elementos extraliterais) deva permanecer válido com o sentido de que, afinal, é portador. Em tais casos, o acto vale, com o seu verdadeiro sentido, sendo irrelevante o erro material (Cfr. J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 1977, págs. 82 e 83.)» [Proc.º n.º 480/05, António Piçarra, disponível em www.dgsi.pt].
Revertendo ao caso, importa, pois, indagar se o alegado erro é apreensível em face do teor do requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa e no conjunto das circunstâncias do caso concreto.
Cremos que assume aqui relevância o facto de a arguida ser uma sociedade unipessoal por quotas, figura criada pelo DL n.º 257/96, de 31 de Dezembro, que se caracteriza por ser uma sociedade em que todo o capital é detido por um único titular e, consequentemente, cabendo-lhe exclusivamente assumir a sua direcção e responsabilidade.
Essa particularidade, se no plano jurídico não pode suscitar qualquer dúvida quanto à distinção entre a pessoa jurídica sociedade e o titular das quotas (que tanto pode ser uma pessoa singular como uma pessoa colectiva), já no plano prático é propícia a alguns equívocos. Mesmo inconscientemente, pode nem sempre ser feita a devida separação, por exemplo, confundindo-se ou, pelo menos, sem desassociar, a responsabilidade da sociedade unipessoal da responsabilidade do titular do capital da mesma, pelo facto daquela primeira resultar sempre e necessariamente de acto ou omissão daquele.
Porventura será um equívoco involuntário, gerado por essa razão ou por outra próxima, que explica o facto da autoridade administrativa ter dirigido a notificação da decisão proferida no processo contra-ordenacional a “BB”, e não à AA, ld.ª, apesar desta depois constar identificada como a arguida. Note-se que na identificação do destinatário da notificação não é feita, como poderia ter sido, a menção de aquele ser o “representante legal” da AA, ld.ª. Apenas consta  a indicação “N.º Processo 201200031877 e APENSOS”, seguida do nome “BB” e a respectiva morada.
Enfim, o propósito poderá ter sido simplesmente o de melhor garantir a recepção da notificação, mas o certo é que não é feita a distinção entre a sociedade unipessoal e o seu representante único, enquanto único titular das quotas.
A leitura da decisão da autoridade administrativa permitia perceber que arguida era a AA, ld.ª e, logo, que era esta que deveria figurar como impugnante da decisão administrativa e não o representante legal BB. E, logo, no recurso poderia teria sido identificada a sociedade unipessoal e a procuração apresentada seria outorgada pelo BB, mas mencionando-se que a outorgava na qualidade de representante legal daquela, isto é, da AA, ld.ª.
Mas assim não aconteceu. Porém, o propósito da impugnação é claro, isto é, não suscita dúvida que se pretende impugnar a decisão administrativa do IDSA, proferida  “No âmbito do processo n.º 2012000318777 e Apensos”, aplicando “ (..) uma coima no valor de € 6 50,00, por alegadamente a AA, Lda, não ter comunicado dentro do prazo legal aos Serviços da Segurança Social a admissão do trabalhador CC e não ter incluído o mesmo na declaração de remunerações referentes a todos os meses do ano de 2011”.
Existe erro na identificação do impugnante, é certo, mas as circunstâncias referidas e o teor do requerimento parecem evidenciar tratar-se exactamente disso mesmo. Isto é, um  evidente erro, provavelmente sugestionado pela notificação. Apesar de estarem disponíveis todos os elementos que permitiriam a apresentação da impugnação em conformidade com as regras processuais, ao querer identificar-se correctamente a impugnante identificou-se como tal o destinatário da notificação da decisão, mas querendo-se que o recurso fosse daquela, a AA, Lda.
Com efeito, a verdade é que a impugnante praticou o acto que queria, no prazo legal e cumprindo as demais formalidades, só que identificando o seu único legal representante - mas sem cuja intervenção não poderia jamais estar em juízo -,  quando  deveria identificar-se  com a sua denominação social de sociedade unipessoal. Há apenas um mero erro de simpatia e desatenção, com toda a probabilidade sugerido pela notificação da autoridade administrativa, que não deve obstar ao direito de recurso.
De resto, não é despiciendo fazer notar que todo esse quadro terá certamente induzido igualmente em erro o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo, que afirmou expressamente que “A impugnação da decisão administrativa foi efectuada pelo recorrente, AA, Lda, o qual possui legitimidade possui interesse em agir, nos termos do art.º 59.º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro”, bem assim a Senhora Juíza, que admitiu o recurso de impugnação judicial sem que também se tenha apercebido da desconformidade relativamente a quem surgia identificado como recorrente.
Aliás, situação que se manteve na tramitação subsequente e que, atento o teor da acta, não fora o requerimento da ilustre mandatária, só seria eventualmente apercebida na elaboração da sentença final.
Neste quadro, devendo ter-se presente que a lei adjectiva confere especial primazia à justiça material sobre o formalismo processual, seria altamente gravoso cercear o direito ao recurso, desatendendo a relevância de um erro apreensível por um destinatário ou observador normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica.
Concluindo, revelando-se o erro da declaração no próprio requerimento de impugnação judicial da decisão administrativa e nas circunstâncias que precederam a sua apresentação, a situação é enquadrável no disposto no art.º 249º do CC, isto é, merecedora de rectificação, devendo considerar-se o acto como validamente apresentado, no sentido de se entender que o recurso foi apresentado pela arguida AA, lda, conforme requerido na audiência de julgamento.
Merece, pois, provimento o recurso e, logo, não pode ser mantida a decisão recorrida.
Consequentemente, deverá o Tribunal a quo determinar a regularização do mandato, concedendo prazo à recorrente AA, Lda para juntar aos autos procuração e ratificar o processado praticado pela ilustre advogada até ao julgamento (art.º 40.º do CPC). Deixa-se nota que para interposição do presente recurso de apelação foi apresentada a necessária procuração, mas da mesma não consta a ratificação do processado praticado até ao termo da audiência de julgamento.
Subsequentemente deverão os autos prosseguir a sua normal tramitação, necessariamente com a repetição do julgamento, uma vez que a prova produzida perdeu a sua eficácia.
***
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, decidem o seguinte:
i) anular a sentença;
ii)determinar a rectificação do requerimento de interposição do recurso de impugnação judicial da decisão administrativa, de modo a passar a constar como impugnante AA, Lda;
iii)determinar a repetição da audiência de julgamento e subsequente tramitação, após a prévia regularização do mandato e ratificação do processado, nos termos acima mencionados.
Sem Custas.     
Lisboa, 2 de Julho de 2014
           
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes
Decisão Texto Integral: