Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4979/2007-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
EXECUÇÃO
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - A inutilidade superveniente da lide constitui uma das causas de extinção da instância executiva.
II - Quando o exequente, na pendência da execução, vem informar que o contrato de mútuo que serve de base à execução se encontra regularizado e requerer a remessa dos autos à conta, para apuramento das custas da responsabilidade do executado, não se trata de uma desistência da execução mas sim de extinção da instância executiva, por facto imputável à executada, tendo assentido a credora em ‘renovar’ o mútuo permitindo a continuação do pagamento regular das prestações.
F.G.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível da Relação de LISBOA:

Em 15/12/2000, BANCO SA instaurou contra ANABELA e marido PAULO uma execução para pagamento de quantia certa, com base numa escritura pública de mútuo, com vista à cobrança coerciva da importância de Esc. 12.375.470$00.

Em 17/12/2001, o Exequente, alegando que os Executados haviam, no decurso da execução, regularizado parcialmente o montante correspondente às prestações vencidas no empréstimo dado à execução, sendo reduzido o valor em falta para que tais incumprimentos ficassem totalmente regularizados, pelo que era de esperar que os executados efectuariam tais pagamentos, por forma a que o empréstimo em questão retomasse o respectivo plano contratual, requereu:

a) a concessão do prazo de 30 dias por forma a tentar alcançar o pagamento (extra-judicial) do remanescente do valor das prestações em dívida e, assim, avaliar da efectiva possibilidade de retoma contratual do empréstimo dado à execução;

b) ou, caso assim não fosse entendido, a remessa dos autos à conta para determinação das custas da responsabilidade dos Executados, visto terem sido estes quem deu causa à lide, tendo a regularização parcial do valor das prestações vencidas e a retoma do plano contratual do empréstimo sido posterior à instauração da execução e à citação dos Executados para os respectivos termos.

Os Executados, notificados do teor de tal requerimento com a cominação de que o seu silencio por prazo superior a 10 dias equivaleria a concordância com o teor do mesmo requerimento, quedaram-se pelo silêncio.

Na sequência do aludido requerimento do Exequente e ainda doutro requerimento por ele apresentado em 22/11/02 (no qual reiterou o pedido de remessa dos autos à conta, com custas a cargo dos Executados), foi proferido despacho, datado de 4/12/2002, a ordenar a remessa dos autos à conta, com custas pelos Executados.

Após o pagamento das custas por parte dos Executados, foi proferida, em 16/6/2005, sentença de extinção da execução, julgando a execução extinta por se mostrar paga a quantia exequenda e se encontrarem satisfeitas as custas liquidadas, nos termos do artigo 919º, nº 1, do Código de Processo Civil.

O Exequente requereu, sem êxito, a reforma dessa sentença, nos termos do art. 669º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil, por forma a esclarecer-se que a extinção da execução não resultou do pagamento da quantia exequenda, mas sim do pagamento parcial das prestações vencidas e da retoma da vigência do contrato de mútuo dado à execução.

Inconformado com a aludida sentença de extinção da execução, o Exequente interpôs recurso da mesma, que foi recebido como de agravo, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo rematado as alegações que apresentou com as seguintes conclusões:

1.° Decorre dos autos que a quantia exequenda não foi integralmente liquidada.

2.° Na verdade, o Agravante e os Executados acordaram na retoma do plano contratual.

3.° Em 17/12/2001 e 22/11/2002 o Agravante informou o tribunal que os Executados tinham procedido ao pagamento de parte da quantia exequenda correspondente às prestações vencidas no empréstimo executado, tendo admitido o Exequente que os Executados retomassem o respectivo plano contratual e, em consequência requereu a remessa dos autos à conta, com responsabilidade das custas a cargo dos Executados.

4.° Não existiu qualquer novação da dívida inicialmente executada, mas tão só, o pagamento de prestações já vencidas, tendo o Exequente admitido o pagamento da parte restante extrajudicialmente e no futuro, tendo assim retomado o plano de amortização do empréstimo concedido, continuado a aplicar-se as taxas de juros e prazos de pagamento contratualmente previstos.

5.° Pagas as custas foi o Agravante notificado da sentença de extinção pelo pagamento da quantia exequenda.

6.° Pelo que, requereu o Agravante a reforma de sentença.

7.° Não se verificando o pagamento integral da quantia exequenda, conforme resulta do requerimento do Exequente, jamais se poderia julgar extinta a execução por pagamento da quantia exequenda.

8° O art. 919° do CPC prevê a extinção da execução quando ocorra outra causa de extinção instância, sendo a inutilidade superveniente da lide uma causa de extinção da instância executiva.

9° Não tendo sido liquidada a quantia exequenda, foi apenas regularizada a dívida referente às prestações em atraso e juros de mora, ocorreu a extinção da instância executiva por facto imputável aos Executados, já que o Exequente aceitou a retoma do mútuo permitindo o pagamento regular das prestações vincendas”.

Não houve contra-alegações.

O Exmº Sr. Juiz do tribunal “a quo” proferiu despacho de sustentação, no qual manteve inalterada a sentença objecto do presente recurso de agravo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


A DECISÃO RECORRIDA

A sentença que constitui objecto do presente recurso de agravo é do seguinte teor :

Nos presentes autos de execução ordinária instaurados por Banco, S.A. contra Anabela e marido, mostrando-se paga a quantia execução e satisfeitas as custas, julgo extinta a execução nos termos do disposto no artigo 919º, nº 1, do Código de Processo Civil”.


O OBJECTO DO RECURSO

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem(1)(2).

Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º)(3)(4). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pelo ora Agravante que o objecto do presente recurso está circunscrito a uma única questão: Se, na pendência duma execução para pagamento de quantia certa instaurada com base num contrato de mútuo, o executado paga extra-judicialmente ao exequente as prestações vencidas em atraso, em consequência do que exequente e executado acordam, extra-judicialmente, em que o empréstimo dado à execução retome a sua plena vigência, segundo o plano de amortização originariamente estabelecido, facto do qual é dado conhecimento no processo, indo a execução à conta, para contagem das custas da responsabilidade do executado, uma vez estas pagas, a execução deve ser julgada extinta pelo pagamento da quantia exequenda e das custas ou por inutilidade superveniente da lide ?


O MÉRITO DO AGRAVO

Tendo o Exequente requerido a reforma da sentença de extinção da execução objecto do presente recurso de agravo, nos termos do art. 669º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil, por forma a esclarecer-se que a extinção da execução não resultou do pagamento da quantia exequenda, mas sim do pagamento parcial das prestações vencidas e da retoma da vigência do contrato de mútuo dado à execução, o tribunal “a quo” indeferiu a pretendida reforma, com base no seguinte argumentário:

Notificado da sentença de extinção da instância executiva proferida a fls. 136 veio o exequente a fls. 144 e 145 requerer a reforma da sentença ao abrigo do disposto no artigo 669°, n°. 2 alínea b) do C.P., alegando que por requerimento de 14.12.2001 informou os autos que os executados procederam ao pagamento parcial das prestações incumpridas e à retoma do contrato de mútuo. No entanto, a sentença consignou que a quantia exequenda está paga.

Pretende, assim, a aclaração da sentença de forma a esclarecer que a extinção da execução não resulta do pagamento da quantia exequenda, mas sim do pagamento parcial das prestações vencidas pela retoma do contrato de mútuo em referência nos autos.

Cumpre apreciar:

Na sequência do requerimento do exequente de 17.12.2001 junto a fls. 67 ordenou-se a sustação da execução e a remessa dos autos à conta com custas pelos executados (cfr.fls.93).

Feita a contagem dos autos e pagas as custas julgou-se extinta a instância, consignando-se que a quantia exequenda se mostrava paga nos termos da sentença de fls. 136.

Desde logo, há que referir que o requerimento do exequente visava a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide. Forma de extinção que, a nosso ver, não tem fundamento legal no âmbito da acção executiva.

Assim, em casos como o dos autos em que os executados regularizam as prestações que determinaram o vencimento integral do crédito, também peticionado nos autos, apenas restará ao exequente uma de duas vias, ou desiste da execução ou dá conhecimento aos autos do pagamento daquelas quantias.

Nesta segunda hipótese a extinção da instância apenas pode assentar no pagamento verificado, nos termos do disposto no art°. 919°, n°. 1 do C.P.C.

Certamente, repugna ao exequente o facto da sentença referir especificamente o pagamento da quantia exequenda, o que parece abranger igualmente o montante total do crédito vencido.

Tal entendimento não nos merece acolhimento, sendo certo que admitindo o exequente que os executados retomem o pagamento das prestações conforme acordado ab initio deixou de se verificar o alegado vencimento da totalidade do empréstimo.

Em qualquer caso, a sentença proferida não inibe o exequente de verificado novo incumprimento poder requerer a renovação da execução extinta ao abrigo do disposto no artigo 920°, n°. 1 do C.P.C.

Termos em que, não há que reformar a sentença proferida nos autos, uma vez que a mesma atentou em todos os elementos constantes dos autos e deve ser, naturalmente, entendida em consonância com o requerimento do exequente que determinou a sustação e posterior extinção da execução.

Custas do incidente pela exequente, com taxa de justiça que se fixa em 1/2 Uc.

Notifique”.

Tudo se resume, pois, ao seguinte: Se, na pendência duma execução para pagamento de quantia certa instaurada com base num contrato de mútuo, o executado paga extra-judicialmente ao exequente as prestações vencidas em atraso, em consequência do que exequente e executado acordam, extra-judicialmente, em que o empréstimo dado à execução retome a sua plena vigência, segundo o plano de amortização originariamente estabelecido, facto do qual é dado conhecimento no processo, indo a execução à conta, para contagem das custas da responsabilidade do executado, uma vez estas pagas, a execução deve ser julgada extinta pelo pagamento da quantia exequenda e das custas ou por inutilidade superveniente da lide ?

«A causa normal de extinção da execução é o pagamento coercivo»(5). «O interesse do exequente e dos credores reclamantes na acção executiva é satisfeito (…) pela entrega de dinheiro penhorado, pela adjudicação dos bens, pela consignação de rendimentos e pelo produto da venda dos bens penhorados (art. 872º do CPC)»(6). «Portanto, normalmente, a execução extingue-se por uma destas causas que importam o pagamento coercivo»(7).

«Mas, tal como a acção declarativa se pode extinguir sem que se tenha atingido a sentença de mérito, também na acção executiva a extinção pode ter lugar por causas diferentes do pagamento coercivo, seja por extinção da obrigação exequenda, seja por motivos diferentes»(8).

Quanto à obrigação exequenda, ela pode extinguir-se, além de pelo pagamento (coercivo ou voluntário), por qualquer outra causa prevista na lei civil: dação em cumprimento, consignação em depósito, compensação, novação, remissão, confusão (arts. 837º a 873º do Código Civil)(9). «Provada pelo executado qualquer daquelas causas, o tribunal declara a execução extinta se ela implicar a extinção total da obrigação exequenda e se se mostrarem pagas as custas da execução (art. 919º, nº 1, [do CPC])»(10).

Porém, «a instância executiva também se pode extinguir por causas distintas da satisfação da obrigação exequenda»(11). «É o caso da rejeição oficiosa da execução (nova redacção do art. 820º do CPC), anulação ou revogação da sentença exequenda, procedência de embargos de executado, desistência da instância e/ou do pedido por parte do exequente (art. 918º/1), transacção, deserção da instância executiva (art. 291º do CPC), impossibilidade ou inutilidade da lide executiva e compromisso arbitral (art. 287º/b) e e), do CPC)»(12)(13).

A inutilidade superveniente da lide constitui, portanto, uma das causas de extinção da instância executiva.

Esta doutrina foi, de resto, explicitamente perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 6/7/2004, proferido no Proc. nº 04A2272 e relatado pelo Conselheiro LOPES PINTO (cujo texto integral pode ser acedido, via Internet, no sítio www.dgsi.pt).

Como certeiramente se pôs em evidência nesse aresto, tirado num caso rigorosamente idêntico ao dos presentes autos, quando o exequente, na pendência da execução, vem informar que o contrato de mútuo que serve de base à execução se encontra regularizado e requerer a remessa dos autos à conta, para apuramento das custas da responsabilidade do executado, «não se trata (…) de uma desistência da execução mas sim de extinção da instância executiva por facto imputável à executada, tendo assentido a credora em ‘renovar’ o mútuo permitindo a continuação do pagamento regular das prestações». «Nem foi liquidada a quantia exequenda – regularizada só a dívida quanto às prestações em atraso e respectivos juros de mora – nem a exequente desistiu da execução» (ibidem).

O agravo não pode, pois, deixar de ser provido.


DECISÃO


Acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao presente recurso de Agravo, julgando-se extinta a execução por inutilidade superveniente da lide (causa de extinção da instância executiva).

Sem custas.

Lisboa, 16/10/2007

Rui Torres Vouga (Relator)

José Gabriel Pereira da Silva (1º Adjunto)

Maria do Rosário Barbosa (2º ADjunto)

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1 - Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.

2 - Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).

3 - O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).

4 - A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).

5 - LEBRE DE FREITAS in “A Acção Executiva Depois da Reforma”, 4ª ed., 2004, p. 358.

6 - REMÉDIO MARQUES in “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto”, 2000, p. 424.

7 - REMÉDIO MARQUES, ibidem.

8 - LEBRE DE FREITAS, ibidem.

9 - Cfr., neste sentido, LEBRE DE FREITAS (ibidem), REMÉDIO MARQUES (in “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto” cit., p. 426), MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (in “Acção Executiva Singular”, 1998, p. 410) e FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA (in “Curso de Processo de Execução”, 7ª ed., 2004, p. 368).

10 - MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “Acção Executiva Singular” cit., p. 410.

11 - MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA in “Acção Executiva Singular” cit., p. 414.

12 - REMÉDIO MARQUES in “Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto” cit., p. 426.

13 - Cfr., todavia, no sentido de que «impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, de que é exemplo típico falecer uma das partes em acção de divórcio, não se concebe que possa verificar-se relativamente à execução», LOPES CARDOSO in “Manual da Acção Executiva”, 1987, p. 673. Trata-se, porém, duma opinião isolada, não partilhada por nenhum outro Autor.