Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10140/2006-7
Relator: SOARES CURADO
Descritores: PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENOR EM PERIGO
VALOR
OMISSÃO
MENORIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2006
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: i. Ainda que convicto da necessidade da indicação do valor, deve o julgador não se ater estritamente à questão da observância das regras dos arts. 467º, 1, f), e 305º e segs., CPC, antes lhe cumprindo dar cabal expressão aos comandos dos arts. 265º, 1 e 2, e mesmo, se tal lhe ocorrer como necessário em vista dos fins do processo, do art. 265º -A, não esquecendo o princípio do art. 266º, CPC. Ou seja, se persistisse na sua (errónea) opinião de que o valor do procedimento era indispensável, nenhum mal adviria aos autos se ele mesmo, usando da faculdade do art. 315º no contexto especialíssimo do PPP, fixasse ao processo o valor que o art. 312º estabelece para as acções que versem sobre interesses imateriais – como inegavelmente são os que se debatem no processo.
ii. Enquanto nos processos de jurisdição contenciosa, o tribunal é chamado a exercer a função jurisdicional própria dos órgãos judiciários, elaborando e formulando a solução concreta que decorre do direito substantivo aplicável, nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de negócios – negócios que a lei sob a fiscalização do Estado através do poder judicial.
iii. Dúvidas não podem colocar-se ao julgador de que o interesse prosseguido com o procedimento se situa na área conceptual dos interesses imateriais. Ainda que a satisfação do interesse público da segurança e subsistência dos menores signifique necessariamente a afectação de meios financeiros, na sua essência o custo pouco importa quando o valor supremo é a vida de um incapaz.

(SC)
Decisão Texto Integral: Decide-se, nos termos dos arts. 700º, 1, g) e 705º, CPC, o seguinte:

I RELATÓRIO

01 O MINISTÉRIO PÚBLICO junto do Tribunal de Família e Menores da comarca de Sintra instaurou em 04.10.2006 um processo de promoção e protecção (doravante, “PPP”) em favor da menor L.[…], que alegou encontrar-se em situação de risco por falta de condições mínimas para o seu desenvolvimento, pedindo a abertura da pertinente fase instrutória, com vista à aplicação de uma das medidas de protecção previstas no art. 35º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP).
02 O requerimento foi na mesma data recusado pela secretaria do tribunal com fundamento na omissão da indicação do valor da causa.
03 Reenviado pelo requerente ao tribunal para ser presente ao juiz, a recusa foi mantida por despacho de 10.10.2006 que, depois de atribuir ao procedimento a natureza genérica de processo de jurisdição voluntária, subsidiariamente regido pelo Código de Processo Civil (CPC), entendeu aplicável o seu art. 305º e, vista a omissão do valor na petição inicial, homologou o acto.
04 É dele que o MINISTÉRIO PÚBLICO traz o presente recurso, interposto como agravo com subida em separado e efeito devolutivo, mas recebido – depois das 17:07 de 16.10.2006 – com efeito suspensivo e regime de subida imediata nos próprios autos. Condensando as suas alegações, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
(1) O Processo Judicial de Promoção e Protecção não é uma acção cível.
(2) O PPP tem normas próprias e só lhe são aplicáveis, subsidiariamente, as normas do processo civil na fase de debate judicial e de recursos, mas “com as devidas adaptações”.
(3) Os interesses em jogo no âmbito da LPCJP não são compatíveis com os critérios gerais fixados para as acções cíveis.
(4) A lei não determina a contabilização dos interesses do menor no âmbito da promoção dos seus direitos e da sua protecção.
(5) A atribuição de valor ao requerimento de abertura do processo judicial de Promoção e Protecção não tem qualquer utilidade, por estarem definidas e reguladas as regras de competência do tribunal, bem como a instância de recurso, quer a forma de processo, quer a ausência de tributação das custas e demais encargos legais com o processo.
(6) Porque se mostram violados os art. 1º, 3º, 4º, a), c), 6º, 11º, 72º, 73º, 1, b), 100º, 102º, 1 e 2, 106º, 107º e 126º da LPCJP, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine a imediata prolação do despacho a que  alude o art. 106, 2, LPCJP.
05 Reeditando no essencial a argumentação subjacente ao despacho recorrido, foi proferido despacho de sustentação.
06 Cumpre conhecer, ao que se procederá no uso da faculdade conferida pelos arts. 700º, 1, g) e 705º, CPC, dada a manifesta simplicidade do caso. Ter-se-á entretanto presente que o âmbito dos poderes de cognição desta instância é definido pelas conclusões de quem recorre –  arts. 684º e 690º, Código de Processo Civil (CPC) e 124º, 1, LPCJP – e delimitado pelo quadro factual que não deva alterar-se por apelo aos mecanismos previstos no art. 712º, id.. Tal quadro é o que resulta enunciado no antecedente relato.

II FUNDAMENTAÇÃO

07 Enunciadas as conclusões, cumpre agora enunciar a questão a decidir. Esta consiste simplesmente em saber se, contrariamente ao decidido pelo despacho recorrido, na espécie processual em questão não há que indicar o valor.
08 São de toda a evidência em absoluto procedentes as conclusões enunciadas no agravo, pelo que este merece ser provido. A evidência da impropriedade da argumentação desenvolvida em sustentação da posição adoptada quanto à pretensa irregularidade do requerimento de introdução em juízo do PPP, pela falta de indicação de valor, encontra paralelo, aliás lamentavelmente, na insensibilidade demonstrada no despacho recorrido relativamente aos interesses protegidos na espécie processual em questão. Adiante-se já que estes interesses explicam a conformação estrutural da espécie processual, pelo que a compreensão deles deveria motivar só por si uma postura radicalmente diversa por parte do tribunal recorrido quanto ao suprimento de eventuais irregularidades. Com efeito, ainda que convicto da necessidade da indicação do valor, deveria o Exmo. julgador não se ater estritamente à questão da observância das regras dos arts. 467º, 1, f), e 305º e segs., CPC (compilação a que entenderá pertencerem quando não feita outra menção de origem), antes lhe cumpriria dar cabal expressão aos comandos dos arts. 265º, 1 e 2, e mesmo, se tal lhe ocorresse ser necessário em vista dos fins do processo, do art. 265º -A, não esquecendo o princípio inarredável do art. 266º. Ou seja, se persistisse na sua (errónea) opinião de que o valor do procedimento era indispensável, nenhum mal adviria aos autos se ele mesmo, usando da faculdade do art. 315º no contexto especialíssimo do PPP, fixasse ao processo o valor que o art. 312º estabelece para as acções que versem sobre interesses imateriais – como inegavelmente são os que se debatem no processo. Sendo o valor processual determinante da amplitude do seu ulterior reexame em via de recurso, é manifesto que qualquer erro de qualificação que leve a decisão do processo a ser recorrível em mais do que uma instância não seria limitativa de quaisquer direitos nem teria qualquer virtualidade para interferir no exame e na decisão da causa. Por isso, a omissão – que ao juiz não é vedado suprir oficiosamente nos termos e momento adequados – não teria mais dignidade processual do que a de um singela irregularidade irrelevante, categoria expressamente considerada na regra do art. 201º, 1, mas desconsiderada no exame liminar suscitado pelo escusado zelo da secretaria.
09 Tudo estaria indicado que fosse tido em conta, sobretudo em homenagem à celeridade: não já à desembaraçada gestão dos procedimentos que será de esperar em todo o processo e mais não é do que um corolário do princípio geral da utilidade, mas – muito especialmente – à que justifica a atribuição do carácter urgente ao procedimento de  promoção e protecção pelo art. 102º da LPCJP, que, subordinado à epígrafe “Processos urgentes”, estabelece no seu nº 1: “Os processos judiciais de promoção e protecção são de natureza urgente, correndo nas férias judiciais”. O tribunal, ao privilegiar o tratamento da pretensa irregularidade, conferiu ao objecto do processo uma importância menor, como aliás ficou evidenciado no efeito e regime de processamento do recurso interposto da decisão. Não cabendo a esta instância pronunciar-se sobre outras incidências de tal despacho – pese o respeito devido à convicção de acerto que será de presumir – pode e deve sublinhar na sua apreciação objectiva o quanto a decisão posterga os valores estritamente processuais que é chamada a repor. Do mesmo modo, cabe notar – não sem perplexidade – que não foi exercitada a faculdade a que se refere o art. 476º; se a opção seguida se pode compreender melhor no contexto do art. 266º, pode todavia questionar-se a sua propriedade na perspectiva da providência de promoção e protecção, cuja urgência efectiva resulta assim apreciavelmente desvalorizada.
10 ANDRADE definiu como processos de jurisdição voluntária os taxativamente previstos e regulados no livro III, titulo IV, cap. XVII do CPC. Depois, com o inultrapassável rigor e precisão da depurada forma que sempre emprestou ao enunciado das mais variadas questões, caracterizando-os, escreveu (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 71) que “Não há neles, em principio, um conflito de interesses a compor, mas um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse”. Os princípios fundamentais que lhes são aplicáveis são o do inquisitório por oposição ao do dispositivo, o da equidade predominando sobre o da legalidade, o da livre modificabilidade em contraste com a inalterabilidade das decisões de jurisdição contenciosa e, finalmente, ao da inadmissibilidade de recurso para o Supremo. Seguiu estreitamente, aliás, a lição de ALBERTO DOS REIS (cfr. Processos Especiais, Coimbra Editora, reimpressão, 1982, 397 e segs.), que àqueles princípios fazia acrescer um outro, de índole formal, a dispensa de forma articulada, cuja exigência seria discutível incluir entre os verdadeiros princípios da jurisdição contenciosa. Todos convergem entretanto em que, enquanto nos processos de jurisdição contenciosa, o tribunal é chamado a exercer a função jurisdicional própria dos órgãos judiciários, elaborando e formulando a solução concreta que decorre do direito substantivo aplicável, nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de negócios – negócios que a lei sob a fiscalização do Estado através do poder judicial (cfr. ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, 66). Importa, finalmente, sublinhar que à parca enumeração do CPC sucedeu em tempos mais recentes uma considerável expansão do instituto processual, que não será ousado ver associada ao alargamento da intervenção do Estado – pelo reconhecimento da natureza pública de um crescente número de interesses em áreas sociais – e à acentuação das preocupações do Estado com a realização da justiça agilizando os instrumentos processuais colocados ao seu serviço, procurando com celeridade e informalidade dar corpo a tais interesses que lhe compete gerir, e obviando ao risco do seu sacrifício no iter garantístico das formalidades próprias da jurisdição contenciosa.
11 Isto posto, urge reconhecer desde já que as regras que o art. 1.409º manda aplicar se referem aos processos de jurisdição voluntária que constam do Capítulo XVIII (Dos Processos de Jurisdição Voluntária) do Título IV (Dos Processos Especiais) do Código de Processo Civil, e não a outros quaisquer contemplados em legislação avulsa. Por isso, não é pertinente qualificar simplesmente o processo em apreço como de jurisdição voluntária (o que todavia é correcto) para daí logo extrair a sujeição da espécie às regras do CPC atinentes ao valor dos processos, pretendendo-as assim aplicáveis subsidiariamente (o que não é correcto). Dando de barato que seja significativa a omissão de referência ao art. 305º no corpo do artigo, apesar de este expressamente ressalvar a aplicabilidade dos arts. 302º a 304º, por se entender simplesmente como especificação do formato processual aplicável, e que, por conseguinte, não seja possível daí retirar a inexigibilidade da indicação do valor, não pode deixar-se sem exame o teor do art. 126º da LPCJP, lei que criou a espécie em apreço, que sob a epígrafe “Direito subsidiário” estatui: “Ao processo de promoção e protecção são aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações, na fase de debate judicial e de recursos, as normas relativas ao processo civil de declaração sob a forma sumária”. Ou seja, qualquer que seja o seu valor, o processo admite sempre recurso ordinário, pelo menos num grau.
12 Mas dúvidas não podem colocar-se ao julgador de que o interesse prosseguido com o procedimento se situa na área conceptual dos interesses imateriais. Ainda que a satisfação do interesse público da segurança e subsistência dos menores signifique necessariamente a afectação de meios financeiros, na sua essência o custo pouco importa quando o valor supremo é a vida de um incapaz. Dito de outro modo: se necessidade se vislumbrar na atribuição à causa de um valor, outro não pode ser senão o da alçada da Relação e mais € 0,01. Todo o que se atribua a este tipo de processo (ou não se atribua, se se preferir) estará em flagrante oposição com a realidade, razão pela qual poderá sempre o juiz, no caso até à prolação da decisão, fixar-lhe esse (art. 315º) oficiosamente. O que não poderá é arrogar-se o direito de conformar o procedimento de jurisdição voluntária segundo o entendimento que tenha do seu valor no momento do recebimento do requerimento inicial: o processo irá facultar com o seu desenrolar – afectado aos seus fins próprios – os elementos de que careça para possa assegurar-lhe validade e eficácia. O papel do juiz no tipo de procedimentos em apreço é sobremaneira a de provedor e não a de árbitro desinteressado da substância e fins do processo.
13 Porque procedem as razões condensadas nas conclusões do agravo, irá decretar-se, sem necessidade de mais alongada fundamentação, o seu provimento..

III DECISÃO

14 Decide-se, pelo exposto, conceder provimento ao agravo e, por conseguinte, determina-se a imediata prolação do despacho a que  alude o art. 106, 2, LPCJP.
15 Sem custas.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2006

(J.L. Soares Curado – Relator)