Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7465/2006-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: LETRA
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Prevalecendo-se o exequente da obrigação cambiária, declarada prescrita, e verificada a omissão da relação subjacente, não podem as letras, como meros quirógrafos, constituir títulos executivos, nos termos da al. c) do 46.º do CPC.
II. O endosso das letras deixa de relevar quando estas perdem as características de títulos de crédito.
III. O reconhecimento unilateral da dívida opera apenas no âmbito das relações imediatas.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO

A., S.A., deduziu embargos de executado na execução para pagamento de quantia certa que lhe movera B., S.A., alegando, designadamente, a prescrição das letras de câmbio, nos termos do art.º 70.º da LULL, porquanto, vencendo-se aquelas entre 30 de Maio de 1998 e 30 de Julho de 1998, apenas foi citada em 19 de Março de 2003, por causa imputável à embargada.
Contestou a embargada, alegando que a prescrição foi interrompida cinco dias depois da propositura da acção (29 de Dezembro de 2000), por efeito do disposto n.º 2 do art.º 323.º do CC, para além de que, mesmo havendo prescrição, as letras de câmbios constituem título executivo, nos termos da al. c) do art.º 46.º do CPC.
No despacho saneador, dando-se procedência à prescrição, julgaram-se os embargos de executado procedentes.

Inconformada, recorreu a embargada, que, alegando, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) A admitir a prescrição da acção cambiária, tal não abrange a obrigação constante da letra.
b) Uma letra prescrita continua a ser título executivo, pois preenche todos os requisitos exigidos pela al. c) do art.º 46.º do CPC.
c) Não se vislumbra a razão para que o requerimento executivo deva invocar a relação subjacente às letras de câmbio.
d) Tal significaria que as letras, para serem títulos executivos, deveriam conter a origem da dívida ou que a mesma tivesse de ser alegada nesse requerimento.
e) Nas acções executivas a causa de pedir não é o título executivo, mas o facto jurídico nuclear de determinada obrigação, muito embora reflectido naquele título executivo.
f) A letra de câmbio vale pelo direito que ela própria incorpora, que faz nascer e que consta do próprio documento dado à execução.
g) Não havendo qualquer identificação entre a causa de pedir nas acções executivas e o título executivo que lhes serve de base, não se vislumbra que não haja possibilidade de uma letra prescrita poder continuar a valer como título executivo.
h) Mantém-se inteiramente válido o requerimento executivo e a sua causa de pedir, por nela se encontrar cabalmente identificada a causa debendi que subjaz aos presentes autos.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, com a consequente improcedência dos embargos de executado.

A embargante não contra-alegou.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

No presente recurso, discute-se essencialmente se, prescrita a obrigação cambiária, a letra poderá continuar a servir de título executivo, nos termos da al. c) do art.º 46.º do CPC.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Estão provados os seguintes factos:

1. Encontra-se junto a fls. 6 da execução uma letra de câmbio, na importância de Pts. 530 111, com a data de emissão de 30 de Setembro de 1997 e vencimento a 30 de Maio de 1998, constando como sacador I. T. O. P., SA., como sacado P. Lda., e como aceitante P.I. B., S.A., constando ainda do seu verso “pague-se à ordem de B., S.A.”, sendo endossante I. T. O. P., S.A.
2. Encontra-se junto a fls. 7 da execução uma letra de câmbio, na importância de Pts. 530 111, com a data de emissão de 30 de Setembro de 1997 e vencimento a 30 de Junho de 1998, constando como sacador I. T. O. P., SA., como sacado P..Lda. e como aceitante A., S.A., constando ainda do seu verso “pague-se à ordem de B., S.A.”, sendo endossante I. T. O. P., S.A.
3. Encontra-se junto a fls. 8 da execução uma letra de câmbio, na importância de Pts. 530 111, com a data de emissão de 30 de Setembro de 1997 e vencimento a 30 de Julho de 1998, constando como sacador I. T. O. P., SA., como sacado P., Lda., e como aceitante A., S.A., constando ainda do seu verso “pague-se à ordem de B., S.A.”, sendo endossante I. T. O. P., S.A.
4. Apresentadas a pagamento nas datas dos respectivos vencimentos, as mesmas não foram pagas, nem nessas datas nem posteriormente.
5. Nas referidas letras não consta a origem do saque, nem a mesma foi alegada no requerimento executivo.

2.2. Delimitada a materialidade relevante para o conhecimento do recurso, importa conhecer do seu objecto, do qual emerge a questão jurídica já destacada.
Como é por demais sabido, o objecto do recurso é definido pelas respectivas conclusões, atento o disposto nos art.º s 690.º, n.º 1, e 684.º, n.º 3, ambos do CPC.
Por isso, as questões a conhecer no âmbito do recurso têm de estar contempladas nas suas conclusões. Sendo alegada certa questão e não sendo incluída nas conclusões do recurso, tal não constituirá objecto deste, a não ser que se trate de questão de conhecimento oficioso.
Ora, não obstante a recorrente tenha impugnado a prescrição das letras dadas à execução, na motivação do recurso, tal questão não foi transposta para as respectivas conclusões, como resulta do seu teor, ficando excluída do objecto do presente recurso, tanto mais que não respeita a questão de conhecimento obrigatório.
Consequentemente, não se conhece da questão da prescrição.
2.3. Assim, o objecto deste recurso acaba por se restringir à questão se, prescrita a obrigação cambiária, a letra, como mero quirógrafo, pode valer como título executivo, nos termos da al. c) do art.º 46.º do CPC (redacção anterior à dada pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março).
Apesar da alteração introduzida por este diploma, aquela norma não foi objecto de modificação substancial, tendo sido mantida a sua essência.
De harmonia com tal preceito, “os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável” por simples cálculo aritmético podem servir de base à execução, como títulos executivos.
Poderão as letras, cuja respectiva obrigação cambiária, caracterizada pela literalidade e abstracção, se encontre prescrita, valer como títulos executivos, enquanto documentos particulares que consubstanciam a obrigação subjacente, nos termos e para os efeitos do disposto na al. c) do art.º 46.º do CPC?
A resposta dominante, quer da doutrina, quer da jurisprudência, tem sido afirmativa, não sendo o negócio subjacente de natureza formal, e desde que nas letras se faça menção da causa da relação jurídica subjacente ou que a mesma, como causa de pedir, seja invocada no requerimento executivo.
Para o efeito, concorre substancialmente o regime de promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, sem indicação da respectiva causa, previsto no art.º 458.º do Código Civil, e no qual se estabelece uma presunção juris tantum favorável ao credor quanto à existência da relação fundamental. Embora dispensado dessa prova, o credor mantém o ónus de alegação da relação jurídica subjacente, como fundamento da pretensão jurisdicional, o mesmo é dizer, como causa de pedir.
Essa alegação, especificando a obrigação exequenda, é indispensável tanto para a parte contrária poder tomar posição quanto à pretensão formulada, como também para o tribunal poder ajuizar da sua validade (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Maio de 2003, www.dgsi.pt).
Perdendo o título executivo a sua natureza abstracta, nos termos da qual opera por si independentemente da sua causa, para valer como obrigação causal, necessita da indicação do respectivo facto constitutivo, porque sem este a obrigação não fica individualizada (Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág. 69).
Essa indicação pode advir do próprio título executivo ou, sendo este omisso, da alegação expressa no requerimento executivo.
Na doutrina, para além da alusão feita, refere-se, no mesmo sentido, Lebre de Freitas (A Acção Executiva, 2.ª ed., págs. 53/54), Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 7.ª ed., pág. 36) e Lopes do Rego (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª ed., pág. 82).
Na jurisprudência, além do referido aresto, mencionam-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Janeiro de 2001 e de 30 de Janeiro de 2001 [Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano IX, t. 1, págs. 71 e 85], de 29 de Janeiro de 2002 [Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano X, t. 1, pág. 64], de 30 de Outubro de 2003 e de 16 de Dezembro de 2004 (www.dgsi.pt).

Reportando-nos em concreto ao caso dos autos, desconhece-se por inteiro a relação jurídica subjacente ou fundamental, porquanto não consta nem resulta das três letras que foram apresentadas, nem, por outro lado, foi invocada no requerimento executivo, cingindo-se a alegação, exclusivamente, à relação cambiária.
Prevalecendo-se a exequente da obrigação cambiária, declarada prescrita, e verificada a omissão da relação subjacente, não podem as letras, como meros quirógrafos, constituir títulos executivos, nos termos da al. c) do 46.º do CPC.
Acresce, ainda, que a apelante não é o credor originário, na medida em que as letras vieram à sua posse através de endosso, forma de transmissão privativa dos títulos de crédito, a qual deixa de relevar quando as letras perdem essa característica e passam a ser meros documentos particulares (acórdão da Relação de Évora, de 8 de Março de 2001, Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVI, t. 2, pág. 249).
A qualidade de credor da exequente não lhe pode advir do reconhecimento unilateral da dívida, que não constitui fonte autónoma de obrigações, operando aquele apenas no âmbito das relações imediatas. De outra forma, seria uma situação algo incongruente, já que a obrigação cambiária, com as características da literalidade e abstracção, não obstante estar já prescrita, continuaria a regular o direito do credor na base de um título de crédito, quando o título é já um mero documento particular (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Janeiro de 2001, já antes referido).
Nestas condições, as letras, perdendo as características de títulos de crédito, deixaram de representar uma obrigação cambiária e passaram a ter a natureza de simples documentos particulares.
Todavia, faltando-lhes a menção da obrigação subjacente que visava satisfazer, não podem tais letras, como simples documentos particulares, importar a constituição e reconhecimento de uma determinada obrigação pecuniária.
Assim, as letras dadas à execução, estando prescritas, não podem valer como título executivo enquanto documentos particulares, nos termos da al. c) do art.º 46.º do CPC, concluindo-se da mesma forma que na decisão recorrida.

2.4. Em face do descrito, pode extrair-se de relevante a seguinte síntese:

1) Prevalecendo-se o exequente da obrigação cambiária, declarada prescrita, e verificada a omissão da relação subjacente, não podem as letras, como meros quirógrafos, constituir títulos executivos, nos termos da al. c) do 46.º do CPC.
2) O endosso das letras deixa de relevar quando estas perdem as características de títulos de crédito.
3) O reconhecimento unilateral da dívida opera apenas no âmbito das relações imediatas.

Nesta conformidade, improcede a apelação.

2.5. A apelante, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2) Condenar a recorrente no pagamento das custas.
Lisboa, 19 de Outubro de 2006

(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)