Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1978/12.7TVLSB.L1-1
Relator: EURICO REIS
Descritores: PROPOSITURA DA ACÇÃO
APELAÇÃO
INTERPRETAÇÃO A CONTRARIO SENSU
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
MATÉRIA DE FACTO
CRITERIO BÓNUS PATER FAMILIAE
PREENCHIMENTO ABUSIVO
LIVRANÇA EM BRANCO
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Tendo uma acção sido introduzida em Juízo no ano de 2012 e tendo a apelação sido admitida em data posterior à entrada em vigor do CPC aprovado por essa Lei Preambular, face ao estatuído nos artºs 5º n.º 1 e 7º n.º 1, este último por interpretação a contrario sensu, da Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, é o ritual processual previsto nesse Código que passa a regular, em sede de recurso, a tramitação dessa acção.
2. Existem razões para que o Juiz titular do processo, antes de proferir nos autos despacho saneador com valor de sentença, convide os Autores a suprir as insuficiências na exposição da matéria de facto por eles alegada quando, nos articulados por estes apresentados, sem prejuízo do que aí foi escrito acerca do incumprimento contratual por parte da Ré, não é assinalada, com a necessária clareza, a factualidade que justifica a afirmação por aqueles aí produzida, em termos que são perfeitamente perceptíveis por um declaratário normal colocado no lugar do real declaratário, ou, o que é o mesmo, por um diligente bom pai/boa mãe de família, de que ocorreu, por parte dessa mesma demandada, um preenchimento abusivo da livrança assinada em branco por esses demandantes e que ocorreu culpa do lesado se não na produção do dano (o surgimento da dívida), pelo menos no seu agravamento.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1. LZ e MM intentaram contra “B -, SA” a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária, que, sob o n.º …,  foi tramitada pela …Vara ., e na qual, com o despacho saneador (que julgou o Tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia e declarou que o processo é o próprio), foi proferida a seguinte decisão com valor de sentença que se estende por fls 107 a 109 do processo:
“…
Nos termos do art. 193º nºs 1 e 2 als. a) e b) do C.P.C., “é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”, sendo que se considera “inepta a petição quando falte… a indicação… da causa de pedir”; e “quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir”.
“… a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado duma conclusão; a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão” (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, comentário ao artigo 193º).
Os AA invocaram a celebração de um contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada celebrado entre R. e MZ, JZ e JCZ e a subscrição de uma livrança por MZ, JZ e JCZ e avalizada pelos AA.
Nos termos do art. 32º da L.U.L.L., aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º da citada lei, “o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.
A obrigação garantida pelo avalista é uma obrigação cambiária.
A obrigação que pode ser invocada contra os AA é, assim, a obrigação cambiária.
É estranho, pois, que os AA., ao formularem o pedido, refiram a relação subjacente à obrigação cambiária em vez de referirem a própria obrigação cambiária.
Será apenas uma formulação infeliz do pedido?
O certo é que não foi só na formulação do pedido que os AA deram ênfase à relação subjacente em detrimento da relação cambiária.
Tendo os AA alegado os factos constitutivos do direito da R. - a subscrição de livrança avalizada pelos AA -, deveriam ter, desde logo, alegado os factos impeditivos e extintivos do direito da R.
No domínio das relações imediatas, ou seja, no domínio das relações entre dois sujeitos cambiários que sejam concomitantemente os sujeitos de uma mesma relação subjacente, são oponíveis as excepções fundadas nessa relação subjacente.
Os AA subscreveram o documento no qual foi reduzido a escrito o invocado contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada e fizeram-no, não na qualidade de mutuários, mas sim na qualidade de avalistas.
Desse documento consta que os AA “autorizam o B, em caso de cumprimento do presente empréstimo e suas eventuais renovações, a preencher pelo valor que lhe for devido, conforme o preceituado neste contrato, a fixar as datas de emissão e de vencimento, bem como a designar o local de pagamento”.
Nos termos do art. 378º do C.C. é sobre os AA que recai o ónus da alegação e o ónus da prova da inobservância do acordo de preenchimento (Ac. do S.T.J. de 14 de Maio de 1996).
Os AA não invocaram a violação do pacto de preenchimento.
Os AA invocaram, isso sim, o incumprimento do contrato subjacente à livrança por parte da R.
Os AA não podem opor à R. tal incumprimento, pois os AA não são sujeitos da relação subjacente à livrança.
O invocado incumprimento é um meio pessoal de defesa dos avalizados/ mutuários contra a R.
Acresce dizer que os AA, apesar de invocarem o incumprimento do contrato subjacente à livrança por parte da R., em momento algum afirmaram a extinção da obrigação dos mutuários/ avalizados.
Não tendo os AA alegado factos impeditivos ou extintivos do direito da R., a petição inicial é inepta.
Caso estas falhas detectadas na petição inicial não a tornassem inepta, o que por mera hipótese de raciocínio se admite, então a R. deveria ser absolvida não da instância, mas do pedido, como defendido pela R.
*
Por todo o exposto, julgo a petição inepta e, consequentemente, absolvo a R. da instância, nos termos do art. 288º nº 1 al. b) do C.P.C.
Custas pelos AA.
Notifique e registe. ...” (sic).

Inconformados com essa decisão, os Autores dela recorreram (fls 111), rematando nestes termos as suas alegações:
“Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e a douta sentença recorrida ser revogada, considerando-se que os AA., ora Apelantes, invocaram factos impeditivos ou extintivos do direito do R., ora Apelado e, consequentemente, ordenando-se a prossecução dos autos.
Caso o Tribunal ad quem entenda, no que não se concede e apenas por dever de patrocínio se equaciona, que a petição inicial carece de ser completada, deve, igualmente, revogar a douta decisão recorrida e substituí-la por outra que declare a nulidade de omissão de despacho de aperfeiçoamento da petição inicial e, nos termos do art. 508º do Código de Processo Civil (na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho) …” (sic - fls 126).
E, para sustentar essa pretensão, formulam esses apelantes as seguintes 17 conclusões:
“1.ª A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se, por um lado, como refere a douta decisão recorrida, os AA apenas podem invocar a extinção da obrigação cambiária como facto impeditivo ou extintivo dos direitos do R. e, por outro lado, se os AA invocaram, ou não, a violação do pacto de preenchimento.
2.ª Os AA., ora Apelantes, alegaram na petição inicial e comprovaram documentalmente (Cfr. Doc. n.º 1 junto com a petição inicial), que subscreveram o próprio contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada celebrado com a R., no qual se previa a subscrição e o aval da livrança em causa.
3.ª As condições de preenchimento da livrança avalizada pelos AA eram as vertidas no clausulado desse contrato.
4.ª Os AA., ora Apelantes, alegaram na petição inicial que o R., ora Apelado, não lhes pode exigir o cumprimento das obrigações assumidas pelos obrigados principais, quando permitiu a estes atos expressamente vedados no contrato, que os AA também outorgaram, sem consentimento ou sequer conhecimento destes últimos.
5.ª No caso concreto, o aval prestado não é autónomo da obrigação garantida, pois os AA e o R. encontram-se no âmbito de relações contratuais entre ambos estabelecidas, que são as relações subjacentes à relação cartular em causa.
6.ª Os AA. e o R. encontram-se no âmbito de relações imediatas.
7.ª As regras próprias dos títulos de créditos não se aplicam no plano das relações imediatas, que são as relações que existem entre os sujeitos cambiários, que estão também em relação no contrato subjacente à relação cartular.
8.ª Nas relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações.
9.ª Nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária de aval deixasse de ser literal e abstrata, passando a relevar o conteúdo do que foi contratado (extra-cartularmente) entre as partes.
10.ª No caso em apreço, os avalistas também tiveram intervenção no negócio jurídico que esteve na base da subscrição da livrança por eles avalizada, conforme resulta de terem aposto as suas assinaturas no contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada – Cfr. Doc. n.º 1 junto com a petição inicial.
11.ª Razão pela qual não foi necessário celebrar um pacto de preenchimento, autónomo daquele contrato (o que aliás teria sido redundante e inútil).
12.ª Estando as partes nas relações imediatas, é lícito aos AA oporem ao R a exceção de incumprimento do contrato entre ambos celebrado, o que pode ser efetuado através da presente ação de simples apreciação negativa, sendo os factos que integram tal incumprimento contratual, devidamente descritos na petição inicial, impeditivos ou extintivos do direito do R.
13.ª Acresce que os AA., ora Apelantes, ao referirem expressamente que o R. não lhes pode exigir, na qualidade de avalistas, que cumpram as obrigações assumidas por MZ, JZ e JCZ, quando, sem o seu conhecimento ou consentimento, o R. permitiu que o montante disponibilizado por via do contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada fosse utilizado em termos que se encontravam expressamente vedados nesse contrato, está a invocar o preenchimento abusivo da livrança.
14.ª Nos termos do art. 508º do Código de Processo Civil (na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), findos os articulados, se o Tribunal considerar que existe insuficiência ou imprecisão da matéria de facto alegada, deve convidar as partes a apresentar articulado onde se complete ou corrija o inicialmente produzido.
 15.ª O despacho de aperfeiçoamento deve servir para o Tribunal convidar a parte a concretizar factos que, no seu entender, não tenham sido cabalmente alegados mas que sejam importantes para a boa decisão da causa.
16.ª O Tribunal a quo, considerando que existia uma incompletude nos factos alegados pelos AA., ora Apelantes, deveria ter proferido um despacho de aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil (na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), convidando-os a alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito do R.
17.ª Não tendo praticado um ato que a lei impunha e que poderia influir na boa decisão da causa – o que efetivamente sucedeu já que levou à absolvição da instância do R. - deve declarar-se a nulidade de omissão de despacho de aperfeiçoamento da petição inicial e, consequentemente, de todos os atos ulteriores, aí se incluindo a douta sentença recorrida, por omissão de uma formalidade que a lei impõe, nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho).” (sic - fls 122 a 126).

A Ré não contra-alegou.
Estes são, pois, os contornos da lide a dirimir.

2. Considerando o conteúdo das conclusões das alegações dos ora apelantes (as quais são aquelas que delimitam o objecto do recurso, impedindo esta Relação de conhecer outras matérias) as questões a dirimir nesta instância de recurso são, por ordem lógica e ontológica, as seguintes:
- perante o teor dos articulados apresentados nos autos pelas partes, nomeadamente os que o foram pelos Autores, impunha-se ou não que o Juiz do processo, antes de proferir nos autos despacho saneador com valor de sentença, convidasse os ora apelantes a suprir as insuficiências/imprecisões na exposição/concretização da matéria de facto por eles alegada?
- a petição inicial dos presentes autos é ou não inepta?

E sendo esta a matéria que compete julgar, tal se fará de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 652º a 670º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26 de junho, que é o aplicável ex vi artºs 5º n.º 1 e 7º n.º 1, este último por interpretação a contrario sensu, dessa Lei Preambular), tendo sido oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Desembargadores Adjuntos.

3. A decisão recorrida encontra-se integralmente transcrita no ponto 1. do presente acórdão.

4. Discussão jurídica da causa.
4.1. Perante o teor dos articulados apresentados nos autos pelas partes, nomeadamente os que o foram pelos Autores, impunha-se ou não que o Juiz do processo, antes de proferir nos autos despacho saneador com valor de sentença, convidasse os ora apelantes a suprir as insuficiências/imprecisões na exposição/concretização da matéria de facto por eles alegada?
4.1.1. Ao iniciar a análise crítica do recurso intentado pelos apelantes, interessa clarificar as razões pelas quais se começa esse escrutínio pela apreciação da questão jurídica suscitada em segundo lugar pelos recorrentes, quase como se apenas a título subsidiário, mas não o sendo verdadeiramente (de facto, não há, nitidamente, qualquer referência expressa nesse sentido), antes constituindo essa alegação um segundo argumento autónomo esgrimido contra a decisão com valor de sentença por eles criticada.
E essas razões são simples.
Efectivamente, pese embora o percurso cognitivo do Julgador, depois de apurar se o Tribunal é competente, se o processo é o próprio e se as partes têm personalidade e capacidade judiciária e se têm legitimidade para intervir na lide, se desenvolva na apreciação da aptidão ou ineptidão da petição inicial para permitir o prosseguimento da tramitação da acção, em termos de ritual processual formal, o despacho pelo qual se pode decidir pela formulação de um convite aos litigantes no sentido de ocorrer um aperfeiçoamento dos articulados já apresentados em Juízo é anterior àquele outro através do qual se dá corpo ao despacho saneador e se profere decisão nos termos previstos antes nos artºs 510º nºs 1 e 2 e 511º n.º 1 do CPC 1961 e agora nos artºs 595º nºs 1 e 2 e 596º n.º 1 do CPC 2013.
É o que resulta, com meridiana clareza, da circunstância de a norma que define as condições em que esse convite ao aperfeiçoamento é possível corresponder ao art.º 508º no CPC 1961 e ao 590º no CPC 2013.
E assim se precederá nestes autos, mesmo sabendo que, em termos do processo cognitivo do Julgador, alcançar a conclusão de que se mostra necessária a formulação de um convite ao esclarecimento pressupõe a rejeição daquela que aponta para a ineptidão da petição inicial, pois, como facilmente se compreende essas duas soluções assumem, em termos de pura lógica, posicionamentos claramente antagónicos.
4.1.2. Lendo a petição inicial introduzida em Juízo pelos ora apelantes, consta-se que os mesmos se insurgem contra o preenchimento por parte da sociedade Ré de uma livrança que, no âmbito da celebração de um preciso e devidamente identificado contrato de abertura de crédito em conta corrente, foi entregue à mesma “em branco”, mas na qual esses Autores apuseram as suas assinaturas e se constituíram avalistas dos subscritores desse título de crédito, pedindo, por isso, que “o Tribunal (declare) que os AA nada devem ao R a título de cumprimento do contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada celebrado em 3.03.2000” e invocando para sustentar essa pretensão que:
a) a Ré nunca deu conhecimento aos Autores do que foi sucedendo após a celebração do contrato (em que os mesmos foram terceiros outorgantes, na qualidade de avalistas - fls 18) até os notificar, mais de 12 anos depois de esse acordo ter sido firmado (…/03/2000 para 27/06/2012), que havia procedido, em 22/06/2012, à resolução desse contrato e que lhes concedia um prazo que terminava em 29/06/2012 para que os mesmos procedessem ao pagamento de € 917,864,50, 
b) ocorreu incumprimento por parte da Ré dos termos daquele contrato em causa,
c) a actuação da Ré permitiu que os títulos adquiridos perdessem todo o seu valor e que o valor desses títulos se tornasse inferior em mais de 10% (chegando a atingir 100%) ao valor utilizado na abertura de crédito - chegando o valor global dos títulos a ser inferior ao valor da abertura de crédito em utilização, acrescido de 10% - sem que essa sociedade tivesse exigido aos segundos outorgantes um reforço do depósito e sem que tivesse vendido os títulos e liquidado o saldo da conta.
É perante estas alegações e o conteúdo da contestação e da réplica feitas juntar, sucessiva e respectivamente, pela Ré e pelos Autores, que o Mmo Juiz a quo lavra a decisão que aqui se sindica.
Não custa aceitar que a argumentação dos demandantes é imperfeita - aliás, os próprios o reconhecem quando, em sede de recurso, pedem que seja determinado o aperfeiçoamento daquele seu articulado inicial.
Em todo o caso, as insuficiências manifestadas nessa peça processual assumem proporções distintas consoante as questões jurídicas que perceptivelmente são nela suscitadas - e que são perceptíveis por um qualquer diligente bom pai (ou boa mãe) de família ou, o que conceptualmente é o mesmo, por um qualquer declaratário normal colocado no lugar do real declaratário (artºs 487º n.º 2 e 236º n.º 2 do Código Civil) - a saber: por um lado, a possibilidade de um outorgante que intervém no negócio jurídico tão só na qualidade de avalista dos beneficiários do empréstimo, invocar a seu favor o incumprimento do contrato por parte da Ré, e, por outro, a ocorrência de um preenchimento abusivo, por parte da entidade bancária, da livrança assinada em branco por esses demandantes e de uma culpa do lesado se não na produção do dano (o surgimento da dívida), pelo menos no seu agravamento - artºs 570º a 572º do Código Civil.
Anote-se, contudo, que, neste último caso, haverá que ter em atenção a circunstância de os Autores terem pedido que o Tribunal declare que nada devem à Ré (e não que o valor da dívida é inferior ao montante inscrito na livrança referenciada nos autos), tudo isto para evitar eventuais contradições entre o pedido e a causa de pedir.
4.1.3. Retomando a escalpelização do argumentário expendido pelos ora apelantes na sua petição inicial, importa referir, relativamente à primeira das três questões jurídicas mencionadas no ponto 4.1.2. supra, que, ainda que com falhas (por exemplo, estes só na Réplica afirmam expressamente que são partes - ou seja, outorgantes - no negócio, embora tal decorresse naturalmente do texto do contrato firmado em …/03/2000), o fio de raciocínio desses Autores é claro e inequívoco, pelo que, face à opinião jurídica que o Mmo Juiz a quo deu a conhecer na decisão recorrida, esta deveria ter sido de decretamento da absolvição da Ré do pedido e não da instância.
Mas como não o foi e a Ré não se insurgiu contra esse julgamento, está vedado a este Tribunal Superior conhecer dessa matéria (n.º 2 do art.º 608º do CPC 2013, que corresponde ao n.º 2 do art.º 660º do CPC 1961).
Já quanto às outras duas questões jurídicas - que não são, de todo, meros argumentos - trazidos à liça pelos demandantes, essa clareza está muito esbatida.
Mas são suficientes os indícios ou sinais dessa manifestação de vontade dos Autores e acima de tudo, são-no, repete-se, para esse padrão aferidor dos comportamentos exigíveis a todos os que interagem no comércio jurídico a que o Legislador deu, em distintos lugares do Código Civil, os nomes de diligente bom pai (ou boa mãe) de família e declaratário normal colocado no lugar do real declaratário.
E porque assim é, tem necessariamente o Julgador que dar aos demandantes a oportunidade de corrigir essas insuficiências, até porque, com essa actuação, dá-se cumprimento a um importante princípio conformador/enformador do processo civil, a saber: o princípio do máximo aproveitamento dos actos praticados (pelas partes mas também pelo tribunal) num processo, valor esse de que o n.º 2 do art.º 195º do CPC 2013 (como antes era o n.º 2 do art.º 201º do CPC 1961) é uma inequívoca e incontornável emanação.
Com efeito, se esse convite não fosse formulado, os Autores ver-se-iam forçados a intentar uma nova acção (não se depara aqui uma recusa de recebimento da petição inicial confirmada por Juiz nem um indeferimento liminar dessa peça mas sim de uma absolvição da instância após o final da fase os articulados), sem qualquer ganho visível, bem pelo contrário, para uma boa administração da Justiça - sendo certo que essa é a função institucional e social que justifica a existência desse Poder de Soberania designado Tribunais (números 1 e 2 do art.º 202º da Constituição da República).
Deste modo, porque não foi praticado pelo Mmo Juiz a quo um acto que, para este Tribunal Superior, era necessário para assegurar a satisfação do direito constitucionalmente protegido dos Autores a um julgamento leal e equitativo, e tendo essa omissão influído manifestamente no exame e na decisão da causa (art.º 195º n.º 1 do CPC 2013 - norma que antes correspondia ao n.º 1 do art.º 201º do CPC 1961), isto é, porque aquele Julgador em 1ª instância conheceu de questão de que não podia ainda tomar conhecimento (art.º 615º n.º 1 d), in fine, do CPC 2013 - norma que antes correspondia à parte final da alínea d) do n.º 1 do art.º 668º do CPC 1961), há que retirar dessa constatação todas as devidas consequências.
4.1.4. E, por tudo o exposto, julgam-se, no essencial, procedentes as conclusões 14ª a 17ª das alegações de recurso dos apelantes e, consequentemente, por preterição de acto prescrito por Lei cuja omissão é idónea para influir no exame e na decisão da causa e porque o Mmo Juiz a quo, com o mesmo, conheceu de questão de que não podia ainda tomar conhecimento, declara-se nulo o recorrido despacho saneador com valor de sentença e determina-se ao Tribunal de 1ª instância que profira decisão convidando os Autores a aperfeiçoar o seu petitório nos termos que agora se encontram previstos nos nºs 2 b) e 4 do art.º 590º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por ser esse o Código que, após a sua entrada em vigor, passou a regular a tramitação da acção.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.

4.2. A petição inicial dos presentes autos é ou não inepta?
Face ao teor da determinação contida no ponto 4.1. supra, e por todas as razões aí expostas, como foi já adiantado no último parágrafo do ponto 4.1.1., dado o carácter lógica e ontologicamente antagónico das duas soluções, tendo-se concluído que existe fundamento para convidar os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial, tem forçosamente que ser declarado que esse articulado não padece de ineptidão.
O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.

*
5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 4.1. do presente acórdão, julga-se procedente a apelação e declara-se nula a decisão recorrida, determinando-se ao Tribunal de 1ª instância que, em sua substituição, profira despacho convidando os Autores a aperfeiçoar o seu petitório nos termos que agora se encontram previstos nos nºs 2 b) e 4 do art.º 590º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, por ser esse o Código que, após a sua entrada em vigor, passou a regular a tramitação da acção (art.º 5º nºs 1 e 4 desta Lei Preambular).

Custas pela parte vencida a final, uma vez que os apelantes obtiveram vencimento quanto à pretensão que deduziram em sede de recurso, e a apelada não deu causa à decisão declarada nula nem a acompanhou mediante a apresentação de contra-alegações.

Lisboa, 06/05/2014
Eurico José Marques dos Reis
Ana Maria Fernandes Grácio
Afonso Henrique Cabral Ferreira