Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
154/16.4YRLSB-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISAO DE SENTENÇA ESTRANGUEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. A ordem pública internacional do Estado português não se opõe à revisão e confirmação de uma sentença de um tribunal suíço que decretou o divórcio entre dois portugueses e simultaneamente homologou um acordo em que as partes estipularam atribuir à ex-cônjuge mulher a totalidade de um imóvel localizado em Portugal e atribuir ao ex-cônjuge marido a totalidade de um imóvel localizado na Suíça, obrigando-se a ex-cônjuge mulher a cooperar no sentido de se formalizar em Portugal a transmissão a favor do ex-marido da sua quota parte no imóvel localizado em Portugal.
II. O acordo referido em I tem natureza meramente obrigacional, pelo que a sentença que o homologou não ofende a exclusividade da competência dos tribunais portugueses em matéria de direitos reais sobre imóveis localizados em Portugal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 14.01.2016 Henrique (…), de nacionalidade portuguesa, residente em (…), na Suíça, intentou nesta Relação ação declarativa com processo especial de revisão de sentença estrangeira, contra Maria (…), de nacionalidade portuguesa, residente em (…), Suíça.
O requerente alegou, em síntese, que por sentença proferida no dia 18.3.2015 pelo Tribunal de Neuchatel foi decretado o divórcio entre o requerente e a requerida.
Concluiu pedindo que a referida sentença fosse revista e confirmada em Portugal, de forma a produzir os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa.
Citada, a requerida deduziu oposição, opondo-se a que a sentença fosse revista e confirmada quanto à partilha atinente aos bens do casal localizados em Portugal, na medida em que no nosso ordenamento jurídico a aludida partilha é efetuada noutra sede processual, a ação de inventário.
A requerida terminou pedindo que a sentença proferida pelo aludido tribunal suíço fosse revista e confirmada a fim de produzir os seus efeitos em Portugal apenas quanto ao divórcio entre requerente e requerida, devendo, de forma subsequente, ser instaurada ação de inventário, por qualquer dos cônjuges, para divisão dos bens do casal que se situem em território português e respetivos encargos associados aos mesmos.
O requerente respondeu à oposição, pugnando pela revisão e confirmação da totalidade da sentença revidenda.
Em alegações, o Ministério Público pugnou pelo deferimento do requerido, e as partes reiteraram a posição já anteriormente assumida.
Foram colhidos os vistos legais.
*
O tribunal é o competente e não se verificam exceções dilatórias, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
Está provada a seguinte
MATÉRIA DE FACTO
1. Os ora requerente e requerida casaram um com o outro em 12 de março de 1983, na paróquia de (…).
2. Em 18 de março de 2015 o Tribunal Civil do Tribunal Regional do Littoral e do Val-de-Travers, da República e Cantão de Neuchatel, Suíça, proferiu sentença em que decretou o divórcio entre os ora requerente e requerida, convidou o conservador do registo predial da circunscrição do Littoral e do Val-de-Travers a transferir para o nome da ora requerida a parte em compropriedade, correspondente a metade, pertencente ao ora requerente, sobre os imóveis situados em (…) Bevaix, constituindo os imóveis n.º (…) e (…) (garagem) do cadastro de Bevaix, e a inscrever a ora requerida como única proprietária destes últimos, ficando a cargo desta as dívidas e encargos que oneram os imóveis transferidos, bem como a dívida relativa à caixa de previdência no que diz respeito ao pagamento antecipado realizado, e ratificou a convenção celebrada entre o requerente e a requerida em 21 de julho de 2014, modificada aquando da audiência realizada em 27 de novembro de 2014, fazendo parte integrante da sentença.
3. Os ora requerente e requerida acordaram, nos termos da convenção subscrita em 21 de julho de 2014 e documentada a fls 9 a 12, 17 a 19 destes autos, que o ora requerente transferiria para a ora requerida a parte em compropriedade, correspondente a metade, que detinha sobre o apartamento que ambos haviam adquirido em (…) Bevaix, assumindo a ora requerida a responsabilidade pelo crédito hipotecário concedido para o dito apartamento; por seu lado a ora requerida declarou concordar em transferir a parte em compropriedade, correspondente a metade, que detinha e detém sobre o imóvel situado em Portugal, na Rua Principal, em (…), ficando a cargo do ora requerente a totalidade da dívida hipotecária relativa ao referido imóvel; mais ficou acordado que para permitir a referida transferência o ora requerente constituiria seu mandatário um notário português e a ora requerida comprometia-se a assinar o ato de transferência, sem custos para ela, não havendo lugar a tornas.
4. Em audiência realizada no tribunal em 27 de novembro de 2014, perante o juiz e com a presença do ora requerente e da ora requerida, consignou-se que, em complemento do acordo referido em 3, segunda parte, a ora requerida conferia mandato irrevogável ao notário escolhido pelo ora requerente para realizar a transferência da parte da compropriedade que a requerida detinha sobre o imóvel localizado em Portugal.
5. A sentença referida em 2 não foi alvo de impugnação, tendo transitado em julgado em 17 de abril de 2015.
O DIREITO
Nos termos do disposto no art.º 980.º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que:
a) Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
O art.º 984.º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supra citadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos.
No caso vertente mostram-se preenchidos os requisitos indicados sob as alíneas a), b) e e).
Quanto à alínea f), ou seja, a exigência de que a sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português:
Conforme expende Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, pág. 406), cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. Tal implica que a aplicação da lei estrangeira será recusada “na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local”.
A atual redação da alínea f) do artigo 980.º do CPC corresponde à que foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 no art.º 1096.º do anterior CPC. A redação anterior exigia que a sentença revidenda não contivesse “decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa”, ao passo que no texto atual exige-se que a sentença “não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.
Reatando a citação de Ferrer Correia (obra supra identificada, pág. 483), “não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja.”
Acresce que a introdução do advérbio “manifestamente” pretende frisar o carácter excecional da intervenção da ordem pública.
No dizer do Supremo Tribunal de Justiça, “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação" (acórdão de 21.02.2006, www.dgsi.pt, processo 05B4168).
No caso destes autos, está em causa uma sentença que decretou o divórcio e homologou o acordo simultaneamente celebrado entre os cônjuges quanto à partilha dos seus bens, incluindo bens localizados na Suíça, país do foro, e em Portugal.
A requerida manifesta-se quanto à revisão e reconhecimento da sentença no que concerne à partilha dos bens, na medida em que, segundo alega, o ordenamento jurídico português procede à destrinça, atribuindo-lhes processamentos distintos, entre o divórcio, dissolução do casamento, e a divisão do património comum do casal, a que se procede em processo de inventário.
Ora, tal afirmação não corresponde à realidade.
Por um lado, nada se encontra na nossa lei fundamental, que encerra os princípios básicos por que se rege o nosso ordenamento jurídico, que determine a obrigatória destrinça processual entre a separação de pessoas ou dissolução do matrimónio e a divisão do respeito património.
Por outro lado, a lei ordinária permite que na ação de divórcio as partes acordem quanto aos termos da partilha do património comum do casal, podendo mesmo a partilha ser efetuada no âmbito do processo de divórcio, como ocorre no divórcio por mútuo consentimento realizado na conservatória do registo civil (art.º 1175.º n.º 1 alínea a) do Código Civil, com a redação introduzida pela Lei n.º 61/2008, de 31.10 e artigos 272.º-A a 272.º-C do Código do Registo Civil, introduzidos pelo Dec.-Lei n.º 247-B/2008, de 30.12).
Não existe, assim, qualquer obstáculo, ao nível da ordem pública internacional do Estado português, para a confirmação da aludida sentença proferida pelo tribunal suíço.
Resta averiguar se haverá obstáculo à revisão da sentença, à luz da alínea c) do art.º 980.º do CPC, isto é, se a mesma versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
De facto, os tribunais portugueses são exclusivamente competentes “em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português” (alínea a) do art.º 63.º do CPC).
Ora, a sentença revidenda homologou um acordo entre os ex-cônjuges que versava o destino a dar a um imóvel localizado em Portugal. Porém, tal sentença não visou produzir efeitos no ordenamento jurídico, quanto ao estatuto real de tal imóvel. Apenas homologou um acordo produtor de efeitos obrigacionais, ou seja, um negócio jurídico vinculativo apenas dos respetivos outorgantes, mediante o qual ambos se obrigaram a diligenciar pela prática dos atos tendentes a produzirem, eles sim, a desejada modificação da situação jurídica do imóvel, quanto à titularidade do direito de propriedade, que deverá, segundo o acordo, concentrar-se na sua plenitude na esfera jurídica da requerida.
Não tendo, pois, o tribunal suíço proferido decisão em matéria de direitos reais quanto ao imóvel localizado em Portugal, nada obsta à revisão e confirmação da sentença, para produzir os respetivos efeitos jurídicos em Portugal.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão de revisão da mencionada sentença de 18 de março de 2015, proferida pelo Tribunal Civil do Tribunal Regional do Litoral e do Val-de-Travers, da República e Cantão de Neuchatel, Suíça, que decretou o divórcio entre os ora requerente e requerida, pelo que se confirma a mesma, para valer com todos os seus efeitos em Portugal.
Custas pelo requerente e pela requerida, em partes iguais.
Valor da causa: € 30 000,01 (art.º 303.º do C.P.C.)
Lisboa, 22.6.2016

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Jorge Leal

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Ondina Carmo Alves

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Lúcia Sousa