Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1048/12.8TBPDL-G.L1-6
Relator: GILBERTO JORGE
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A qualificação da insolvência como culposa pressupõe uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório

           Por apenso aos autos de insolvência de RM e LM e na sequência da declaração de abertura do presente incidente de qualificação da insolvência, veio o Sr. Administrador de Insolvência juntar parecer a que se refere o artigo 188.º n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - na redacção vigente à data da prolação da sentença e anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril (CIRE) - propondo a qualificação da mesma como fortuita por inverificação dos pressupostos legais de que a Lei faz depender para a qualificação como culposa.

           O Ministério Público pronunciou-se no sentido da qualificação da insolvência como culposa.

           Para tanto e em síntese alegou que os devedores não cumpriram o dever de se apresentarem à insolvência no prazo legal o que acarretou aumento do passivo/diminuição do activo e dispuseram de património a favor deles mesmos e de terceiros.

           Os devedores deduziram oposição, pugnando pela não qualificação da insolvência como culposa por inverificação dos respectivos pressupostos de direito, genericamente impugnados e, concomitantemente, pela qualificação da insolvência como fortuita.

            Nenhum credor se pronunciou.

           Notificado da oposição, o Ministério Público sustentou a pronúncia.

           Posteriormente, teve lugar a audiência prévia destinada, para além do mais, à discussão de facto e de direito, por se ter entendido que o estado dos autos permitia o conhecimento do mérito da causa face à inexistência de matéria de faco controvertida.

           Daí que o Mm.º Juiz a quo tenha decidido nos termos seguintes:

“(…)

                Em face do exposto:

1. Qualifico a insolvência dos devedores RM e LM como culposa;

2. Ficam afectados pela qualificação ambos os devedores, RM e LM;

3. Decreto a inibição do devedor RM, pelo período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, para administrar o património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

4. Decreto a inibição da devedora LM, pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses, para administrar o património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

5. Determino a perda de quaisquer eventuais créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por ambos os devedores, RM e LM;

6. Condeno ambos os devedores, RM e LM, na restituição dos bens ou direitos que eventualmente já tenham recebido em pagamento desses créditos referidos em 5;

7. Condeno ambos os devedores, RM e LM, solidáriamente, a indemnizarem os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, em liquidação de sentença.

(…)”.

Inconformados com tal decisão dela os insolventes interpuseram recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Os recorrentes apresentaram alegações que sintetizaram do modo seguinte:

1. O presente recurso tem por objecto a sentença que decretou a qualificação de insolvência dos recorrentes como culposa.

2. Ficará, porém, a interposição do recurso da sentença proferida nos autos prejudicada em caso de vir a ser julgada procedente a declaração de nulidade do despacho que declarou aberta a audiência prévia realizada aos 21.01.2014, consignando aí que “ a falta do Ilustre Mandatário dos insolventes não constitui fundamento para adiamento da diligência pelo que iniciar-se-á de imediato (art. 591.º n.º 3 do NCPC) ” e, consequentemente, de todos os actos processuais praticados a partir da comunicação do impedimento do Ilustre mandatário dos Insolventes.

3. Com efeito, a audiência teve início por volta das 11:44:32, tendo esta sido declarada encerrada quando eram 11:49:42, sem a presença do ilustre mandatário dos insolventes, quando não existiu uma verdadeira “falta” para os estritos efeitos do artigo 591.º CPC – ausência tout court – mas apenas um atraso do mandatário prévia e tempestivamente comunicado ao tribunal.

4. De facto, no dia designado para a realização da audiência prévia, o ilustre mandatário dos recorrentes informou a secção que às 10h30 tinha agendada audiência de julgamento na acção de processo sumário n.º 3108/11. 3TBPDL, do 1.º Juízo, à qual iria comparecer e que poderia chegar cerca de 10 a 20 minutos atrasado à diligência dos presentes autos, dando cabal cumprimento ao disposto no n.º 5 do art. 151.º, o que constitui justificado obstáculo ao início pontual da diligência nos termos no n.º 6 do mesmo dispositivo legal.

5. Ora, o Mm.º Juiz a quo apesar de saber que o mandatário estava presente no tribunal e que, com probabilidade, a muito breve trecho se apresentaria para o início da diligência, no termo de 20 minutos após a hora marcada já a diligência havia sido realizada e encerrada, sem a presença do ilustre mandatário dos insolventes.

6. Este facto colocou em crise os direitos, garantias de defesa e patrocínio judiciário constitucionalmente previstos (art. 20.º CRP) dos insolventes, o que constitui nulidade processual com influência no exame e decisão da causa, nos termos do disposto no art. 195.º do CPC, estando pendente reclamação sobre a qual o douto tribunal recorrido ainda não se pronunciou. Sem prejuízo do exposto e por mero dever de cautela:

7. Mal andou o Tribunal a quo ao proferir sentença decretando a qualificação de insolvência dos recorrentes como culposa, com fundamento no alegado incumprimento do dever de apresentação à insolvência por parte dos devedores e, ainda, por disposição de património a favor deles mesmos e de terceiros.

8. O parecer do Sr. Administrador de Insolvência, a que se refere o artigo 188.º n.º 2 do CIRE, foi no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, o qual não foi devidamente considerado na sentença “a quo”.

9. Os devedores eram sócios, sendo o devedor RM gerente da sociedade M Ld.ª, quando a 17.04.2012 se apresentaram à insolvência.

10. Os devedores prestaram diversas garantias a empréstimos contraídos pela M Ld.ª junto de diversas instituições financeiras, de modo que ambos os recorrentes foram “contaminados” pelas dívidas da sociedade a partir do momento em que esta se viu impossibilitada de cumprir as suas obrigações.

11. Entendeu, erroneamente, o douto Tribunal a quo que pelo menos desde inícios de 2010 e com maior incidência no ano de 2011, a sociedade e os devedores estavam impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, estribando esta convicção na pendência de acções executivas às quais não foi deduzido incidente de oposição à execução.

12. Porém, a pendência de acções executivas e a não apresentação de oposição à execução, não basta para, sem mais, se concluir que os recorrentes se encontravam em situação de insolvência nos anos de 2010 e 2011 e daí que incumpriram com o dever de apresentação à insolvência.

13. De facto, a sociedade M levou a cabo inúmeras negociações com a banca com vista à reestruturação do passivo e apenas a frustração destas, em inícios de 2012, motivou a apresentação à insolvência em 17 de Abril de 2012 e que veio a ser decretada em 24 de Abril de 2012.

14. Assim, só após 24 de Abril de 2012, efectivamente e na prática, foram os recorrentes chamados a cumprir a totalidade das obrigações avalizadas junto das instituições financeiras e bancárias – o que representava a quase totalidade do seu endividamento – pelo que apenas, nesse momento se constituiu a situação de insolvência daqueles.   

15. O Tribunal a quo não efectuou correcta ponderação do conjunto do passivo e das circunstâncias do incumprimento, não podendo, como fez presumir a impossibilidade de cumprimento, com base no não cumprimento de algumas obrigações.

16.  O incumprimento de algumas obrigações ainda que reveladoras de dificuldades económicas ocasionais podem ser passageiras.

17. Assim, fez o Tribunal a quo incorrecta aplicação dos artigos 3.º, 238.º n.º 1 al. d) e 18.º do CIRE, porquanto não se verificou o incumprimento do prazo de apresentação à insolvência.

18. Conforme reconhece o douto Tribunal a quo, a recorrente LM  não era titular de empresa, razão pela qual não estava obrigada ao dever de presentação à insolvência, nos termos e para os efeitos do art. 18.º nº 2 do CIRE.  

19. Em consequência, e por força do n.º 5 do art. 186.º do CIRE, não poderá a presente insolvência ser considerada como culposa com fundamento no incumprimento do dever de apresentação à insolvência.

20. Sustenta, ainda, o tribunal recorrido que os recorrentes dissiparam parcialmente bens do seu património e que dispuseram dos mesmos em proveito pessoal ou de terceiro, nos termos aludidos nas alíneas a) e d) do nº 2 do art. 186.º do CIRE.

21.  Porém, os recorrentes não se encontravam em situação de insolvência aquando dos negócios de venda de quinhões hereditários em causa, os quais tiveram por base a compensação de montantes mutuados pelas irmãs dos recorrentes.

22. Por outro lado, as dividas que ditaram a sua situação de insolvência resultaram das garantias prestadas a favor da sociedade M pelo que não é possível, sem mais, afirmar que os recorrentes actuaram com dolo ou culpa grave.

23.  Fez ainda o Tribunal a quo incorrecta interpretação da alínea a) e d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE uma vez que partindo de uma interpretação literal da norma, não pode concluir-se que a venda do quinhão hereditário configure um acto de destruição de bens, inutilização de bens, ocultação de bens ou desaparecimento de património.

24. Não se provou nem foi intenção dos recorrentes dissipar o património ou frustrar as expectativas dos seus credores com a venda dos quinhões hereditários.

25. Na realidade, e em decorrência das dificuldades económicas que assolaram a sociedade, os recorrentes contraíram dívidas junto de alguns familiares de forma que procuraram por via da cessão do quinhão hereditário ressarcir os seus credores.

26.  Como tal, não pode falar-se de disposição de bens em benefício pessoal ou de terceiros, posição essa perfilhada pelo Sr. Administrador de Insolvência.

27. De facto, aquando da liquidação dos quinhões hereditários em causa, poderá verificar-se que não se trataram de modo algum de negócios prejudiciais para a massa insolvente.    

28. A insolvência da sociedade M foi qualificada como fortuita, e estando a insolvência dos recorrentes na génese desta, por maioria de razão, também teria esta de ser qualificada com fortuita, o que não foi considerado pelo tribunal recorrido.

29. Pelo que nenhuma factualidade provada nos presentes autos permite concluir que os insolventes agiram com dolo ou culpa grave.

30. Assim, fez o Tribunal a quo errada interpretação do artigo 186.º n.ºs 1 e 2 al. a) e d), n.º 3 al. a) do CIRE, pelo que deve ser revogada a douta sentença recorrida e, consequentemente, ser a insolvência qualificada como fortuita.

Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se que seja revogada a douta sentença recorrida e, em consequência, seja a presente insolvência qualificada como fortuita, assim se fazendo a costumada justiça.  

O M.º P.º contra alegou formulando as seguintes conclusões:

1.ª Tendo em conta que o ilustre mandatário dos insolventes não compareceu à hora designada para a audiência prévia a realizar nos presentes autos, nem nos 10 minutos seguintes, por estar presente noutra diligência, cuja hora do termo era imprevisível aquando da abertura da audiência prévia nestes autos, forçoso se torna concluir que faltou à diligência agendada neste processo.

2.ª Assim, e nos termos do artigo 591.º n.º 3 do CPC, outro caminho não restava ao Tribunal a quo que não o de levar a cabo a realização da audiência prévia sem a presença do ilustre mandatário dos insolventes.

3.ª Desta forma, não foi praticado qualquer acto que a lei não admita, nem omitido um acto ou formalidade que a lei preveja, pelo que não se verifica a arguida nulidade por realização da audiência prévia sem a presença do ilustre mandatário dos insolventes.

4.ª Da factualidade dada como provada resulta, por um lado, que os insolventes, titulares de uma empresa à data, não cumpriram o dever de se apresentar à insolvência nos 60 dias seguintes ao conhecimento dessa situação que remonta ao ano de 2009, pelo que considera-se verificada a presunção de existência de culpa grave consagrada no artigo 186.º n.º 3 al. a) do CIRE.

5.ª Da factualidade dada como provada retira-se ainda que a omissão referenciada na 4.ª conclusão (violação do dever de apresentação à insolvência nos 60 dias seguintes ao conhecimento da situação de insolvência) conduziu ao agravamento da situação de insolvência nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência, pois que levou ao aumento do passivo dos insolventes nesse período (por força das dívidas que, então, e porque não se apresentaram atempadamente à insolvência, foram contraídas pelos insolventes e que se venceram em 2011, no montante de € 44.624,87), bem como à diminuição do seu activo (decorrente da não apreensão dos montantes cedidos pelas quotas hereditárias).

6.ª Mais se extrai da factualidade dada como provada que os insolventes dispuseram de parte considerável do seu património (concretamente dos montantes obtidos com as cessões das quotas hereditárias referidas nos pontos 10 a 14 dos factos dados como provados da sentença recorrida) em proveito próprio e de terceiros, pois que dispuseram de tais quantias apenas uns meses antes de se apresentarem à insolvência, em claro detrimento dos credores cujos créditos foram reconhecidos no âmbito dos presentes autos, diminuindo, consideravelmente o património de que dispõem para a satisfação das suas dívidas (tendo em conta, por um lado, o montante das mesmas e, por outro lado, o valor dos bens apreendidos).

7.ª Desta forma, não podemos deixar de considerar verificada a situação prevista no artigo 186.º n.º 2 al. d) do CIRE.

8.ª Face ao exposto, e em nosso entendimento, impõe-se qualificar, como o fez o Tribunal a quo, a insolvência como culposa, pelo que, salvo melhor entendimento, a sentença recorrida não merece qualquer reparo.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais dos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos cumpre agora apreciar e decidir ao que nada obsta.

II –   Fundamentação de facto

           O quadro factual dado como provado, na 1.ª instância, é o seguinte:

           1 – Ambos os devedores apresentaram-se à insolvência a 17.04.2012.

            2 – À data, os devedores eram sócios, sendo o devedor RM sócio-gerente da sociedade M Ld.ª.

           3 – Os devedores prestaram diversas garantias a empréstimos contraídos pela referida sociedade junto de diversas instituições financeiras, designadamente Banco ...

           4 – Assim, e entre outras, os devedores deram o seu aval às seguintes livranças subscritas pela sociedade Me destinadas a garantir os pagamentos de empréstimos contraídos junto do Banco .. S.A. no total de € 44.624,87: livrança no valor de € 38.967,93, emitida a 13.05.2011 e vencida a 23.05.2011, livrança no valor de € 510,32, emitida a 23.05.2011 e vencida a 02.06.2011, livrança no valor de € 813,13, emitida a 23.05.2011 e vencida a 02.06.2011, livrança no valor de € 708,42, emitida a 23.05.2011 e vencida a 02.06.2011 e livrança no valor de € 3.625,07, emitida a 23.05.2011 e vencida a 02.06.2011.

           5 – Nem a sociedade referenciada, nem os devedores, procederam ao pagamento do valor titulado pelas livranças e avales, pelo que a indicada credora instaurou processo executivo, com vista à cobrança coerciva das mesmas, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 1631/11. 9TBPDL.

           6 – Na referida execução, não foi obtida a satisfação daquelas quantias, tendo as mesmas sido reclamadas e reconhecidas no âmbito dos presentes autos.

           7 – Nas datas indicadas no ponto 4, corria termos contra o insolvente, no Tribunal Judicial da Comarca de São Roque do Pico, a acção executiva n.º 29/09. 3TBSRQ, instaurada pela Cooperativa VP CRL, no decurso da qual, a 06.04.2010, foi penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagoa sob o n.º 1706 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 3428.º, pertencente aos devedores.

           8 - O valor dos créditos reclamados no âmbito da presente insolvência ascende a € 899.954,71.

           9 – No âmbito da presente insolvência apenas foi apreendido para a massa insolvente, para além do imóvel supra referido no ponto 7 (no valor de € 210.000,00), o veículo automóvel de matrícula …, no valor de € 11.000,00.

           10 – O devedor RM herdou, por óbito do seu progenitor ocorrido em 21.04.2010, a quota ideal de 3/16 dos bens transmitidos, pertencendo ao acervo hereditário as verbas n.ºs 1 a 15 constantes da relação a fls. 333-334 dos autos principais.

           11 – Por escritura pública de 27.02.2012, o devedor RM cedeu à sua irmã MM , pelo preço declarado já recebido de € 1.000,00, o seu quinhão hereditário.

           12 – A devedora LM herdou, por óbito do seu progenitor ocorrido em 10.01.2009, a quota ideal de 1/8 dos bens transmitidos, pertencendo ao acervo hereditário as verbas n.ºs 1 a 21 constantes da relação a fls. 339-341.

           13 – Por escritura pública de 22.03.2012, a devedora LM cedeu à sua irmã MB , pelo preço declarado já recebido de € 25.000,00, o seu quinhão hereditário.

           14 - A cessão referida no ponto 13 teve como finalidade solver uma dívida nesse montante dos devedores para com a adquirente EB .

III – Fundamentação de direito

           De acordo com as conclusões da alegação de recurso – delimitadoras do seu objecto – as questões colocadas a este Tribunal prendem-se com a nulidade da audiência prévia por ter sido realizada sem a comparência do ilustre mandatário dos insolventes/recorrentes e com o mérito da decisão que, na sua perspectiva, deveria ter qualificado a insolvência como fortuita. 

            - Quanto à 1.ª questão.

Sustentam os apelantes que o despacho proferido oralmente na audiência prévia, com o seguinte teor “…a falta do ilustre mandatário dos insolventes não constitui fundamento para adiamento da diligência pelo que iniciar-se-á de imediato (art. 591.º n.º 3 do NCPC…”, deverá ser declarado nulo e, consequentemente, todos os actos processuais praticados posteriormente.

            O Mm.º Juiz a quo pronunciando sobre a invocada nulidade escreveu, em síntese, o seguinte:

            “(…)

                O despacho foi proferido no seguimento (i) da informação prestada pela Senhora Oficial de Justiça de que o ilustre mandatário substabelecido havia informado que tinha agendada uma audiência de julgamento noutro processo que corre termos por outro Juízo do Tribunal Judicial desta Comarca às 10:30h desse mesmo dia pelo que poderia chegar cerca de 10 a 20 minutos atrasado à diligência; (ii) da determinação do signatário em se aguardar 10 minutos após a hora designada (11:30h), ou seja, até às 11:40h; (iii) e da nova informação da Senhora Oficial de Justiça de que o seu Colega (que acompanhava a dita audiência) lhe havia transmitido que não havia previsão da hora para o termo e que, inclusivamente, faltava ainda a inquirição de várias testemunhas.

               Perante este quadro, e considerando ainda que a diligência fora adiada (por despacho a fls. 307/ref.ª 8217925) para a data em questão na decorrência do despacho a fls. 301/ref.ª 8215385, que reconheceu inteira razão aos Insolventes quanto ao alegado e requerido pelos mesmos a fls. 293 e ss./ ref.ª 1790961, mal se compreende em que medida consideram que o despacho padece do vicio  de nulidade.

               Aliás, a espera pelo ilustre Mandatário substabelecido por 10 minutos foi determinada por mera cortesia, conforme é hábito do signatário.

               Outra conduta não se impunha ao Tribunal (parece decorrer do ora exposto que havia a obrigação legal de se aguardar pelo termo da dita audiência de julgamento – mesmo sem hora prevista para o efeito – e, com isto, pela chegada do ilustre Mandatário substabelecido).

               Note-se que o despacho alude ao art. 591.º n.º 3 do NCPC estabelece expressamente que a falta do mandatário das partes não constitui motivo de adiamento da diligência.

               Acresce que os presentes autos têm natureza urgente (art. 9.º n.º 1 do CIRE).

               Também não se compreende em que medida o despacho sindicado colocou em crise os direitos dos Insolventes “ao contraditório, as suas garantias de defesa e patrocínio judiciário constitucionalmente previstos”, posto que haviam sido notificados da pretensão do Tribunal em conhecer do mérito da causa (fls. 291/ ref.ª 8133701) e a data para a realização da diligência foi designada por acordo (numa das datas sugeridas pelo ilustre Mandatário).

               Concluiu-se, pois, que o ilustre Mandatário substabelecido optou por dar prioridade à sobredita audiência, mesmo antevendo prejuízo para a realização da diligência à hora designada, limitando-se a alertar a Secretaria (e não o Tribunal mediante requerimento apresentado nos autos) para o efeito.

               E, conforme resulta da respectiva acta (fls. 365 e ss./ ref.ª 1845177 e 382 e ss./ ref.ª 8427568), a dita audiência findou decorridos os pretensos “10 ou 20 minutos”.

                Assim sendo, indefere-se a arguida nulidade.

            (…)”.

           Salvo melhor entendimento, é manifesto o acerto da decisão, não só porque a audiência prévia foi marcada mediante acordo, assegurando-se a compatibilização das agendas do juiz e do advogado, por forma a evitar-se o risco de sobreposição de datas de diligências, e assim garantir-se a realização efectiva na data acordada, acrescendo que o incidente de qualificação de insolvência é um processo urgente (art 9.º n.º 1 do CIRE), como também de modo algum a audiência de julgamento que reteve o ilustre mandatário judicial se pode considerar motivo imprevisto/inesperado fundamentador do adiamento da audiência prévia como pretendiam os insolventes/apelantes, bem como sabiam que o Tribunal pretendia conhecer do mérito da causa em face da notificação que lhes foi dirigida.

Como salientou o M.º P.º, nas suas contra alegações, “… tendo em conta que o ilustre mandatário dos insolventes não compareceu à hora designada para a audiência prévia a realizar nos presentes autos, nem nos 10 minutos seguintes, por estar presente noutra diligência, cuja hora do termo era imprevisível aquando da abertura da audiência prévia nestes autos, forçoso se torna concluir que faltou à diligência agendada neste processo;… assim, e nos termos do artigo 591.º n.º 3 do CPC, outro caminho não restava ao Tribunal a quo que não o de levar a cabo a realização da audiência prévia sem a presença do ilustre mandatário dos insolventes…”.

Por tudo quanto se deixou dito e porque não se vislumbra que da falta de comparência do ilustre mandatário dos insolventes tenha resultado prejuízo para a relação jurídica contenciosa, terá de concluir-se que não foi cometida a nulidade processual assacada ao Tribunal recorrido.

     - Quanto à segunda questão: - qualificação da insolvência como fortuita ou como culposa.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.

Com efeito, o devedor considera-se insolvente quando se mostrar impossibilitado para cumprir as suas obrigações ou quando, tratando-se de pessoas colectivas ou de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis (art. 3.º nºs 1 e 2 do CIRE).

O estado de insolvência traduz-se, portanto, numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas. Note-se que não é necessário que a impossibilidade do cumprimento diga respeito a todas as obrigações; basta, para que o devedor se considere em estado de insolvência, que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações.

Essa impotência constitui, evidentemente, uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também é verdadeiro: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, i.e., da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Facto Jurídico, em Especial Negócio Jurídico, Reimpressão, Coimbra 1998, pág. 110.

O Mm.º Juiz a quo escreveu na sentença recorrida o seguinte:

            “(…)

               Resulta evidente (veja-se a petição inicial e o relatório do Senhor Administrador da Insolvência a que alude o art. 155.º do CIRE) que a situação de insolvência dos devedores tem na sua génese, essencialmente, o colapso financeiro da sociedade M , de que ambos eram sócios e o devedor RM também era gerente. 

               E, conforme é frequente na prática comercial no que concerne às pequenas e médias empresas, ambos os devedores haviam prestado garantias referentes a empréstimos contraídos pela referida sociedade junto de diversas instituições financeiras (designadamente Banco ...), mormente avais pessoais.

               Neste quadro, ambos os devedores foram “contaminados” pelas dívidas da sociedade a partir do momento em que esta se viu impossibilitada de cumprir as suas obrigações.

               Assim se explica que, num primeiro momento, a dita sociedade e os devedores tenham sido demandados no âmbito (i) da execução comum n.º 1631711. 9TBPDL, que corre termos pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial desta Comarca (fls. 54, 109 e ss. e 265 e ss.), instaurada pela credora Banco ..S.A.- Sociedade Aberta em 22.06.2011, pela quantia exequenda de € 44.760,83; (ii) da execução comum n.º 652/12. 9TBPDL que corre termos pelo 2.º Juízo do tribunal desta Comarca (fls. 54, 98 e ss. e 254 e ss.), instaurada pela credora FB .L.C. em 08.03.2012 pela quantia exequenda de € 14.959,77; (iii) da execução comum n.º 965/11. 7TBPDL que corre termo pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial desta Comarca (fls. 57 e 68 e ss.), instaurada pela credora B S.A., em 02.05.2011, pela quantia exequenda de € 267.232,29; (iv) e da execução comum n.º 29/09. 3TBSRQ que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de São Roque do Pico e presentemente se encontra apensa aos autos principais (apenso B – fls. 58 e ss.), instaurada pela Cooperativa VP Crl (apenas contra a sociedade M e o devedor RM ) em 29.01.2010, pela quantia exequenda de € 55.000,93.

                E a situação financeira dos devedores não terá permitido cumprir o contrato de crédito contraído para a aquisição de um veículo motorizado, o que motivou a propositura da execução comum n.º 2531/11. 8TBPDL que corre termos pelo 5.º Juízo do Tribunal Judicial desta Comarca (fls. 56 e 183 e ss.), instaurada pela credora Caixa LF – Instituição Financeira de Créditos S.A. em 06.11.2011, pela quantia exequenda de € 25.298,83.  

               Não foi deduzido o incidente de oposição à execução em nenhuma das referidas acções executivas.

                Significa isto, pois, que pelo menos desde inícios de 2010, e com maior incidência no ano de 2011, a dita sociedade e os devedores estavam impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas.

                E, conforme alegaram na petição inicial de apresentação à insolvência, o devedor RM não auferia remuneração há mais de dois anos a essa parte.

               Os devedores e a dita sociedade M apresentaram-se à insolvência em 17.04.2012, tendo esta sido declarada por sentença de 24.04.2012, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 1047/12.0TBPDL que corre termos pelo 3.º Juízo do Tribunal Judicial desta Comarca (fls. 199 e ss.).

                (…)”.

            Até aqui nada a dizer, inexistindo qualquer controvérsia.

A discordância coloca-se na qualificação da insolvência como culposa efectuada pelo Tribunal a quo, apesar do Sr. Administrador da Insolvência ter emitido parecer no sentido da qualificação como fortuita que, na perspectiva dos insolventes/recorrentes, “… não foi devidamente considerado…”, o que é perfeitamente normal porquanto o parecer não é decisão. 

Conforme se alcança dos autos, o M.º P.º pugna pela manutenção da decisão recorrida uma vez que os insolventes, titulares de uma empresa à data, não cumpriram o dever de se apresentar à insolvência nos 60 dias seguintes ao conhecimento dessa situação que remonta ao ano de 2009, sendo que tal omissão conduziu ao agravamento da situação de insolvência nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência, pois que levou ao aumento do passivo dos insolventes nesse período (por força das dívidas que, então, e porque não se apresentaram atempadamente à insolvência, foram contraídas pelos insolventes e que se venceram em 2011, no montante de € 44.624,87), bem como à diminuição do seu activo (decorrente da não apreensão dos montantes cedidos pelas quotas hereditárias), para além de que os insolventes dispuseram de parte considerável do seu património (concretamente dos montantes obtidos com as cessões das quotas hereditárias referidas nos pontos 10 a 14 dos factos dados como provados da sentença recorrida) em proveito próprio e de terceiros, pois que dispuseram de tais quantias apenas uns meses antes de se apresentarem à insolvência, em claro detrimento dos credores cujos créditos foram reconhecidos no âmbito dos presentes autos, diminuindo consideravelmente o património de que dispõem para a satisfação das suas dívidas (tendo em conta, por um lado, o montante das mesmas e, por outro lado, o valor dos bens apreendidos).

A impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos que caracteriza o estado de insolvência, pode, porém, ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu (artº 185 do CIRE).

A insolvência é culposa quando esse estado tiver criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE).

A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.

A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.

O elemento objectivo afere a ilicitude da actuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência. O elemento subjectivo valora a conduta pelo conhecimento e vontade do devedor ou dos seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência, i.e., pelo dolo ou pela negligência daquele ou destes.

Mas não releva uma qualquer negligência – mas apenas uma negligência grave ou grosseira, quer dizer, uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso.

A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura. A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que actuaram, sempre poderiam ter agido e ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente. A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.

O desvalor que fundamenta a ilicitude da conduta do devedor ou dos seus administradores encontra-se no resultado: a criação ou agravamento da situação de insolvência.

 Devendo a ilicitude referenciar-se a esse resultado antijurídico, importa verificar, não apenas que esse resultado se produziu – mas se ele pode ser atribuído – imputado – à conduta.

A indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordináriamente difícil. Para facilitar essa qualificação, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.é., o encargo de demonstrar a sua existência.

Assim, a lei considera sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja pessoa singular, designadamente quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – aplicável à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores – cfr. art. 186.º n.ºs 2 al. d) e 4 do CIRE.

Trata-se de uma presunção absoluta, inilidível ou juris et de jure, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário (art. 350.º n.º 2, in fine, do Código Civil) Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, vol. II, Quid Juris, Lisboa, 2006, pág. 14 e Carvalho Fernandes, Qualificação da Insolvência, Themis, 2005, Edição Especial, Sobre o Novo Direito da Insolvência, 94.

Todavia, a lei presume também a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do insolvente, que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência - art. 186.º n.º 3 al. a) do citado diploma legal.

         Esta presunção é, porém, meramente relativa, ilidível ou juris tantum, dado que se limita a inverter o ónus da prova, podendo ser afastada mediante prova em contrário (art. 350.º n.º 2, 1ª parte, do Código Civil) Catarina Serra, O Novo Regime da Insolvência, 2ª edição, pág. 68 e Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2ª edição, pág. 175.

Contudo, para que se conclua pelo carácter culposo da insolvência, não basta assentar na culpa grave, ainda que simplesmente presuntiva, dos devedores ou dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer daquelas obrigações; exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.

Quer dizer, ao passo que a prova da violação do dever de não dispor dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros importa, irremissivelmente, a qualificação da insolvência como culposa, a violação, pelos insolventes, do dever de requerer a declaração de insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles – mas já não a imputação da situação de insolvência.

Nesta hipótese, sempre seria exigível a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor.

Ora, no caso sub judice, os insolventes não lograram ilidir a culpa grave apesar do afirmado nas 13.ª e 14.ª conclusões da alegação de recurso, uma vez que não se estriba em matéria considerada provada e nem tem qualquer correspondência com o quadro factual dado como provado, nomeadamente com os pontos 5 e 7 da fundamentação de facto.

Acresce que os insolventes ao disporem dos bens do modo descrito e dado como assente nos factos 10 a 14, da fundamentação de facto, seguramente que agravaram a situação de insolvência dos devedores.

O Tribunal a quo ao qualificar a insolvência como culposa discreteou nos seguintes termos:

“(…)

         Feito este enquadramento, alega o Ministério Público na sua pronúncia que os devedores dispuseram da parte do seu património em proveito próprio e de terceiros “(…) uns meses antes de se apresentarem à insolvência , em claro detrimento dos credores cujos créditos foram reconhecidos no âmbito dos presentes autos, diminuindo, consideravelmente o património de que dispõem para satisfação das suas dívidas, tendo em conta, por um lado, o montante das mesmas e, por outro lado, o valor dos bens apreendidos (…)”.

                Assiste-lhe inteira razão.

          Com efeito, e conforme já se deixou expresso no despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, confirmado pelo Tribunal ad quem (Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.06.2013,…, proferido a fls. 121 e ss. do apenso F), ambos os devedores alienaram os quinhões hereditários de que eram titulares, pouco tempo antes (27.02.2012 e 22.03.2012) da data em que se apresentaram à insolvência (a par da dita sociedade M ), sendo certo que ambos os progenitores haviam falecido anos antes (21.04.2010 e 10.01.2009), circunstâncias estas que, aliás, omitiram no requerimento de apresentação à insolvência (e de extrema relevância para o conhecimento da respectiva e real situação económica presente e passada).

            Note-se que o valor declarado da cessão de 27.02.2012, de € 1.000,00, e que terá sido utilizado pelo devedor para fazer face a despesas correntes (segundo alega), não tem eco no vasto património que integra a herança, desde logo imobiliário (designadamente a quota ideal de ½ de seis prédios rústicos, de 1/6 de dois prédios rústicos, de ¼ de um prédio rústico e de ½ de três prédios urbanos – fls 333-334 dos autos principais) e tendo presente a sua quota ideal de 3/16.

            O exposto é extensível à cessão do quinhão hereditário por banda da devedora LM  (fls. 339-341) dos autos principais; atente-se, ainda, nos valores constantes da relação de bens que foi apresentada nos autos de inventário em questão – fls. 234 e ss., dos autos principais), ao que acresce o agravante benefício injustificável da sua irmã adquirente EB , em detrimento de outros credores, referente ao pagamento do crédito que esta dispunha sobre os devedores.

           E não se diga que se incorre em vício de nulidade ao se afirmar que as vendas foram efectuadas por valores objectivamente reduzidos (tal como os devedores alegaram no mencionado recurso que interpuseram do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante), pois, conforme bem aduziu o cit. Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.06.2013, o senhor Administrador da Insolvência, perante os valores em questão, procedeu à resolução em benefício da massa insolvente dos quinhões alienados por considerar estarem verificados os pressupostos a que alude o art. 120.º do CIRE, mormente a prejudicialidade dos negócios para massa insolvente e a má-fé das adquirentes.

            Ambas as acções de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente instauradas pelas adquirentes foram julgadas improcedentes por não provadas por sentenças transitadas em julgado e proferidas nos apensos E e C (a sentença proferida neste apenso C foi confirmada pelo Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.09.2013…).

                Por seu turno, e ainda na senda das alegações de recurso do despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, também não se diga que não era exigível aos devedores, de acordo com a ponderação de um homem médio, que se tivessem abstido de praticar negócios em função da subsistência do seu agregado familiar, acrescendo que favoreceram a massa insolvente na media em que serviram para saldar dividas preexistentes contribuindo para a diminuição do passivo vencido.

             Com efeito, e conforme também se aduziu neste último mencionado aresto, o dito “homem médio” não deixaria de se ter apresentado à insolvência em momento anterior àquele em que a mesma já não lhe permitiria a subsistência do agregado familiar, nem deixaria de ter noção de que a venda dos quinhoes hereditárias já em momento de plena insolvência – atente-se, novamente, nas datas de realização das respectivas escrituras públicas - sempre seriam actos a ser tidos como de grave deslealdade perante os credores.

                Assim se vê a censurabilidade de tais actos de alienação.

             Conforme salienta o Ministério Público na pronúncia, “(…) o pagamento integral dessa dívida” – isto é, do crédito de que a adquirente EB  era titular – “em prejuízo da satisfação, ainda que parcial (porque rateada) dos demais credores, não deixa de representar um acto que, manifestamente, favorece um dos credores em relação aos demais, constituindo, assim, uma disposição de bens em proveito de terceiro (…)”.

                E, no domínio da outra face da moeda, temos também por verificada a forte censurabilidade dos actos de disposição dos valores auferidos/abatidos pelas cessões, em claro benefício dos próprios devedores (uma vez mais em detrimento dos credores): num caso integraram no seu património o contravalor auferido; e no outro caso deram por compensada a dívida que tinham para com a adquirente (ponto 14).

                Note-se, ainda a este propósito, que muito se estranha a alegação dos devedores neste incidente de que a credora Banco .. S.A., Sociedade Aberta, recebeu, “produto das quantias mutuadas pelos familiares dos Insolventes, o montante de € 25.000,00 para abatimento de quantias em dívida nos dias que antecederam a celebração da venda dos quinhões hereditários” (artigo 55.º).

                Subjaz desta alegação que se trata da mesma quantia que terá sido emprestada pela irmã do devedor RM e cuja cessão do quinhão hereditário serviu para saldar a dívida.

                Mas aquela credora comunicou aos autos que os valores recebidos pelos devedores antes da data da insolvência se reportam, ao invés, ao produto do resgate de PPRs que estes detinham na mesma instituição… (fls. 285 e ss. desses autos).

              Fica por apurar, afinal, o destino do empréstimo que havia sido concedido pela irmã da devedora LM .

             Destarte, considera-se inequivocamente verificada a presunção a que alude o art. 186.º n.º 2 al. d) do CIRE (aplicável às pessoas singulares atento o disposto no n.º 4 do mesmo preceito), que conduz, inilidível e iniludivelmente, à insolvência culposa por parte de ambos os devedores.

                (…)

             Já quanto ao devedor RM (que era, outrossim, sócio-gerente da dita sociedade), verifica-se que deixou ultrapassar, e em larga medida, o mencionado prazo, já que – ao contrário do que alega na oposição (artigos 10.º a 20.º) – as obrigações da dita sociedade mostravam-se vencidas muito antes da data da correspondente declaração (ou de apresentação à) de insolvência, conforme se enunciou supra quanto às acções executivas pendentes desde 2010 [aliás, esta sociedade refere na petição inicial de apresentação à insolvência que as obrigações que se mostram vencidas e que, à data, somam aproximadamente o valor de € 981.486, 52 (fls. 207 e ss. destes autos)].

               Sublinhe-se que o grande volume dos débitos do devedor (correlativos com os débitos da dita sociedade) se reporta a obrigações vencidas em 2010/2011 (veja-se as datas de vencimento indicadas na relação a que alude o art. 24.º n.º 1 al. a) do CIRE, a fls. 42-43 dos autos principais).

               Assim sendo, e também quanto ao devedor RM , se verifica a presunção a que alude o art. 186.º n.º 3 al. a) do CIRE (aplicável às pessoas singulares atento o disposto o n.º 4 do mesmo preceito).

               Considera-se, em suma, que a insolvência foi agravada pela actuação dolosa de ambos os devedores, nos moldes supra expostos, pelo que importa qualificá-la como culposa.

            (…)”.

Ora, face ao quadro factual apurado e dado como provado em 1ª instância – julgamento da matéria de facto cuja exactidão não vem discutida no recurso – afigura-se-nos que a decisão impugnada não é merecedora de censura, porquanto efectuou correcta aplicação do direito aos factos.

Justifica-se, por isso, sem necessidade de ampliar raciocínios ou explanar mais convincentes argumentos, que se acolham, no essencial, os fundamentos de facto e de direito constante da sentença sob censura, como sucede, no caso vertente. 

Tudo visto e ponderado, impõe-se pois a manutenção da decisão recorrida.

IV –Decisão

           Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

            Custas a cargo da massa insolvente.

           Gilberto Martinho dos Santos Jorge

          António Francisco Martins

Maria Teresa Batalha Pires Soares