Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25059/19.3T8LSB-A.L1-7
Relator: CRISTINA SILVA MAXIMIANO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
PEDIDO DE CONDENAÇÃO DE RENDAS
RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Numa acção em que a Autora, invocando a celebração de um contrato de arrendamento, pede a condenação do Réu a pagar-lhe as rendas mensais vencidas e em dívida, são admissíveis os pedidos reconvencionais de condenação da Autora “na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo reconvinte” e de compensação de créditos – artigo 266º, nº 2, alíneas a) e c), respectivamente, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
B intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A, peticionando a condenação do Réu “a pagar à A. as rendas vencidas e não pagas, correspondentes aos meses de Dezembro de 2018 (inclusive), e de Janeiro a Novembro de 2019, as quais se encontram em dívida e perfazem a quantia de 16.500,00€, mais a indemnização prevista no artigo 1041º n.º 1 CC igual a 20% deste valor que perfaz a quantia de 3.300,00, totalizando o valor em dívida na presente data igual a 19.800,00€, e ao pagamento de todas as rendas vincendas até efectivo e integral pagamento.”.
Alegou, para o efeito, em síntese útil, que: a A. é proprietária da fracção autónoma sita na Rua de Campolide nº .... E, Edifício …, Lisboa; A. e Réu celebraram em 05/05/2013, contrato de arrendamento referente àquele imóvel com prazo certo de 5 anos e com o valor mensal de renda de € 1.500,00; em Novembro de 2018, a A. informou o Réu que iria precisar do imóvel para o filho habitar, tendo o Réu concordado em sair do locado, pedindo à A. algum tempo para conseguir encontrar outra casa para morar, o que a A. aceitou; por isto, o Réu gozou o período de caução estipulado no identificado contrato; porém, após o gozo do período de caução, que a A. entendeu que corresponderia ao mês de Dezembro de 2018, o Réu não deixou de habitar a fracção, mas deixou de pagar à A. a renda mensal contratualizada, o que acontece até à presente data; o R. não pagou à A. as rendas correspondentes aos meses de Dezembro de 2018 (inclusive) a Novembro de 2019 (data da propositura da acção), as quais se encontram em dívida por falta de pagamento, no montante total de € 16.500,00; o terminus do contrato de arrendamento ocorrerá em 14/05/2021; a A. interpelou o Réu para proceder ao pagamento daquelas rendas, o que este não fez; e, encontrando-se o Réu em mora em relação ao pagamento das mencionadas rendas, tem a A. direito a uma indemnização igual a 20% do valor das rendas em dívida, no montante total de € 3.300,00.
O Réu contestou, invocando, desde logo, a excepção de não cumprimento do contrato prevista no nº 2 do art. 787º do Cód. Civil, e a compensação de créditos.
Para o efeito, alegou, em síntese útil, que: a A. nunca entregou ao Réu nenhum comprovativo do pagamento das rendas pagas por este, apesar de tal lhe ter sido solicitado pelo Réu por diversas vezes; por isto, o Réu tem o direito a recusar-se a pagar as rendas peticionadas nesta acção enquanto não lhe for dada a respectiva quitação pela A.; inexiste mora, já que os recibos de renda nunca foram emitidos pela A., pelo que não há lugar ao pagamento da indemnização prevista no art. 1041º, nº 1 do Cód. Civil; pretendendo a A. denunciar o contrato por alegadas razões de necessidade de habitação de um seu filho, não podia a A. desconhecer que teria de pagar ao Réu, enquanto inquilino, uma compensação equivalente a um ano de rendas, de acordo com os arts. 1101º, al. a) e 1102º, nº 1, ambos do Cód. Civil, no valor total de € 18.000,00, quantia essa, que, desde logo, o Réu informou a A. ter direito e esta se recusou a pagar; por isto, existe um crédito de € 18.000,00 da parte do Réu sobre a A., que pode e deve ser compensado com o crédito da A. relativamente às rendas vencidas e não pagas, correspondentes aos meses de Dezembro de 2018 e de Janeiro a Dezembro de 2019, no valor de € 18.000,00, pelo que, o crédito da A. aqui peticionado encontra-se extinto.
O Réu deduziu reconvenção, peticionando: (i) a declaração da mencionada compensação, com a inerente extinção do crédito aqui peticionado pela A.; (ii) a condenação da A. “na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo reconvinte desde março de 2010 até à presente data”.
A Autora respondeu às mencionadas excepções e à reconvenção, defendendo a respectiva improcedência; alegando, em síntese útil, que: nunca houve qualquer exigência ou interpelação do Réu junto da A. para esta entregar os comprovativos das rendas, nem nunca o Réu interpelou a A. no sentido de a avisar que, caso a mesma não passasse os recibos, deixaria de pagar as rendas; nunca houve qualquer exigência do Réu junto da A. para esta pagar algum valor a título de compensação ou a qualquer outro título, nem houve sequer qualquer diálogo entre ambos nesse sentido; a A. não pede a resolução do contrato, nem houve denúncia, nem terminou o contrato; o contrato vigora e renovou-se até 14/05/2021, conforme o Réu admite nos arts. 15º e 56º da contestação; a causa de pedir da A. é falta de pagamento das rendas, e a causa de pedir do Réu na sua reconvenção e nos termos como aí é deduzida não deve ser admitida, pois não cumpre os requisitos legais no âmbito do disposto no art. 266º do Cód. Proc. Civil.
Em 30/12/2020, foi proferida decisão, com o seguinte teor – para o que aqui interessa:
“O R. invoca que o A. pretende denunciar o contrato de arrendamento ora em causa.
*
Analisada a PI verifica-se que o A. vem pedir nos presentes autos:
D” eve (sic) o R. B ser condenado a pagar à A., as rendas vencidas e não pagas, correspondentes aos meses de Dezembro de 2018 (inclusive), e de Janeiro a Novembro de 2019, as quais se encontram em dívida e perfazem a quantia de 16.500,00€, mais a indemnização prevista no artigo 1041º n.º 1 CC igual a 20% deste valor que perfaz a quantia de 3.300,00, totalizando o valor em dívida na presente data igual a 19.800,00€, e ao pagamento de todas as rendas vincendas até efectivo e integral pagamento.”
*
Neste sentido, não está em causa uma denuncia contratual mas exclusivamente uma falta de pagamento de rendas, que o aqui A. pretende receber enquanto senhorio , já que o contrato irá terminar daqui a cerca de 4 meses.
*
Em face do exposto a reconvenção não é admissível – art.266º do CPC, uma vez que se baseia numa causa de pedir que não encontra eco na presente acção de condenação, aceitando até o R. que não tem pago as rendas, que pretende pagar , embora invoque que o não feito porque o A. não lhe passa recibos.”
Inconformado, o Réu recorre desta decisão, requerendo a respectiva revogação, “para que o Tribunal a quo possa apreciar a pretensão reconvencional do Recorrente”; terminando as suas alegações de recurso com as seguintes Conclusões:
“A) Na ação reconvencional deduzida, o Recorrente pediu (i) que fosse declarado extinto o crédito da Recorrida por compensação e, ainda, (ii) que fosse condenada a Recorrida na emissão dos recibos de renda em falta, referentes a todos os pagamentos de renda realizados pelo Recorrente.
B) O Tribunal a quo entendeu que a ação reconvencional não era admissível “uma vez que se baseia numa causa de pedir que não encontra eco na presente acção de condenação, aceitando até o R. que não tem pago as rendas, que pretende pagar, embora invoque que o não feito porque o A. não lhe passa recibos.”
C) O Recorrente não se conforma com a douta decisão que julgou legalmente inadmissível a sua reconvenção, razão pela qual recorre da mesma.
D) Com o devido respeito, o Tribunal a quo não interpretou corretamente os articulados (parecendo confundir dois pedidos reconvencionais num só…), em especial o articulado do Recorrente, e ao fazê-lo não só impediu o Recorrente de se defender e reconvir mediante a invocação da compensação, como vedou ao Recorrente o direito de invocar o seu contracrédito na presente ação judicial que lhe foi movida pela Recorrida, com isso colocando em causa o direito à tutela jurisdicional efetiva e o direito a um processo justo e equitativo.
E) A causa de pedir da instância reconvencional, relativamente ao primeiro pedido, consiste na compensação que o Recorrente alegou ter direito, fruto do contracrédito (do Recorrente) resultante da denúncia (pela Recorrida) do contrato de arrendamento (cfr. art. 4º da petição inicial), o qual resulta do art. 1102º, nº 1 do Código Civil.
F) A al. c) do nº 2 do artigo 266º do CPC é clara ao dizer que a compensação é admissível como fundamento de reconvenção, sendo esta também admissível para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.
G) Conforme o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 05/07/2018, teve oportunidade de defender, “Por força da redação dada ao art. 266.º n.º 2 al. c) do C.P.C. vigente, foi intenção do legislador que a compensação de créditos devesse ser operada por via de reconvenção, independentemente do valor do contracrédito.”.
H) Conclui-se, assim, que, no caso dos autos, deve ser permitido ao Recorrente defender-se mediante a invocação da compensação, sob pena de tal meio de defesa lhe ficar definitivamente vedado – com efeito, ainda que não se encontre impedido de, em ação a instaurar posteriormente, vir a pedir o reconhecimento do seu crédito, tal reconhecimento não ocorrerá a tempo de o poder contrapor ao crédito da Recorrida, sendo que esta vier a propor ação executiva, dificilmente o Recorrente logrará o reconhecimento da compensação mediante a dedução de embargos de executado.
I) Ou seja, vedando-lhe o Tribunal a quo a invocação do contracrédito na presente ação, significará que, na prática, ainda que o Recorrente possua (no âmbito dessa mesma relação), um contracrédito contra a Recorrida, o Recorrente será obrigado a, em primeiro lugar, satisfazer o crédito da Recorrida, correndo o risco de o seu contracrédito não vir a ser satisfeito, mormente em caso de insolvência da contraparte, sendo sabido que as normas processuais devem ser interpretadas – se necessário, em termos restritivos –, na busca da coerência e harmonia do sistema jurídico, à luz do seu escopo de realização do direito substantivo, não podendo constituir entrave a tal realização.
J) Nunca o Recorrente invocou a compensação como forma de suspender o pagamento das rendas.
K) Como resulta, de forma clara, do teor da contestação, a compensação foi declarada pelo Recorrente face à existência de um crédito, nascido na esfera jurídica do Recorrente, em resultado da denúncia do contrato operada pela Recorrida nos termos do art. 1102º, nº 1 do Código Civil (quantia que a Recorrida se recusou a pagar!).
L) A falta de pagamento das rendas resulta da recusa na emissão dos recibos de renda por parte da Recorrida.
M) Já quanto ao segundo pedido reconvencional (condenação da Recorrida na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo Recorrente), não se afigura como é que é possível (ou inteligível) que o Tribunal a quo possa afirmar que tal pedido reconvencional é inadmissível “… uma vez que se baseia numa causa de pedir que não encontra eco na presente acção de condenação…”, ao mesmo tempo que afirma que o Recorrente aceita que “…não tem pago as rendas, que pretende pagar, embora invoque que o não feito porque o A. não lhe passa recibos.”.
N) Tal como o Tribunal a quo reconhece, quer na petição inicial, quer na contestação, é alegada a falta de pagamento das rendas.
O) Sucede que na contestação foi expressamente invocada a razão pela qual foi suspenso o pagamento das rendas: por falta de emissão e entrega dos recibos de renda, depois dos mesmos terem sido, várias vezes, solicitados.
P) Tal factualidade foi expressamente assumida como matéria de excepção e é reconhecida pelos nossos Tribunais como causa justificativa de suspensão do pagamento da renda.
Q) Nos termos do nº 2 do art. 266º do CPC, a reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa.
R) Donde, salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo sido invocada como excepção a falta de emissão e entrega dos recibos de rendas como causa de suspensão do pagamento das rendas, o pedido reconvencional apresentado emerge do facto jurídico que serviu de fundamento à defesa.
S) Donde que a presente apelação deva, salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento, proceder.
T) Cabe, pois, revogar a decisão recorrida para que o Tribunal a quo possa apreciar a pretensão reconvencional do Recorrente.
U) E, com o devido respeito, muito menos pode o Tribunal a quo tratar os dois pedidos reconvencionais como se apenas um único estivesse em causa, com uma causa de pedir comum, quando não é, de todo, o caso.
V) No caso sub judice, conjugando a matéria de direito e os dispositivos legais, verificamos que o Tribunal a quo não atendeu a estas regras e argumentos, violando assim o douto despacho recorrido os arts. 13º e 20º da CRP, os arts 2º, 266º, 571º, 576º e 583º do CPC e os arts. 8º, 9º, 787º, 847º, 848º e 857º do Código Civil o que se invoca para os devidos e legais efeitos.”.
A A./ora apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambas do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do Recorrente que se delimita o objecto e o âmbito do recurso, seja quanto à pretensão do Recorrente, seja quanto às questões de facto e de direito que colocam. Esta limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º, nº 3 do Cód. Proc. Civil). De igual modo, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas de todas as questões suscitadas que se apresentem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (cfr. art. 608º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma). Acresce que, não pode também este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas, porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas - cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114-116.
Assim, o objecto do presente recurso consiste apenas em determinar se a reconvenção é ou não admissível.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados com interesse para a decisão do recurso são os que constam da parte I-Relatório desta decisão, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O Réu deduziu reconvenção, peticionando: (i) a declaração da mencionada compensação entre créditos, com a inerente extinção do crédito aqui peticionado pela A.; (ii) a condenação da A. “na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo reconvinte desde março de 2010 até à presente data” – cfr. parte final da contestação/reconvenção.
A decisão recorrida concluiu que “a reconvenção não é admissível – art.266º do CPC, uma vez que se baseia numa causa de pedir que não encontra eco na presente acção de condenação, aceitando até o R. que não tem pago as rendas, que pretende pagar , embora invoque que o não feito porque o A. não lhe passa recibos”.
O apelante discorda deste entendimento, considerando que se mostram verificados os pressupostos consagrados, respectivamente, nas als. c) e a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil, quanto aos dois pedidos reconvencionais deduzidos: (i) que fosse declarado extinto o crédito da A. por compensação; e (ii) que fosse condenada a A. na emissão dos recibos de renda em falta, referentes a todos os pagamentos de renda realizados pelo Réu, uma vez que este pedido emerge do facto jurídico que serviu de fundamento à defesa.
Apreciemos.
Estabelece o art. 266º, nº 1 do Cód. Proc. Civil que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”.
Como ensina Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª ed., 1985, p. 323: “Na reconvenção, há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor. Há uma contrapretensão (Gegenanspruch) do réu, há um verdadeiro contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Passa a haver assim uma nova acção dentro do mesmo processo. O pedido reconvencional é autónomo, na medida em que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes.”.
Com a dedução da reconvenção é o próprio conteúdo da relação processual que sofre uma significativa alteração, já que a reconvenção “representa uma cumulação sucessiva (não inicial) de objectos, tendo como principal especialidade a característica de este objecto ser um contra-objecto, já que se opõe àquele que é inicialmente proposto pelo autor.” – cfr. Marco António Borges, in “A Demanda Reconvencional, Quid Juris, 2008, p. 23.
A reconvenção funciona como um instrumento jurídico de aplicação do princípio da economia processual, na medida em que viabiliza que, num mesmo processo, sejam reunidas pretensões materiais contrapostas, para além de proporcionar melhores condições para o julgamento unitário de todo o litígio estabelecido entre as partes, evitando a prolação de decisões divergentes a propósito de realidades próximas ou interdependentes – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., Coimbra, 1997, p. 120.
Porém, a admissibilidade da reconvenção depende da verificação dos requisitos substantivos e processuais explicitados nos nºs 2 a 5 do mencionado art. 266º do Cód. Proc. Civil.
O nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil dispõe – para o que aqui interessa:
“2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) (…)
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;”.
Interpretando a al. a) desta norma, escrevem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração”, Vol. I, Almedina, 2019, p. 302: “O facto jurídico que serve de fundamento à ação (al. a)) constitui o ato ou relação jurídica cuja invocação sustenta o pedido formulado, como ocorre com a invocação de um direito emergente de um contrato, o qual também pode ser invocado pelo réu para sustentar uma diversa pretensão dirigida contra o autor. O facto jurídico que serve de sustentação à defesa envolve essencialmente a matéria de exceção, mas poderá igualmente assentar em factos que integrem a impugnação especificada dos fundamentos da ação. Nestes casos, o réu aproveita a defesa não apenas para se defender da pretensão do autor, mas ainda para sustentar nos mesmos factos uma pretensão autónoma contra aquele. Mariana França Gouveia, in “A causa de pedir na acção declarativa”, p. 270, afirma que “... a causa de pedir, para efeitos de admissibilidade de reconvenção, deve ser definida através do facto principal comum a ambas as contra pretensões", ou seja, que "os factos alegados devem ser selecionados através das normas jurídicas alegadas, assim se determinando quais são os principais. Estabelecidos estes, se um deles for principal para a ação e para a reconvenção, haverá identidade de causa de pedir e, logo, estará preenchido o requisito do art. 274°, n° 2, al. a)”. Assim, se autor e réu alegam o mesmo contrato como facto constitutivo das suas pretensões, verificada esta coincidência, entende-se que a causa de pedir da ação e da reconvenção é a mesma (p. 269)”.
Como se escreve a este propósito no Acórdão do TRG de 28/06/2018, José Alberto Moreira Dias, acessível em www.dgsi.pt: “É pacifico na doutrina e na jurisprudência que a expressão «quando o pedido do réu emerge do mesmo facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa» é o mesmo que causa de pedir, isto é, de acordo com a primeira parte da enunciada previsão legal, admite-se a reconvenção quando o pedido reconvencional tem a mesma causa de pedir da ação, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca. Já a segunda parte desse normativo tem o sentido de que ela só é admissível quando o réu invoque como meio de defesa, qualquer ato ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor, ou seja, embora o pedido reconvencional não se enquadre estritamente na causa de pedir da ação, aquele emerge de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, no sentido de que resulta dos factos com os quais indiretamente se impugna os alegados na petição inicial”.
O pedido reconvencional emerge do mesmo facto jurídico quando tem a mesma causa de pedir que baseia o pedido da acção ou emerge do acto ou facto jurídico que serve de fundamento à defesa, pretendendo-se, contudo, neste caso, obter um efeito diferente desse acto ou facto, reduzindo, modificando ou extinguindo o pedido do autor.
Quer dizer: no caso de a factualidade invocada pelo réu-reconvinte se enquadrar na causa de pedir que serve de fundamento à defesa, não basta que o réu alegue qualquer acto ou facto jurídico para que dele se possa extrair um outro efeito jurídico de que se pretenda fazer valer através do pedido reconvencional. É necessário um plus: que o facto alegado, a provar-se, produza o desejado efeito útil defensivo, isto é, tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelo autor.” – cfr. Marco António de Aço e Borges, in ob. cit., p. 42.
Por sua vez, Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, 2000, p. 32, refere, quanto à reconvenção reportada a factos que servem de fundamento à defesa, que é necessário que o facto invocado, a verificar-se, produza efeito útil, ou seja, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, p. 517-518, esclarecem que a referência a facto jurídico que serve de fundamento à defesa deve entender-se como reportada às exceções peremptórias, ou seja, aos factos jurídicos susceptíveis de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (cfr. art. 576º, nº 3 do Cód. Proc. Civil), ainda que a coincidência seja parcial.
Cfr., no mesmo sentido, Acórdão do TRG de 23/03/2017, Francisca Vieira; e do TRP de 01/07/2010, Amaral Ferreira, ambos acessíveis em www.dgsi.pt; salientando-se neste último Acórdão: “desde que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o R., ao contestar a tese do A., invocou para justificar os fundamentos da sua própria defesa, mantendo, todavia, outros que exorbitam estritamente dessa defesa uma conexão com eles, tanto basta para que a reconvenção seja admissível”.
Descendo ao caso dos autos, e quanto ao pedido reconvencional de condenação da A. “na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo reconvinte desde março de 2010 até à presente data, vemos que:
a) na petição inicial, a A. invoca como causa de pedir a celebração do contrato de arrendamento com o Réu e a falta de pagamento por parte deste das rendas mensais estipuladas;
b) na contestação, o Réu confessa que não procedeu àquele pagamento, mas invoca como defesa a excepção peremptória de não cumprimento prevista no nº 2 do art. 787º do Cód. Civil, alegando que a A. nunca lhe entregou nenhum comprovativo do pagamento das rendas que pagou, apesar de o ter solicitado por diversas vezes, e, por isto, tem o direito a recusar-se a pagar as rendas enquanto não lhe for dada a respectiva quitação pela A.;
c) na reconvenção, o Réu peticiona a condenação da A. “na emissão de todos os recibos de renda respeitantes aos pagamentos realizados pelo reconvinte desde março de 2010 até à presente data”.
Perante este circunstancialismo, é cristalino que este pedido reconvencional estriba-se precisamente na invocada excepção de não cumprimento em virtude da falta de emissão e entrega dos recibos de rendas pagos. Ou seja, emerge do facto jurídico que serviu de fundamento à defesa do Réu.
Nesta conformidade, concluímos que se mostra verificado o requisito de admissibilidade substantiva consagrado na al. a) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil relativamente ao pedido reconvencional ora em referência, ao contrário do entendimento do tribunal a quo, sendo, por isto, procedente a apelação nesta parte.
Relativamente ao pedido reconvencional formulado de declaração da compensação, com a inerente extinção do crédito aqui peticionado pela A., é evidente que o mesmo se subsume à situação prevista na al. c) do nº 2 do preceito a que vimos aludindo.
Com efeito, estabelece tal alínea – relembramos aqui - que a reconvenção é admissível “quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor”.
No que tange a este requisito material da reconvenção, afigura-se cristalino que nos casos aqui visados não se exige nenhum tipo de conexão material entre o crédito invocado pelo autor e aqueloutro invocado pelo réu – cfr. Acórdão do TRE de 22/02/2018, Silva Rato, acessível em www.dgsi.pt, onde se esclarece: “Como resulta à saciedade do disposto na alínea c), do n.º2, do art.º 266º do NCPC, é admissível a reconvenção, quando o réu pretenda o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor, isto, independentemente do facto jurídico de que emergem o crédito do autor e o crédito do reconvinte. Ou seja, o factor de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção, que permite a dedução desta, é o da reclamação, por parte do réu, de um contra-crédito que detém sobre o autor e que pretende ver compensado, ou mesmo receber o excesso a seu favor.”.
No caso vertente, da leitura da contestação/reconvenção, resulta de forma clara que o Réu invoca um crédito sobre a Autora adveniente de “uma compensação equivalente a um ano de rendas, de acordo com os arts. 1101º, al. a) e 1102º, nº 1, ambos do Cód. Civil, no valor total de € 18.000,00, quantia essa, que, desde logo, o Réu informou a A. ter direito e esta se recusou a pagar” em virtude da pretensão da A. de, extrajudicialmente, “denunciar o contrato por alegadas razões de necessidade de habitação de um seu filho”, de acordo com os arts. 1101º, al. a) e 1102º, nº 1, ambos do Cód. Civil.
Nesta conformidade, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, concluímos que se mostra verificado o requisito de admissibilidade substantiva consagrado na al. c) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil relativamente ao pedido reconvencional ora em referência, ao contrário do entendimento do tribunal a quo, sendo, por isto, procedente a apelação nesta parte.
Pelo exposto, a decisão recorrida deve ser totalmente revogada e substituída por outra em que se considere verificados os requisitos previstos na als. a) e c) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil, e, caso não se verifique qualquer outro obstáculo a tal, se conclua pela admissibilidade dos dois pedidos reconvencionais formulados.
Termos em que se conclui pela total procedência do presente recurso.
*
As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelada – cfr. art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 1º, nºs 1 e 2 do Regulamento das Custas Processuais.
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente procedente, e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra, em que se considere verificados os requisitos previstos na als. a) e c) do nº 2 do art. 266º do Cód. Proc. Civil, e, caso não se verifique qualquer outro obstáculo a tal, se conclua pela admissibilidade dos dois pedidos reconvencionais formulados.
Custas pela apelada.
*
Lisboa, 6 de Julho de 2021
Cristina Silva Maximiano
Maria Amélia Ribeiro
Ana Resende