Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1695/09.5PJLSB.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: DIFAMAÇÃO
INTERNET
DADOS DE TRÁFEGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - estando apenas em causa a obtenção da identificação de um utilizador de um endereço IP ou o número de IP usado por um determinado indivíduo, em circunstâncias temporais determinadas, a competência para a respectiva obtenção é do M°P°

II - a identificação de um determinado endereço de IP conjugada com a identidade de quem o utilizou num dado dia e hora não revela informação sobre o percurso da comunicação nem sobre outro eventual tráfego comunicacional da pessoa em causa

III - os direitos constitucionais dos arguidos não são absolutos, face aos direitos dos restantes cidadãos, mormente das vítimas em processo penal, e as entidades públicas, ao enquadrar o uso dos diversos meios de prova têm de considerar os direitos dos vários intervenientes processuais

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

S..., assistente nos autos, não se conformando com a decisão que absolveu J... da prática de um crime de difamação na forma continuada, agravado pelo maio utilizado, facilitador da sua divulgação, p.p. pelos art°s 180°, n° 1, 183°, n° 1 alínea a) e 30°, n° 2 do Código Penal, veio interpor o presente recurso.

Conclui que
a) Nada obsta que se peça às operadoras que forneçam dados de tráfego que estejam armazenados e que sejam relevantes para a prova das infracções denunciadas;

b) Fornecer esses dados não corresponde a intercepção de comunicações privadas, tal como se entendeu na decisão recorrida;

c) O enquadramento dos factos deve fazer-se com base no art° 2°, n° 1 al. g) da Lei do Cibercrime (Lei n° 32/2008, de 17 de Julho),

d) Ao decidir o contrário, a douta sentença recorrida violou o disposto nesta norma.

Pede se dê provimento ao recurso e se revogue a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que condene o arguido pelo ilícito praticado e no pedido cível deduzido, como é de lei.

2. O arguido recorrido conclui, em síntese, que uma decisão que acolhesse a pretensão da assistente relativamente à prova rejeitada pelo Tribunal "a quo" consubstanciaria uma interpretação do art° 189°, n° 2 do C.P., manifestamente contraria ao estatuído no art° 32°, n° 8 da CRP, no sentido de que seria possível a utilização de prova considerada legalmente admissível.

Do mesmo modo, ditaria a admissibilidade de obtenção de prova em processo penal se, observância da limitação legal subjacente à obtenção da mesma, e em patente violação do princípio da legalidade.

Pugna pela manutenção do decidido.

3. O M°13° entende que o recurso deve proceder porquanto ..." os elementos solicitados e fornecidos pela Made in Work e pela Google Inc - e as informações com fundamento nos

registos de IP identificados pelas supra mencionadas entidades ulteriormente veiculadas aos autos pela Optimus e pela Ribatel - não são dados de tráfego mas antes "dados de base" de comunicações electrónicas.

Assim sendo, a obtenção destes dados informáticos não depende de autorização judicial por caberem na previsão do art° 18° da Lei do Cibercrime.

Com efeito, os "dados de base" podem ser obtidos por via de injunção nos termos do art° 14° da Lei do Cibercrime sendo tal injunção da competência do M°P°.

Acresce que segundo o art° 11°, n° 1 c) da Lei do Cibercrime ..."as disposições processuais previstas no presente capítulo aplicam-se a processos relativos a crimes cometidos por meio de um sistema informático, com excepção do disposto no art° 18° e 19° da mesma Lei.

O crime de difamação p.p. pelo art° 180° do Código Penal conjugado com o art° 183°, n° 1 al a) e 30°, n° 2 do mesmo diploma, foi inequivocamente cometido por meio informático. Assim sendo, os elementos probatórios recolhidos no inquérito pelo M°P° foram validamente obtidos, não estando a prova recolhida ferida de qualquer nulidade, nem na sua obtenção foi utilizado meio proibido de prova.

Deve, pois, o arguido ser condenado pelo crime de que vem acusado.

3. Nesta Relação, o PGA, em bem fundamentado Parecer, pugna igualmente pela revogação da decisão recorrida.

Defende, em síntese, que ..." submeter a obtenção de um endereço de IP ao regime dos dados de tráfego teria como consequência que... a sua obtenção não seria permitida em todos os casos, apenas quando se investigassem crimes mais graves."

Alega que a orientação jurisprudencial estruturada vai no sentido de que estando apenas em causa a obtenção da identificação de um utilizador de um endereço IP ou o número de IP usado por um determinado indivíduo, em circunstâncias temporais determinadas, a competência para a respectiva obtenção é do M°P°, e indica vária jurisprudência no sentido indicado.

4. A questão objecto do recurso é a de saber se a decisão que considerou prova nula a prova recolhida no inquérito e validada na instrução se deve manter, ou se, ao invés, a decisão deve ser revogada e substituída por outra que

condene o recorrido nos termos da acusação e do pedido cível.

Apreciando:

A questão está bem tratada quer pelo M°P° quer pela recorrente.

Assim ..." a identificação de um determinado endereço de IP conjugada com a identidade de quem o utilizou num dado dia e hora não revela informação sobre o percurso da comunicação nem sobre outro eventual tráfego comunicacional da pessoa em causa. Apenas comprova que essa mesma comunicação ( e apenas essa ) foi efectuada por via daquele número técnico de acesso à Internet. ...com essa informação apenas se estabelece ligação entre uma determinada comunicação que se conhece já e a respectiva origem... obter a identificação do utlizador de um endereço de IP ... num determinado dia e hora não é susceptível de revelar informação privada ou confidencial e apenas permite confirmar que uma comunicação - que a investigação conhecia já - ocorreu.

A solução legal consagrada na Lei do Cibercrime foi directamente traduzida do art° 18°, n° 3 da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, ou Convenção de Budapeste, ..." ...in Nota Prática n° 1/2012, Gabinete do Cibercrime, ( cedida pelo Desembargador Trigo Mesquita). Acresce que o recorrente não tem razão quando afirma que permitir o uso da prova assim obtida viola o disposto no art° 32°, n° 8 da CRP.

Permitir que o ofendido não tenha acesso à identificação do endereço de IP através do qual foi praticada a ofensa, qualquer que ela seja, é não conceder a esse mesmo ofendido o direito de acesso ao direito previsto no art° 20° da mesma Constituição.

Ora, os direitos constitucionais dos arguidos não são absolutos, face aos direitos dos restantes cidadãos, mormente das vítimas em processo penal, e as entidades públicas, ao enquadrar o uso dos diversos meios de prova têm de considerar os direitos dos vários intervenientes processuais.

Em conclusão: os dados obtidos pelo M°P° em sede de inquérito foram validamente obtidos por não pertencerem ao conjunto de dados que impõem a intervenção de juiz de instrução, uma vez que se não traduzem na obtenção de conteúdos da comunicação.

O recurso interposto pela assistente e pelo M°P° merece provimento.

Termos em que acordam em conferência em julgar procedente o recurso interposto, e em revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que considerando válida a prova obtida pelo M°P° decida em conformidade.

Ë devida taxa de justiça pelo decaimento do recurso que se fixa em 3 Ucs.

Registe e notifique, nos termos legais.

Lisboa, 19 de Junho de 2014

Margarida Vieira de Almeida

Maria da Luz Batista