Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1172/21.6T8AMD.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: INCIDENTE DE DISPENSA DE SIGILO BANCÁRIO
INTERESSE PREPONDERANTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - Cabe ao juiz do processo onde é deduzida a escusa com invocação do dever de sigilo profissional - incluindo, como sucede nos presentes autos, o do competente Juízo para o qual foi remetido o processo de inventário tramitado no cartório notarial - aferir da sua legitimidade, mas também, evidentemente, da própria necessidade de despoletar o incidente de dispensa de sigilo, nos termos conjugados dos artigos 417.º do CPC e 135.º do CPP.
II - Essa recusa por parte da entidade chamada a colaborar deve ser inequívoca e definitiva, não se justificando desencadear um tal incidente quando até existe ou, pelo menos, ainda não se arredou a hipótese de, no seguimento de notificação nesse sentido, ser obtida autorização para aquele efeito, designadamente junto das partes, titulares de contas bancárias e certificados de aforro cuja existência se está a averiguar, em incidente de reclamação contra a relação de bens.
III - Para que possa ser ordenada a prestação da colaboração com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.
IV - Assim acontece no processo de inventário para separação de meações dos interessados em que foi apresentada reclamação contra a relação de bens suscitando a falta de relacionação de saldos de contas bancárias, sendo factos relevantes a apurar os atinentes à existência de contas da titularidade das partes cujos saldos devam ser considerados como bens comuns do casal à data da instauração da ação de divórcio (cf. art. 1789.º do CC), até porque, mesmo perante junções documentais que as partes possam efetuar, comprovando a existência de certas contas, sempre importará uma demonstração cabal de que outras contas não existiam.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO

Os presentes autos de inventário para separação de meações em consequência do divórcio de Maria … e Manuel foram instaurados, em 12-04-2019, no Cartório Notarial da Amadora, tendo a cabeça de casal sido nomeada por despacho da Sr.ª Notária de 16-07-2019.
 Após prestar declarações, o que fez em 20-08-2019, a cabeça de casal apresentou a relação de bens, em 05-09-2019, incluindo, como verbas 2 e 3, os saldos de um depósito à ordem, no montante de 2.138,51 €, e de um depósito a prazo no montante de 5.000 €, sobre conta bancária cujo n.º e instituição indicou. Mais requerendo, no tocante à verba 1, o seguinte: “Requer-se a V. Exa. Excelentíssima Notária, que se digne junto do tribunal competente, que oficie a Agência de Gestão da Tesouraria e da Divida Pública - IGPC, E.P. com sede na Av. da República, 57 - 6º 1050 - 189 Lisboa, pela obtenção da informação actualizada (valores e quantidade) dos certificados de aforro aí depositados e constituídos, em nome do requerido Manuel…, com o Cartão Cidadão nº … e NIF…, atendendo que a esta instituição, apenas fornece a referida informação, por ordem judicial.”
Em 12-09-2019, a Sr.ª Notária, mediante carta/ofício, solicitou à Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública – IGPC, E.P. confirmação a respeito da existência, valor e quantidade de certificados de aforro da titularidade do Requerido junto dessa instituição.
Em 17-09-2019, veio a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública IGCP, E.P.E. informar o seguinte:
“Nos termos do regime jurídico dos certificados de aforro, decreto-lei nº 122/2002, de 4 de maio, na sua atual redação, conjugado com as disposições da instrução nº 3/2013, publicada no Diário da República, II série, nº 235, de 4 de dezembro, relativa aos procedimentos relativos à abertura e movimentação das contas de certificados de aforro e à transmissão dos mesmos, cumpre levar ao conhecimento de V. Exa. que a informação sobre saldos, movimentos ou outros dados de determinada conta aforro apenas poderá ser disponibilizada ao próprio titular da conta, aos respetivos herdeiros ou aos representantes legais, tratando-se de menores ou de pessoas incapazes nos termos da lei.
A informação pode ainda ser disponibilizada a um terceiro desde que especificamente mandatado para o efeito pelo titular da conta aforro ou, sendo o caso, pelos respetivos herdeiros, devendo estes comprovar o óbito do titular da conta e indicar elementos de identificação do falecido, nomeadamente bilhete de identidade e número de identificação fiscal. Ao terceiro mandatado será ainda solicitado documento que evidencie o mandado e a identificação do mandatário.
Nestes termos, para podermos dar seguimento ao solicitado por V. Exas., deverão ser observados um dos seguintes requisitos:
a) Pedido acompanhado de declaração dos interessados a autorizar a quebra de sigilo, com a assinatura reconhecida, com indicação de elementos de identificação dos mesmos (BI ou CC e NIF) e de um cheque ou vale postal, à ordem do IGCP, de 5,00 €/cada;
b) Novo pedido acompanhado de original ou fotocópia certificada de procuração outorgada pelos interessados, com poderes específicos para o ato, com indicação de elementos de identificação (BI ou CC e NIF) dos outorgantes e de um cheque ou vale postal, à ordem do IGCP, de 5,00€/cada.”
Em 21-10-2019, foi pela Sr.ª Notária determinada a citação/notificação do interessado/Requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 28.º do RJPI, bem como para, “no prazo de 20 dias, juntar aos autos documentos comprovativos da totalidade dos certificados de aforro de que é titular, bem como do respectivo valor”.
Em 13-11-2019, veio o interessado Manuel … apresentar reclamação contra a relação de bens, alegando, além do mais, que:
“I - Da falta de relacionação de bens
1º Na relação de bens junta aos autos, resulta que a cabeça de casal relaciona 3 verbas que correspondem a contas bancárias tituladas apenas pelo Requerido e bem assim, certificados de aforro também apenas por este titulados.
2º Sendo, no mínimo, curioso (e vantajoso...) que em seu nome não exista nenhuma conta que possa ser relacionada.
3º Quanto a essas contas bancárias, o Requerido apenas reconhece a sua existência por saber que a Cabeça de Casal recebia a sua pensão em conta bancária, desconhecendo, no entanto, o respetivo número, IBAN, ou mesmo se tem mais que uma conta em seu nome.
4º Tais informações não são prestadas ao Requerido, sendo apenas fornecidas, por ordem judicial ou caso a cabeça de casal seja notificada para vir juntar prova das contas que detinha em seu nome e montantes à data da propositura da ação - 27 de Agosto de 2018.
5º Ainda assim, requer-se, a V. Excia oficie ao Banco de Portugal pela obtenção de informação quanto à existência de contas bancárias ou outros produtos financeiros em nome da Requerente do inventário, e, em caso afirmativo, obtendo informação, designadamente, quanto ao montante em cada uma delas à data da propositura da ação de divórcio.
6º Mais se requer a V. Excia seja oficiado à Caixa Geral de Aposentações que preste informação sobre o modo de pagamento da pensão à data da propositura da ação de divórcio, designadamente para que conta são transferidos os valores, o que se requer, como se referiu, por saber que a Cabeça de casal apenas poderá ter sonegado a existência de uma conta onde sempre recebeu a pensão e que agora parece ter desaparecido.
7º Desde já se requer que, verificada a existência de contas bancárias ou outros produtos financeiros em nome da Requerente, seja notificada para retificar a relação de bens, incluindo as verbas em falta.
8º Não o fazendo, deverá ser declarada a sonegação de bens, com todas as consequências legais, nos termos do disposto no artigo 2096.º do Código Civil e 35.º nº 4 do RJPI.
(…) Nestes termos requer a V. Excia seja dado à provimento à presente reclamação e assim:
- Seja oficiado ao Banco de Portugal pela obtenção de informação quanto à existência de contas bancárias ou outros produtos financeiros em nome da Requerente do inventário, e, em caso afirmativo, obtendo informação, designadamente, quanto ao montante em cada uma delas à data da propositura da ação de divórcio - 27 de Agosto de 2018;
(…) - Mais se requer que, verificado o facto de existirem contas bancárias em seu nome ou outros produtos financeiros, seja a cabeça de casal notificada para vir retificar a relação de bens no prazo legal, relacionando as verbas em falta;
- Não o fazendo, deverá ser declarada a sonegação de bens, com todas as consequências legais, nos termos do disposto no artigo 2096. do Código Civil e 35.º nº 4 do RJPI”.
Protestou juntar “Extratos bancários à data da propositura da ação e extrato bancário da conta relacionada nas verbas 2 e 3, com valores à referida data”.
A cabeça de casal, em 25-11-2019, em resposta à reclamação, veio dizer que existe outra conta bancária na qual recebe a sua pensão de reforma, mais dizendo que como “nada tem a esconder, fica desde já e expressamente declarado nos presentes autos, que o ora requerido tem e terá todas as autorizações por parte da ora requerente, no sentido de fazer as diligências que quiser, na obtenção de qualquer tipo de informação junto de todas as instituições de créditos e afins, na descoberta da verdade material.
7º Quer isto dizer, que o ora requerido Manuel …, terá por parte da requerente Maria…, todo o apoio e coadjuvação incondicional, na realização de todas as diligências que o requerido achar pertinentes, nomeadamente na obtenção de extractos, sobre quaisquer instituições, bem como as inerentes movimentações financeiras ou bancárias, quer sejam de depósitos, fundos, seguros, acções etc.
8º Da mesma forma espera também a ora requerente, que o ora requerido actue na mesma medida, o que não aconteceu, visto ficarmos ainda sem saber na presente data, o montante exacto dos certificados de aforro dos CTT, existentes em nome do requerido, já anteriormente peticionados nos presentes autos, e que novamente reiteramos tal pedido, bem como o montante auferido pelo requerido em sede de reforma e por último os depósitos bancários existentes em nome de Manuel …, quer à ordem, quer a prazo existentes no Banco Millenium à data da propositura do divórcio, informação essa que também desde já se requer. (…)”
Por despacho da Sr.ª Notária de 23-01-2020 foi determinada a notificação do Requerido nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do art. 35.º do RJPI.
Em 03-07-2020, a Sr.ª Notária proferiu despacho em que, além do mais, consta o seguinte:
“relativamente à verba n.º 1 do ativo da relação de bens, notifica-se o Interessado Manuel… para, no prazo de 10 (dez) dias, juntar aos presentes autos documentos comprovativos da totalidade dos certificados de aforro de que é titular, bem como do respetivo valor, reiterando-se o despacho datado de 21/10/2019.
Determina-se a notificação do Banco de Portugal conforme requerido pelo Interessado Manuel … na reclamação à relação de bens datada de 13/11/2019 e pela Requerente na resposta à reclamação de bens datada de 25/11/2019.”
Em 20-07-2020, o Banco de Portugal enviou resposta ao pedido de informação (que foi digitalizada e inserida nos autos em 28-07-2020) com o seguinte teor:
“Assunto: Pedido de informação bancária - Processo n.º …80/19 -Inventário (Divórcio) Exma. Senhora Notária,
O Banco de Portugal, em resposta ao pedido de informação sobre a existência de contas bancárias em nome da Requerente Maria… e do Requerido Manuel…, vem expor a V. Exa o seguinte:
A informação constante da Base de Dados de Contas encontra-se abrangida pelo dever legal de segredo que impende sobre o Banco de Portugal nos termos dos artigos 80.º e 81.º-A do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras. A violação deste dever de segredo profissional é punível nos termos do Código Penal, de acordo com o disposto no artigo 84.º do mesmo Regime Geral.
O Banco de Portugal encontra-se habilitado a transmitir as informações constantes da Base de Dados de Contas, por força do n.º 4 do artigo 81.º-A do referido Regime Geral, a qualquer autoridade judiciária no âmbito de um processo penal, bem como ao Procurador-Geral da República, ou a quem exerça as respetivas competências por delegação, e à Unidade de Informação Financeira no âmbito das atribuições que lhe estão cometidas.
De acordo com o previsto no n.º 5 do artigo 81.º-A do mesmo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o Banco de Portugal encontra-se ainda legalmente habilitado a transmitir a informação respeitante à identificação das instituições participantes em que as contas estão domiciliadas, às seguintes entidades:
a) A Autoridade Tributária e Aduaneira no âmbito das respetivas atribuições relativas à cobrança de dívidas e ainda nas situações em que a mesma determine, nos termos legais, a derrogação do sigilo bancário;
b) Ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., no âmbito das respetivas atribuições relativas a cobrança de dívidas e concessão de apoios socioeconómicos;
c) Aos Agentes de Execução nos termos legalmente previstos no n.º 6 do artigo 749.º do Código de Processo Civil, bem como, no âmbito de processos executivos para pagamento da quantia certa, aos funcionários judiciais, quando nestes processos exerçam funções equiparáveis às dos agentes de execução.
d) Ao Gabinete de Recuperação de Ativos, no âmbito das respetivas atribuições relativas à realização de investigação financeira ou patrimonial.
Fora destas situações, o Banco de Portugal apenas poderá legalmente revelar tais informações nos casos excecionais previstos no n.º 2 do artigo 80.º do mencionado Regime Geral, ou seja, mediante autorização do interessado (titular dos dados) ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal.
Nestas circunstâncias, a informação solicitada poderá ser disponibilizada quando verificados os pressupostos que dispensam o Banco de Portugal do dever de segredo, como acontecerá caso os titulares autorizem esta instituição a revelar, no âmbito deste processo de inventário, a informação que lhes diz respeito e que integra a Base de Dados de Contas.
Solicita-se a V. Exa a devida consideração por estes constrangimentos decorrentes exclusivamente de restrições impostas por lei e cuja inobservância pode envolver responsabilização própria (civil e criminal) desta Instituição e dos seus colaboradores (…)”.
Em 01-09-2020, o interessado apresentou requerimento com o seguinte teor:
“A fim de dar cumprimento ao doutamente ordenado por V. Excia, o Requerido dirigiu-se ao IGCP, tendo solicitado certidão completa dos valores atualizados dos certificados de aforro.
Qual não foi o espanto do requerido quando, da referida instituição, e apesar de ser o titular, alegaram não ser possível proceder à emissão da certidão, pois que, sendo para efeitos de processo de inventário, apenas facultariam a informação pedida, por ordem judicial, ou, no caso, do cartório notarial.
Face ao exposto, requer a V. Excia seja oficiado ao IGCP, EPE, a informação atualizada da totalidade dos certificados de aforro de que é titular e seus valores, prestando o requerente, desde já, o seu consentimento para que a instituição forneça tais elementos.”
Em 16-11-2020, foi pela Sr.ª Notária proferido despacho com o seguinte teor:
«Por despacho datado de 03/07/2020 foi determinada a notificação do Banco de Portugal e a citação do Banco Oney, na qualidade de credor.
Em 28/07/2020 e 06/08/2020 foi junto aos autos respetivamente, a resposta do Banco de Portugal e a resposta do Banco Oney.
Em 01/09/2020 veio o Interessado Manuel … informar que o IGCP alegou “não ser possível proceder à emissão da certidão, pois que, sendo para efeitos de processo de inventário, apenas facultariam a informação pedida, por ordem judicial, ou, no caso, do cartório notarial”.
Pelo exposto, determino:
a) A notificação da Requerente Maria … e do Requerido Manuel… das sobreditas respostas do Banco de Portugal e do Banco Oney para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 (dez) dias; e
b) A notificação do Requerido Manuel … para no mesmo prazo de 10 (dez) dias, apresentar documento comprovativo da entidade IGCP de acordo com as informações prestadas no requerimento junto em 01/09/2020.
Notifique.»
As partes nada vieram dizer.
Em 28-06-2021, a Sr.ª Notária proferiu o seguinte despacho:
“Por despacho datado de 03/07/2020 foi determinada a notificação do Banco de Portugal a fim de informar sobre as contas bancárias abertas em nome dos intervenientes neste processo de inventário, Maria … e Manuel ….
Por carta data de 20/07/2021, foi este Cartório informado de que a informação constante da base de dados do BdP está abrangida pelo dever legal de segredo, motivo pelo qual foi recusado o pedido supra.
Também por ofício datado de 12/09/2019, foi o IGCP notificado para facultar informações acerca de certificados de aforro titulados em nome de Manuel …, bem como os seus valores.
Em 17/09/2019, foi enviado e-mail a este Cartório, pelos Serviços de Dívida de Retalho do IGCP, recusando também prestar qualquer informação.
Notificadas as partes para fornecerem aos autos os elementos em falta, de forma voluntária, as mesmas não o fazem.
Assim, vê-se este Cartório na obrigação de suscitar a intervenção do Tribunal, para que este determine o levantamento do sigilo bancário e a prestação das informações necessárias pelas instituições de crédito e bancárias, a fim de prosseguir com a tramitação do presente processo de inventário.
Nestes termos:
a) Remeta-se o presente processo para o Tribunal competente a fim deste
autorizar e ordenar o levantamento do sigilo bancário;
B) Notifique.”
Após a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, veio a ser proferido pelo Juiz 2 do Juízo de Família e Menores da Amadora, despacho cuja fundamentação de direito e dispositivo têm o seguinte teor:
«Dispõe-se no artigo 417.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados, prevendo-se no n.º 2, do mesmo artigo a condenação em multa daqueles que, não sendo partes, “recusem a colaboração devida (...) sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis;”. Com ressalva, porém, no n.º 3 – e no que agora interessa – da legitimidade da recusa “se a obediência importar: (...) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.”. Remetendo o aludido n.º 4, na hipótese de ser deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, e “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa para o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”. O Código de Processo Penal enumera, no n.º 1 do artigo 135.º, várias classes profissionais sujeitas a segredo profissional, a saber, os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional, prevendo a possibilidade de aquelas se escusarem “a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo. Contemplando porém, logo nos números seguintes, a determinação da quebra do segredo profissional, pelo tribunal competente – o imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o ter sido perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário da secção respetiva – sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei (...), nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Por seu lado, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, com as sucessivas alterações introduzidas até à data da escusa, estabelece, no seu artigo 78.º, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, que: “1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. 3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.” – Ac. do TRL, de 16.06.2016 Juiz Rel. Ezagüy Martins. Vejamos. O sigilo bancário não constituiu um direito absoluto, devendo ceder perante exigências de correta e eficaz administração da justiça a realizar pelos Tribunais. A lei processual civil prevê expressamente o levantamento do sigilo bancário mediante despacho judicial. Ora, apesar de a recusa bancária se afigurar como legítima face ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (designadamente o seu artigo 79.º) cumpre, face à exigência de correta eficaz administração da justiça, ponderar, no caso concreto, se tais elementos solicitados são relevantes, o que se afigura – artigos 417.º, n.º 3, al. c) e 4, do Código de Processo Civil e 135.º, n.º 2 e 3, e 182.º do Código de Processo Penal - cabendo a indicada decisão ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. Assim, caberá ao Tribunal da Relação decidir se existe justificação legal para se impor a prestação das informações bancárias pedidas, atento o princípio do interesse prevalente, isto é, se o que se busca apurar com a informação bancária pedida toma prevalência sobre o que se visa proteger com o sigilo bancário – Ac. TRL de 20.01.2021, Juíza Relatora Florbela Sebastião e Silva.
Decisão
Pelo exposto, julgo legítima a recusa.
Remeta o apenso de inventário ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.»
A única questão a decidir por este Tribunal da Relação é a de saber se deve (ou não) ser dispensado o sigilo profissional relativamente à prestação das informações solicitadas, por determinação da Sr.ª Notária, junto da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, E.P.E. e do Banco de Portugal.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO
A factualidade relevante a ponderar na decisão do presente incidente é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete, acrescentando-se, face às certidões juntas aos autos, o seguinte:
Manuel … e Maria… foram casados um com o outro, no regime de comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por sentença proferida em 15-10-2018, nos autos de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, convolados em divórcio por mútuo consentimento, que correram termos sob o n.º …6/18.0T8AMD no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo de Família e Menores da Amadora - Juiz 1.
Ao processo de inventário em que se insere o presente incidente aplica-se, atenta a data em que teve início, o regime jurídico do processo de inventário (RJPI), aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05-03 (diploma que veio a ser revogado pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, mantendo-se, no entanto, aplicável aos processos de inventário pendentes em cartório notarial à data da sua entrada em vigor, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do art. 11.º desta Lei) – cf. art. 79.º do RJPI.
Preceitua o art. 417.º do CPC, subsidiariamente aplicável nos autos (cf. art. 82.º do RJPI), com a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”, que:
“1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
(…) c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Em face da remissão feita no citado n.º 4 do art. 417.º do CPC, importa atentar no que a este respeito se encontra consagrado no Código de Processo Penal, mormente no art. 135.º, que tem o seguinte teor:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso”.
Sobre a forma como estes preceitos devem ser aplicados, com as devidas adaptações, no processo de inventário, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 22-05-2017, no processo n.º 271/13.2TMPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt (site em que podem ser consultados os demais acórdãos adiante citados), aí se explicando, conforme consta do respetivo sumário, que:
I - O Regime Jurídico do Processo de Inventário veio instituir um “sistema mitigado”, na medida em que se atribuiu competência ao Notário para tramitar e instruir o processo, que corre os seus termos no Cartório Notarial, atribuindo competência ao juiz para intervir no processo em situações pontuais e expressamente previstas na lei, reservando-se o direito de ação judicial relativamente às questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário e devem ser decididas pelo juiz do tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado (art. 3º e art. 16º RJPI).
(…) IV - Constitui matéria da competência do Notário solicitar as informações bancárias requeridas pelo cabeça-de-casal e notificar o titular da conta para as prestar ou notificar para autorizar que as instituições bancárias as prestem, ao abrigo do disposto no art.27º/1 RJPI.
V - Perante a escusa das entidades bancárias em fornecer tais informações, pelo Notário ou a requerimento das partes, deve o processo ser remetido ao juiz competente, nos termos do art. 3º RJPI, para apreciar da legitimidade da escusa e para promover o incidente de dispensa de sigilo bancário, nos termos das disposições conjugadas do art. 16º/1, art. 417º CPC e art. 135ºCPP, por remissão do art. 82º RJPI.
Portanto, cabe ao juiz do processo onde é deduzida a escusa com invocação do dever de sigilo profissional - incluindo, como sucede nos presentes autos, o do competente Juízo para o qual foi remetido o processo de inventário tramitado no cartório notarial - aferir da sua legitimidade, mas também, evidentemente, da própria necessidade de despoletar o incidente de dispensa de sigilo.
Essa recusa por parte da entidade chamada a colaborar deve ser, por razões óbvias, inequívoca e definitiva, não se justificando desencadear um incidente nos termos das citadas disposições legais quando até existe ou, pelo menos, ainda não se arredou a hipótese de, no seguimento de notificação nesse sentido, ser obtida autorização para aquele efeito, designadamente junto das partes, titulares das contas bancárias e dos certificados de aforro cuja existência se está a averiguar. Neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 12-09-2011, no processo n.º 3553/06.6TJVNF-D.P1, em que, apesar de se reconhecer que a diligência ordenada violava o dever de segredo bancário imposto à entidade bancária, e que se impunha, assim, suscitar o incidente de dispensa de segredo bancário, junto do Tribunal da Relação, conforme solicitado pela requerente do inventário e ao abrigo do art. 135.º, n.º 3, do CPP, se considerou que, como diligência prévia, devia o tribunal notificar expressamente o cabeça-de-casal no sentido de informar se figurava como titular da conta, para prestar a autorização necessária e, só na falta da autorização, devia promover-se o incidente de dispensa de segredo bancário, com oportuna remessa do processado do incidente, ao Tribunal da Relação. Na mesma linha de pensamento, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 10-03-2016, no processo n.º 42/16.4T8FAF-A.G1, também disponível em www.dgsi.pt, como se alcança do respetivo sumário: “A procedência do incidente a que se referem os artigos 417.º n.º 4 CPC e 135.º n.º 3 CPP, pressupõe, para além do mais, que a entidade interpelada se recusou a prestar a informação que lhe foi pedida.”
Transpondo estas considerações para o presente processo, não se percebe que, em face da expressa autorização por parte do Requerido (devidamente patrocinado por mandatário constituído, conforme procuração junta aos autos) à prestação da informação em causa pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública IGCP, E.P.E., não tenha a Sr.ª Notária determinado que se insistisse pela satisfação do solicitado com a remessa dos elementos necessários.
Portanto, neste particular, caberá ao Cartório Notarial diligenciar nesse sentido, não se podendo, de modo algum, considerar, nos presentes autos, que exista uma cabal e definitiva recusa por parte do IGCP à prestação da informação com fundamento no respeito pelo sigilo profissional, a carecer de dispensa por decisão judicial, quando as próprias partes - de forma expressa - anuíram a que tal informação fosse prestada.
Quanto à informação solicitada junto do Banco de Portugal, não se discute que, conforme referido na comunicação de 20-07-2020, são aplicáveis os artigos 78.º e ss. do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31-12, atinentes ao segredo profissional, preceituando o art. 78.º, sob a epígrafe “Dever de segredo”, que:
“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços”.
O sigilo bancário encontra-se assim consagrado na lei para benefício dos cidadãos clientes diretos dos bancos, designadamente a proteção do seu bom nome, da sua reputação e reserva da vida privada, mas também em benefício de terceiros, que podem ser vistos como clientes indiretos (clientes da atividade, não da instituição), e ainda em prol da própria atividade bancária, na medida em que os valores da confiança e da discrição são elementos basilares e indispensáveis ao normal funcionamento das instituições bancárias.
Nos presentes autos, tivesse o Sr. Juiz do Tribunal de 1.ª instância concluído pela ilegitimidade da escusa, ordenaria a prestação da colaboração; mas, como se viu, considerou legítima a escusa, reconhecendo que a colaboração não podia ser prestada (não tendo as partes, por sua vez, reagido contra tal decisão) e convocando a intervenção do tribunal superior para decidir se existe justificação para a dispensa ou quebra do segredo profissional
É bem certo que a Requerente/cabeça de casal havia manifestado antecipadamente o seu consentimento a que fosse prestada a informação em vista pelo Banco de Portugal, mas o Requerido não o fez de forma expressa, mormente quando foi chamado a pronunciar-se a respeito da carta enviada pelo Banco de Portugal. Porém, salvo o devido respeito, que é muito, tal interessado deveria ter sido, de forma inequívoca, por despacho da Sr.ª Notária ou mesmo do Tribunal de 1.ª instância, notificado para dizer se autorizava que o Banco de Portugal prestasse a informação que havia sido determinada conforme requerido pela cabeça de casal (ou seja, notificado para vir aos autos dizer se autorizava, ou não, o levantamento do segredo bancário), já que a notificação para se pronunciar nos moldes e contexto em que teve lugar não tinha necessariamente de ser interpretada nesse sentido.
No entanto, face ao considerável lapso de tempo já decorrido e porque se admite que a inércia do interessado no seguimento do despacho da Sr.ª Notária possa ser indicativa de que não está disposto a prestar a indispensável autorização, não se irá determinar que o interessado seja auscultado a este respeito, justificando-se, por razões de economia e celeridade processuais, dar seguimento ao presente incidente, neste particular.
Tendo presente a finalidade e a importância do sigilo bancário, é claro que a quebra do mesmo não poderá ser determinada sem uma criteriosa avaliação da sua necessidade e proporcionalidade, sob pena de se transformar em regra aquilo que deve ser uma exceção. Assim, para que possa ser ordenada a prestação da colaboração (determinada no quadro da administração da justiça) com quebra do dever de sigilo profissional é indispensável que tal se justifique segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, ponderando a imprescindibilidade da colaboração para o apuramento dos factos, a relevância do litígio e a necessidade de proteção de bens jurídicos, conceitos legais que têm sido densificados pela jurisprudência dos tribunais superiores.
Nesta linha de pensamento e a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 29-11-2016, proferido no processo n.º 2050/13.8TVLSB-A.L1-1, em que se salienta resultar “dos normativos citados que a dispensa do sigilo profissional é desde logo uma situação excepcional e por consequência sujeita a apreciação casuística e segundo critérios restritivos; por outro lado, que ela apenas se justifica se for necessária (por ser de utilidade manifesta para o apuramento dos factos) e proporcional (quer relativamente à relevância do litígio, quer relativamente ao sacrifício imposto aos valores protegidos pelo segredo, num balanceamento dos interesses em conflito que deverá compor entre eles uma concordância prática entre eles, tendo como limite referencial o núcleo essencial de todos esses interesses”.
Veja-se ainda a decisão sumária da Relação de Coimbra de 10-03-2015, no processo n.º 561/08.6TBTND-A.C1, cujo sumário se cita, pelo seu interesse: “I - O segredo bancário não tem carácter absoluto, não prevalecendo sempre sobre qualquer outro dever conflituante. II - Destina-se, o dever de sigilo, a proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes. III - O dever de colaboração com a administração da justiça tem por finalidade a satisfação de um interesse público, que é o da realização da Justiça.”
Destaque também para o acórdão da Relação de Guimarães de 31-10-2019, proferido no processo n.º 106/18.0T8MAC-A.G1, que, numa situação com alguma proximidade com a dos autos, entendeu, conforme se refere no respetivo sumário, que: “I - A procedência do incidente de levantamento/quebra de sigilo bancário pressupõe, para além do mais, a legitimidade da recusa de cooperação das entidades bancárias com o Tribunal da causa; II - Em processo de inventário para partilha do património comum do casal subsequente à dissolução do casamento por divórcio, tendo sido a comunhão geral o regime de bens do casamento, o segredo bancário é inoponível ao ex-cônjuge do titular das contas bancárias que pretende saber qual o saldo das mesmas, com referência à data a partir da qual cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges, para efeitos de apuramento do património comum.”
Vejamos então se, no caso sub judice, se mostra verificado o primeiro critério a considerar, ou seja, o da necessidade da informação solicitada para o apuramento da verdade e da justa composição do litígio quanto aos factos de que é lícito à Sr.ª Notária (e, sendo caso disso, ao Tribunal) conhecer para decisão da reclamação contra a relação de bens – cf. artigos 32.º a 36.º do RJPI.
Os factos substantivamente relevantes são, por regra, como resulta, desde logo, do disposto no art. 5.º do CPC, os factos que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa (art. 5.º do CPC). Tratando-se de processo de inventário destinado à separação de meações dos interessados, na sequência do seu divórcio, tendo sido apresentada reclamação contra a relação de bens nos termos acima referidos, esses factos são também os atinentes à existência de saldos de contas bancárias de que as partes sejam titulares e que devam ser considerados como integrando a comunhão conjugal, ou seja, bens comuns do casal, à data da instauração da ação de divórcio (cf. art. 1789.º do CC), matéria que, sem prejuízo das presunções aplicáveis quanto à propriedade das verbas depositadas ou da prova que possa vir a ser produzida quanto à proveniência das mesmas, sempre terá, como ponto de partida, o apuramento da existência de tais contas.
Da análise dos elementos constantes dos autos, cuja tramitação se procurou sintetizar supra, verifica-se que a informação pretendida se destina precisamente à prova de tais factos, que reputamos essenciais à boa decisão do incidente de reclamação contra a relação de bens - até porque, mesmo perante junções documentais que as partes possam efetuar, comprovando a existência de certas contas, sempre importará uma demonstração cabal de que outras contas não existiam -, tudo isto para que a finalidade do inventário possa ser plenamente alcançada. Portanto, o acesso à informação em causa mostra-se, sem dúvida, necessário para o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.
Por outro lado, ponderados os interesses conflituantes aqui em causa, assume clara preponderância o dever de cooperação para que tais desideratos sejam alcançados, não se mostrando desproporcional a restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos decorrente da quebra do sigilo bancário nos moldes referidos (cf. art. 18.º, n.º 2, da CRP). Na verdade, a não ser satisfeito o solicitado pela Sr.ª Notária, poderão ficar por apurar factos relevantes para a correta decisão do incidente suscitado no processo de inventário, com prejuízo para a boa administração da Justiça, o que é inaceitável, na medida em que a informação pretendida não serve um propósito de devassa da vida económica e financeira das partes, mas apenas se destina à identificação segura do património conjugal a partilhar.
Assim, impõe-se concluir, sem necessidade de mais considerações, estar justificada a quebra do sigilo profissional invocado (legitimamente) pelo Banco de Portugal, pelo que haverá de ser prestada a informação solicitada pela Sr.ª Notária, com referência à data a partir da qual cessaram as relações patrimoniais entre as partes, para efeitos de apuramento do património comum (cf. art. 1789.º do CC).
Considerando a legitimidade da escusa e uma vez que vai parcialmente atendida a pretensão das partes que despoletaram a situação em apreço e são quem beneficia com as informações solicitadas (ainda que em moldes que aqui não se podem antever), são responsáveis pelas custas do presente incidente, afigurando-se adequado fixar a meias a proporção da respetiva responsabilidade, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em deferir parcialmente o presente incidente nos seguintes termos:
- Não determinar a quebra de sigilo profissional pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública IGCP, E.P.E. para prestação da informação solicitada pela Sr.ª Notária em 12-09-2019, uma vez que deverá primeiramente o Cartório Notarial insistir pela satisfação do solicitado, enviando os elementos necessários, designadamente a declaração do Requerido, já constante dos autos, a autorizar a quebra de sigilo;
- Dispensar o Banco de Portugal do cumprimento do dever de sigilo profissional que invocou relativamente à informação determinada por despacho da Sr.ª Notária de 03-07-2020 e, consequentemente, ordenar que preste, no âmbito destes autos, tal informação.
Mais se decide condenar ambos os interessados Maria … e Manuel … no pagamento das custas do presente incidente, na proporção de metade, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.

Lisboa, 23-09-2021
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira