Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3645/2005-8
Relator: ANTONIO VALENTE
Descritores: FUNDO DE SOLIDARIEDADE
ALIMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1 - A responsabilidade do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores integra além das prestações vincendas, as prestações já vencidas.
2 - Caso contrário, ficaria na disponibilidade do Fundo a definição do momento em que seriam contabilizadas as prestações de alimentos em dívida, bastando para tal protelar com diversos expedientes processuais o momento do trânsito em julgado da sentença.
3 - Além disso, um dos critérios para assegurar a intervenção do Fundo é o incumprimento pelo devedor de alimentos e tal incumprimento só se pode aferir relativamente às prestações já vencidas e não pagas.
4 - Assim, o que desencadeia a aplicação do DL 164/99 e a intervenção do Fundo é a situação de carência do menor face ao não pagamento das prestações de alimentos já vencidas e não um juízo hipotético relativamente a um eventual incumprimento no tocante às prestações vincendas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Veio nos presentes autos (C), na qualidade de mãe da menor (S) deduzir acção executiva contra (R), para cobrança de alimentos, liquidando a quantia de € 4.040,26 de alimentos vencidos.

Não foi possível proceder à penhora do salário do executado nem a outras diligências tendentes à cobrança coerciva do montante em dívida.
Foi elaborado o relatório previsto no artº 4º nº 1 do DL nº 164/99 de 13/5. Foram ainda solicitadas informações sobre a situação profissional e económica do executado.

O Mº Pº promoveu que se determine o pagamento pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores da quantia de € 100 a título de alimentos para a menor, quantia essa actualizável, promovendo ainda a condenação daquele Fundo de Garantia no pagamento das prestações vencidas desde a data em vigor do DL 164/99.

Vindo a ser proferida decisão que condenou esse Fundo de Garantia a pagar a prestação de alimentos no valor mensal de € 100, actualizável de acordo com o índice de inflação publicado anualmente pelo INE. Mais foi condenado a pagar os alimentos vencidos desde 1/1/2000, em 30 prestações mensais, iguais e sucessivas de € 132,182.

*
Inconformado, recorre o Fundo de Garantia, concluindo que:
- Não foi intenção do legislador da Lei 75/98 de 19/11 e do DL nº 164/99 de 13/5, prever o pagamento pelo Estado do débito acumulado pelo obrigado judicialmente a prestar alimentos.

- Foi preocupação dominante, nomeadamente do Grupo Parlamentar que apresentou o projecto de diploma, o evitar o agravamento excessivo da despesa pública e um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa.
- O débito acumulado do devedor relapso não é da responsabilidade do Estado, já que não é correcto pôr-se o Estado a pagar os débitos desse progenitor relapso.
- A garantia traduz-se na fixação de uma prestação em função das condições actuais do menor e que podem ser muito diferentes das que determinaram a primitiva prestação.
- Trata-se de uma prestação autónoma e actual que não visa substituir definitivamente a anterior obrigação de alimentos mas antes proporcionar ao menor, de forma autónoma e subsidiária a satisfação de uma necessidade actual de alimentos.
- A prestação a satisfazer pelo Fundo reveste a natureza de uma protecção social.
- A omissão da fundamentação de facto e de direito da sentença determina a sua anulação.

O Mº Pº defendeu a posição assumida na decisão recorrida.

*
Com relevância para o presente recurso foi dado como provado que:
- (S) nasceu a 29/12/95 e é filha de (R) e de (C).
- Nos termos de sentença homologatória de acordo datada de 29/4/98 o pai ficou obrigado a contribuir mensalmente com a quantia de 15.000$00 a título de pensão de alimentos para a menor.
- A mãe intentou acção executiva contra o ora requerido para pagamento das prestações vencidas até 12/6/2002, no montante de € 4.040,26.
- Não tendo sido possível realizar qualquer penhora.
- O pai da menor nunca pagou a pensão de alimentos devida.
- Não lhe é conhecida qualquer actividade profissional nem bens penhoráveis e é um consumidor de produtos estupefacientes.

*
Uma vez que não está em causa o montante fixado pelo tribunal a título de prestação de alimentos à menor, teremos apenas que determinar se são ou não devidos pelo recorrente os montantes dos débitos acumulados desde 1/1/2000.
Antes, contudo, diga-se que só por lapso terá o recorrente invocado no final das conclusões a nulidade da sentença for falta de fundamentos de facto e de direito. Com efeito nada diz nesse sentido ao longo das alegações de recurso. De qualquer modo, tal nulidade nunca se poderia verificar: a sentença contém rigorosa fundamentação fáctica – que o recorrente nem por um momento põe em causa – e está cuidadosamente elaborada no plano jurídico, tendo o julgador explanado de modo bem definido o seu pensamento, não só com referência ao direito aplicável mas, inclusive, a jurisprudência do STJ.

Posto isto, entremos na questão fulcral do litígio.
Deverá o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, para lá do pagamento das prestações de alimentos definidas na sentença e que começam a vencer-se nesse momento, ser ainda responsabilizado pelo pagamento das prestações em dívida vencidas anteriormente?
É abundante a jurisprudência sobre esta matéria, embora se mostre longe da unanimidade.

Dispõe o artº 1º da Lei nº 75/98 de 19/11, que “quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em Portugal não satisfizer as quantias em dívida (...) e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação”.

E no artº 2º nº 1 estipula-se como limite máximo mensal da pensão a quantia de 4 UC.
Nem na referida Lei nº 75/98, nem no diploma que a regulamenta, o DL 164/99 de 13/5 é referido que tal garantia abranja apenas as prestações vincendas.
Contrariamente à opinião expendida pelo recorrente, não se vislumbra, da parte do legislador, qualquer indicação limitativa das prestações consoante a sua data de vencimento. O limite existe mas apenas no tocante ao quantitativo que o Estado poderá pagar ao menor (4 UC).
O preâmbulo do DL 164/99 menciona o imperativo constitucional do direito a alimentos, entendido como o acesso a condições de subsistência mínimas, o que não pode “deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.

Ora um dos critérios para assegurar a intervenção do Fundo de Garantia é o incumprimento do devedor dos alimentos e tal incumprimento, como é óbvio, só se pode aferir em relação às prestações já vencidas. Em relação às vincendas apenas se poderá fazer um juízo de probabilidade, assente no anterior incumprimento e na situação sócio-económica desse devedor.
O que desencadeia pois a aplicação do DL 164/99 é o facto de existirem prestações de alimentos vencidas e não pagas e insusceptíveis de serem realizadas coercivamente, para lá, é claro, das próprias condições económicas do menor e do agregado familiar em que se integra. O Estado, visando o cumprimento dos imperativos constitucionais focados, intervém para suprir as deficientes condições de vida a que o menor tem sido sujeito.
Agora pergunta-se: tais deficiências e dificuldades têm natureza diferente consoante tenham ocorrido há um mês ou venham a ocorrer daqui a um mês? Se não houver mudança de fortuna no próprio agregado familiar do menor, o problema é exactamente o mesmo.
Até porque tais situações de extrema carência se reflectem normalmente no presente – por exemplo, acumulação de dívidas para com terceiros ou necessidades acrescidas de cuidados médicos.

A intervenção do Fundo de Garantia, relembre-se, visa suprir situações em que, como decorre do já citado preâmbulo do DL 164/99, não estão asseguradas ao menor “condições de subsistência mínimas”.

Por outro lado, como se observa no Acórdão desta Relação de Lisboa de 12/7/2001, in www.dgsi.pt, a seguir-se o entendimento do recorrente, ficaria, em certa medida, na disponibilidade deste a definição do momento em que seriam contabilizadas as prestações de alimentos em dívida: bastaria para tal recorrer ou protelar com diversos expedientes processuais o momento do trânsito em julgado da sentença.
Não se vê em que medida se poderá harmonizar uma tal concepção com o espírito e a letra do DL 164/99 que consagra uma prestação social.
No fundo seria o mesmo que dizer que durante o período de incumprimento o menor não carecia de alimentos que lhe assegurassem a subsistência mínima, embora, simultânea e contraditoriamente, a intervenção do Fundo ocorra precisamente em face da situação de carência resultante desse incumprimento.

O artº 2006º do CC estabelece que, estando os alimentos fixados pelo tribunal ou por acordo, serão devidos desde o momento em que o devedor se constituiu em mora (salvo o caso especial do legado de prestação periódica de alimentos, artº 2273º nºs 1 e 2 do CC).
Sendo este o regime geral e, de resto, o único compreensível, não se vê a razão de o legislador da Lei 75/98 e do DL 164/99 não ter estabelecido uma regra específica relativamente a só serem levadas em conta as prestações vincendas, se fosse esta a sua intenção.
Nem se diga que o disposto no artº 4º nº 5 desse DL 164/99, pretende estabelecer tal especificidade. O que tal normativo refere é a data do início do pagamento pelo Fundo, não as prestações que tal pagamento envolverá.

Finalmente e no tocante à alegação relativa à preocupação de um ou vários grupos parlamentares com a dimensão do envolvimento do Estado na sociedade civil, não se vê, a partir do momento em que se decide que o Estado deverá mesmo intervir para assegurar imperativos constitucionais, a diferença da natureza de tal intervenção consoante se trate de prestações de alimentos vencidas ou vincendas ...

Assim e pelo exposto nega-se provimento ao agravo.
Sem custas.

LISBOA, 9/6/2005
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Pais