Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18730/24.0T8LSB.L1-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A norma enunciada no art. 100.º do Cód. Proc. Civil deve ser interpretada restritivamente, devendo entender-se que, em nova ação, decalcada da primeira, o mesmo tribunal se encontra vinculado à sua anterior decisão de incompetência, nos casos em que esta assentou numa apreciação jurídica qualificativa da relação material controvertida, devendo absolver o réu da instância, por força da eficácia extra processual do caso julgado formal – autoridade de caso julgado, por vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objeto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objeto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.
AA intentou a presente acção declarativa com, processo comum, contra Autoridade Nacional da Aviação Civil, pedindo que:
A - fossem declarados nulos todos os contratos de prestação de serviços celebrados com a ré, desde Junho de 2009 e, em consequência, fosse condenada a:
(i) reconhecer que os sucessivos contratos que vigoraram entre o autor e ré, desde Junho de 2009 a Agosto de 2023, foram todos artifícios para encobrir uma verdadeira relação laboral, sujeita a subordinação jurídica e, constituem manifesta fraude à lei;
(ii) reconhecer a relação laboral estabelecida com o autor, como um verdadeiro contrato de trabalho, com início a 4 de Junho de 2009 e com a remuneração auferida pelo autor e isenção de horário de trabalho, tal como foi exercida até ao dia 16 de Agosto de 2023;
(iii) declarar a ilicitude do despedimento do autor promovido pela ré, com as devidas e legais consequências;
(iv) condenar a ré a pagar ao autor uma indemnização correspondente a 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, decorrido desde a data do início do contrato até ao trânsito em julgado da decisão;
(v) condenar a ré a pagar ao autor, os subsídios de férias, férias não gozadas e de natal, e respectivos proporcionais, desde 4 de Junho de 2009 até à presente data, no montante de € 221.150,55 e os subsídios de alimentação devidos desde aquela data até à presente, no montante de € 27.562,00, perfazendo o montante global de, pelo menos, € 248.712,55, acrescida dos juros de mora, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
(vi) A pagar ao autor uma indemnização por danos morais por assédio moral, num valor mínimo que se fixa em € 50.000,00;
(vii) A pagar ao autor a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, a título de indemnização pelos pagamentos a mais que o autor fez para a Segurança Social e o Fisco, pelo facto de ter sido obrigado a se colectar como trabalhador independente, por não lhe ter sido reconhecido ainda a existência de um contrato de trabalho.
Para o efeito alegou o seguinte:
- O autor prestava a sua actividade profissional para a ré desde 23 de Junho de 2009 até 16 de Agosto de 2023, no regime de avença, mediante ajuste directo e/ou concurso público, durante os quais o autor sempre executou trabalho subordinado;
- Desde Junho de 2009 a Julho de 2014, o autor desempenhou a actividade de piloto de linha aérea, auferindo as seguintes remunerações:
» Junho de 2009 a Junho de 2011 — 3.300,00€ (três mil e trezentos euros + IVA);
» Julho de 2012 a Junho de 2013 — 3.022,00€ (três mil e vinte e dois euros + IVA);
» Julho de 2013 a Junho de 2014 — 3.300,00€ (três mil e trezentos euros + IVA);
- A partir de Agosto de 2014, o autor passou a desempenhar a actividade de Inspector no Departamento de Operações de Voo da ré, data em que passou a obrigar-se a prestar as seguintes actividades:
» Análise de manuais de operações, seus anexos e MEL;
» Auditorias e Operações de Transporte e Trabalho Aéreo;
» Execução de Inspecções de Base, Rota, Escalas e Rampa aos Operadores Nacionais;
» Elaboração de pareceres sobre matérias do âmbito das Operações de Voo;
» Execução de inspecções SAFA;
» Desenvolvimento de Procedimentos;
» Projectos de Regulamentação no âmbito da área de Operações;
» Emissão de Directivas de Segurança Operacional;
» Emissão de CIA´s;
Englobando os seguintes serviços:
» Instruir processos de certificação de Operadores de Aeronaves de Transporte Aéreo;
» Instruir processos de Certificação de Operadores de Trabalho Aéreo;
» Instruir processos de autorizações de Operações Especiais;
» Elaborar parecer para aprovação de manuais, procedimentos e respectivas revisões;
» Elaborar parecer de autorizações de utilização do aeroporto da Madeira;
» Elaborar parecer para validações de competências a Operadores Estrangeiros;
» Emissão de documento de aprovação de dispositivos de treino artificial (STD — user approvals);
» Elaborar propostas de aprovação de contratos de 'leasing' entre Operadores;
» Elaborar documento para registo de transmissor automático de emergência (ELT);
» Atribuir códigos de 'transponder', às aeronaves nacionais;
» Elaborar parecer sobre as autorizações de sobrevoo e aterragem em espaço aéreo nacional;
» Efectuar auditorias e inspecções no âmbito do programa anual de supervisão aos operadores de Transporte de Trabalho Aéreo;
» Efectuar Inspecções de Rampa no âmbito do programa sw Inspecções SAFA;
» Certificação de Organização de Formação;
» Aprovação de manuais referentes ao Safety Managements System;
» Aprovação de cursos ministrados por organização de formação (ATOSs);
- Tendo passado a auferir a remuneração anual de 60.112,32€, após a aplicação da redução remuneratória prevista na Lei 83-C/2013, acrescida de IVA, o que perfaz uma remuneração mensal de 5.009,36 (cinco mil e nove euros e trinta e seis cêntimos);
- Em Agosto de 2015, voltou a ser assinado um novo contrato denominado de avença, com idêntico objecto, duração e obrigações, aumentando-se ligeiramente a remuneração acordada anual para o valor de 60.982,62€ (sessenta mil, novecentos e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos);
- Em Agosto de 2016, voltou a ser assinado novo contrato denominado de avença, pelo qual se manteve em moldes semelhantes, o objectivo do contrato anteriormente celebrado, assim como o demais clausulado;
- E aumentou-se ligeiramente a remuneração anual devida para o montante de 66.444,00€, acrescida de IVA, o que perfaz uma remuneração mensal de 5.537,00€ (cinco mil, quinhentos e trinta e sete euros), acrescida de IVA;
- Em 2017 e 2018, voltaram a ser assinados contratos intitulados de 'avença', pelos quais se mantiveram os termos e condições dos contratos anteriores;
- Previram-se, porém, nesses contratos, as remunerações anuais e mensais de 67.800€ e de 5.650,00€, respectivamente;
- Em Agosto de 2019, 2020, 2021 e 2022, voltaram a ser assinados contratos denominados de 'avença', exactamente com o mesmo objecto contratual e demais clausulado, tendo sido mantidas as remunerações anuais de 67.800,00€ (sessenta e sete mil e oitocentos euros) e mensais de 5.650,00€ (cinco mil, seiscentos e cinquenta euros);
- O local de trabalho do autor sempre foi nas instalações onde a ré desenvolve a sua actividade, sito na Rua B, Aeroporto da Portela, 4, Ed. 4, 5 e 6, 1749-034 Lisboa;
- Por vezes, mediante instruções da ré, o autor prestava trabalho do autor foi efectuado noutros locais onde a ré também exerceu a sua actividade, nomeadamente, na ilha da Madeira;
- O autor tinha acesso ao sistema informático da ré, tendo acesso a informações e ferramentas de uso exclusivo dos trabalhadores da ré, nomeadamente login de acesso, através do código de utilizador e palavra-passe, sendo ainda titular de endereço electrónico com o domínio da ANAC, 'renato.miranda.anac.pt';
- Designadamente, o autor utilizava um sistema informático através do qual efectuava o planeamento, supervisão e atribuía as não conformidades quando havia motivo para tal;
- O autor elaborava os manuais, os pareceres e os processos indicados nos contratos assinados nas instalações da ré;
- O autor executava auditorias e inspecções a aeronaves nos locais que lhe eram indicados pela ré, sendo as deslocações pagas à parte, como aos demais trabalhadores da ré;
- O autor recebia instruções verbais e por email da Chefe do Departamento de Transporte Aéreo, da Directora de Operações de voo, respectivamente BB e CC;
- A ré determinou ao autor a realização de 200 inspecções por ano, do departamento de Transporte Aéreo da Direcção de Operações de Voo, onde se encontrava integrado e 100 em média a aeronaves estrangeiras, perfazendo 3000 inspecções em dez anos;
- Apesar de a ré conceder formalmente ao autor isenção de horário de trabalho, as tarefas que lhe ordenava e que o autor não podia recusar representavam um período normal de trabalho superior a 8 horas diárias, permitindo que a ré organizasse na medida do possível, o trabalho de acordo com a sua disponibilidade;
- Tal 'situação de excesso de trabalho' levou o autor a sofrer um princípio de AVC no ano de 2019;
- A ré determinou ainda ao autor, a formação de inspectores para auditar aeronaves estrangeiras que se deslocavam a Portugal, sendo o único inspector a fazê-lo na ré;
- Nesse sentido, o autor recebia instruções sobre o modo de elaboração do seu trabalho, determinadas pelos seus superiores hierárquicos;
- Ao abrigo dos contratos de avença assinados entre o autor e a ré, este tinha de assegurar todas as funções em regime de exclusividade e apresentando disponibilidade para efectuar todas as deslocações ou reuniões, dentro ou fora do país, que o autor e ré considerassem necessárias (cláusula 2.ª, n.º 2);
- O autor estava integrado no departamento de Transporte Aéreo da Direcção de Operações de Voo da ré;
- O autor utilizava cartões, nomeadamente de Autoridade, de acesso aos aeroportos nacionais e de autoridade nacional e internacional;
- O autor estava ainda sujeito ao sistema de avaliação de desempenho da ré, à semelhança dos restantes trabalhadores;
- A ré não pagou ao autor entre 2009 a 2023, subsídio de férias, subsídios de Natal e férias não gozadas, pelos que lhe deve essas quantias;
- O autor não recebeu desde 2009 subsídio de alimentação, à razão de 7,00€ por cada dia de trabalho efectivamente prestado, sendo por isso devidos ao autor 882,00€ correspondente ao ano de 2009 e 26.680,00€ correspondente aos anos de 2010 a 2024;
- A ré proporcionou ao autor a formação profissional a que este tinha direito;
- A partir do ano de 2009, o autor colocou-se como trabalhador independente, pelo que sobre os seus rendimentos impendeu, uma maior carga de contribuições para a segurança social, em virtude de ter de passar recibos verdes;
- Deve o autor ser compensado pelos montantes pagou indevidamente ao Estado, em virtude da necessidade da necessidade de passar recibos verdes à ré, que se calculam pela diferença entre a percentagem a que estaria sujeito caso fosse enquadrado por conta da ré e os 25% incidentes sobre o seu rendimento bruto;
- No período compreendido entre 2009 e 2023, o autor pagou a título de imposto sobre o seu rendimento pessoal, quantias a mais do que pagaria com o regime fiscal que lhe seria legalmente aplicável;
- Na sequência da situação de 'excesso de trabalho' e princípio de AVC sofrido, o autor esteve internado, sofreu dores físicas e ficou incapacitado de trabalhar;
- Ficou com sequelas ao nível da pressão arterial, nomeadamente problemas de tensão alta;
- Tendo de ser seguido por médicos da especialidade de cardiologia e de outras especialidades;
- O autor viu-se constantemente obrigado a ter que trabalhar, sem férias, descurando a sua vida pessoal para poder cumprir o seu contrato devidamente, sempre com receio de ver rescindido o seu contrato de prestação de serviços pela ré ANAC e ficar sem trabalho;
- Como foi o caso de uma cirurgia à bexiga que o autor deveria ter feito, mas que, por impossibilidade de tirar tempo para o efeito, por excesso de trabalho, foi sempre adiando, com danos para a sua saúde, tendo agora que ser seguido e acompanhado também por médico desta especialidade;
- O autor viveu durante todos os anos de execução do contrato de prestação em constante stress e ansiedade, para cumprir todos os pedidos da ré, o que também lhe causou muitos danos à vida pessoal;
- O autor sofre ainda hoje com dificuldades em dormir, insónias e angústia constante, por não ter sido reconhecido o seu vínculo como trabalhador e por na vigência do seu vínculo contratual, ver-se obrigado a 'não dormir', nem a poder ficar doente e tratar-se devida e cabalmente, por ter — alegadamente — um vínculo precário;
- Apesar de ter ficado estabelecida a prorrogação do contrato assinado em 17 de Agosto de 2022, a ré optou por não levar a cabo essa prorrogação, tendo a relação de trabalho do autor com a ré cessado em 16 de Agosto de 2023, relação que havia perdurado desde 4 de Junho de 2009 (com a rectificação pelo Tribunal dos lapsos manifestos contidos da petição inicial quanto às datas considerando o demais alegado na petição inicial).
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual a ré não esteve presente com os fundamentos que alega como fundamento da apelação, nem contestou, pelo que na sequência disso a Mm.ª Juíza proferiu a sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
1. reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre o autor AA e a ré Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) entre 4 de Junho de 2009 a 16 de Agosto de 2023;
2. declarar ilícito o despedimento e, em consequência, condenar a ré, a pagar ao autor:
(i) uma indemnização de trinta dias de retribuição base (€ 5.650,00) por cada ano completo ou fracção de antiguidade, reportada a 04.06.2009, e até ao transito da presente sentença, computada a vencida nesta data em € 90.400,00 (noventa mil e quatrocentos euros);
(ii) o valor das retribuições que deixou de auferir desde 22.06.2024 (trinta dias antes da propositura da acção) até ao trânsito em julgado da presente sentença, e descontados os valores que tenha eventualmente recebido de subsídio de desemprego ou em virtude da cessação do contrato (390.º, 2, c) CT).
3. condenar a ré Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) a pagar ao autor férias não gozadas, subsídio de férias e de Natal vencidos desde 4 de Junho de 2009 a 16 de Agosto de 2023, a liquidar por simples cálculo aritmético, acrescidas tais quantias de juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento até integral e efectivo pagamento.
4. absolver a ré do demais peticionado.
Notificada da sentença e inconformada como que nela foi decidido, a ré interpôs recurso, pedindo que seja determinado:
a) que a presente invocação da incompetência material está em tempo nos termos do art.º 97.º do Código de Processo Civil, por se fundar numa sentença prévia, transitada em julgado do próprio tribunal a quo, sob pena de inconstitucionalidade por violação do art.º 20.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
b) a incompetência material do Tribunal a quo, em cumprimento da sentença do processo n.º 1.058/23.0T8LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Trabalho de Lisboa - Juiz 3, transitada em julgado no dia 4 de Julho de 2023, sob pena de inconstitucionalidade por violação do art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa;
c) a revogação da sentença recorrida, em conformidade;
d) a condenação do recorrido como litigante de má-fé, mais se considerando que actuou com dolo e nessa medida ser fixada a multa e a indemnização nos termos do art.º 543.º em montante que a determinar,
concluindo assim a alegação:
"1. A mandatária da Recorrente e o seu legal representante para o acto estiveram no tribunal a quo na data e hora para realização de audiência de partes - 4 de Novembro de 2024;
2. No dia 4 de Novembro de 2024 estava convocada uma greve de 24 horas pelo FESINAP.
3. Que a mandatária da Recorrente e o seu legal representante para o acto se deslocaram à secretaria do Juiz 7 do Juízo do Trabalho de Lisboa que se encontrava sem qualquer funcionário judicial e com as luzes desligadas.
4. Não foi realizada qualquer chamada junto à secretaria do Juiz 7 do Juízo do Trabalho de Lisboa.
5. Foi informado à Mandatária da Recorrente, Dr.ª DD, e ao legal representante nomeado para o acto, Dr. EE, que seria designada uma nova data para audiência de partes.
6. Foi a Recorrente surpreendida pela Sentença recorrida.
7. O Recorrido interpôs acção fundada nos mesmo factos, em que pretendia igualmente o reconhecimento de que possuía um contrato de trabalho com a ora Recorrente e procurava a declaração de ilegalidade do despedimento com as legais consequência em 1 2 de Janeiro de 2023.
8. A referida acção correu termos no mesmo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo do Trabalho de Lisboa, mas no Juiz 3 sob o n.º 1058/23.0T8LSB.
9. No processo n.º 1058/23.0T8LSB foi proferida sentença, transitada em julgado em 4 de Julho de 2023, a determinar a incompetência material do Tribunal a quo por violação de pacto privativo de jurisdição já podemos concluir que ocorre, assim, a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, prevista nos art.os 96.º, al. b) e 577.º, al. a), ambos do CPC, circunstância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que dá lugar à absolvição da ré da instância (art.os 99.º, n.º 1 e 577.º, al. a), ambos do CPC), ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas na contestação').
10. In casu, não se poderá proceder à aplicação literal do art.º 100.º do Código de Processo Civil sob pena de inconstitucionalidade por violação do art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que colocaria em causa o direito da Recorrente de acesso à justiça, por lhe recusar o direito de acesso a um processo equitativo e de obter uma tutela jurisdicional efectiva.
11. Efectivamente, a aplicação literal do art.º 100.º do Código de Processo Civil, implicaria que perante uma declaração de incompetência material por um tribunal a parte que tivesse perda de causa na questão da incompetência material pudesse intentar outra(s) acção(ões) com os mesmos factos, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir contra a mesma contra-parte, redundando numa clamorosa violação do direito da Recorrente a um processo equitativo.
12. Termos em que se requer que tal interpretação não seja aplicada ao caso sub judice por inconstitucional.
13. Não pode a parte que obtenha ganho de causa na questão da incompetência material do tribunal ficar sujeita ad aeternum, ou pelo menos até à caducidade do direito de acção, a ser accionada no mesmo tribunal sobre os mesmos factos, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir sempre que a outra parte assim o deseje.
14. Adicionalmente, tal interpretação promoveria um uso temerário, imprudente e desregulado dos meios judiciários.
15. Neste sentido, de que a declaração de incompetência material vincula o próprio tribunal já se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 17658/23.5T8PRT.P1 ('Por exemplo: o tribunal absolveu o réu da instância com fundamento na sua incompetência material para apreciar a acção; o autor insiste e propõe uma nova acção no mesmo tribunal; este tribunal está vinculado à absolvição da instância proferida na primeira acção').
16. Assim, por estarmos perante um caso em que existe identidade de partes, identidade de pedido e identidade de causa de pedir está o Tribunal a quo vinculado pela declaração de incompetência material decretada no processo n.º 1058/23.0T8LSB, não podendo, agora, proferir decisão sobre a questão de fundo.
17. São princípios de segurança e certeza jurídica que se impõem.
18. Como o afirmou o referido aresto do Tribunal da Relação do Porto: '(…) tendo o tribunal emitido pronúncia sobre a questão, não há qualquer valor digno de tutela legal que justifique o reconhecimento de uma prerrogativa do juiz - do mesmo juiz ou de outro juiz do mesmo tribunal - de se desdizer, afirmando, em contradição com anterior decisão, a competência do tribunal. Prevalecente será, sim, a proibição de adopção de comportamentos contraditórios por parte do tribunal'.
19. O Recorrido bem sabia do teor da sentença do processo n.º 1058/23.0T8LSB, designadamente que o Tribunal a quo se tinha declarado materialmente incompetente para apreciar a situação material controvertida.
20. Ainda assim, tomou a decisão livre e consciente de intentar a presente acção contra a Recorrente com base nos mesmos factos, com o mesmo pedido e com a mesma causa de pedir.
21. O que consubstancia um caso clamoroso de litigância de má-fé, o que se requer que seja declarado.
22. Deve ser o Recorrido ser declarado litigante de má-fé nos termos do art.º 542.º, n.º 1 e n.º 2 b) do Código de Processo Civil.
23. Sendo, em conformidade, condenado nos termos do art.º 543.º, n.º 1 alíneas a) e b) do mesmo diploma legal em montante a determinar por esse douto Tribunal.
24. Deve a presente invocação da incompetência material ser considerada invocada em tempo nos termos do art.º 97.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, uma vez que a mesma se funda na sentença proferida pelo Tribunal a quo no processo n.º 1058/23.0T8LSB.
25. Está em causa a violação do determinado na sentença do processo n.º 1058/23.0T8LSB no qual o tribunal a quo já se declarou materialmente incompetente para apreciar a questão de um modo definitivo enquanto se mantiver o vício que a fundou, o que, in casu, ainda se mantém.
26. É um dos casos de eficácia extra-processual do caso julgado formal que refere o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
27. Solução diferente colocaria em causa os princípios da segurança e da certeza jurídica das decisões judiciais.
28. Devendo ser afastada a interpretação do art.º 97.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que impeça a invocação da incompetência material do tribunal a quo declarada por sentença anterior, transitada em julgado, até ao trânsito em julgado de sentença que conhece do mérito sobre os mesmos factos, com os mesmo fundamentos e com as mesmas partes, por a mesma ser inconstitucional por violação do art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, por colocar em causa o direito da parte que tenha ganho de causa da declaração da incompetência material a obter uma tutela jurisdicional efectiva e um processo equitativo, até porque, por ser parte vencedora da declaração de incompetência material não pode lançar mão do mecanismo de recurso do 101.º do Código de Processo Civil".
Contra-alegou o autor, pedindo a improcedência do recurso.
Os autos foram com vista ao Ministério Público, tendo a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sido do seguinte parecer:
"É consabido que são as conclusões do recorrente que delimitam o objecto do recurso, pelo que limitamos o nosso parecer às questões ali suscitadas pela Recorrente.
Não obstante alegar que esteve presente na data designada para a audiência de partes, a Recorrente não invoca a falsidade da ata, nem retira desse facto qualquer consequência. Em todo o caso, sempre se dirá que as suas afirmações são contrariadas pela informação prestada em 14-05-2025, pela Secretária de Justiça, em regime de substituição, dando conta que no dia 4-11-2024 a secretaria que dá apoio ao Juiz 7 se encontrava a funcionar com 3 funcionários. Acresce que além da audiência de partes dos presentes autos realizou-se no Juiz 7 uma audiência de julgamento num outro processo, conforme informou, também em 14-05-2025, o Escrivão-Adjunto.
Invoca também, a Recorrente, a existência de caso julgado formal relativo à incompetência material do Tribunal. Porém, não demonstra a identidade de pedidos formulados nas duas acções, já que a sentença de 26-05-2023 cuja certidão fez juntar com as alegações, não tem a necessária referência aos concretos pedidos ali formulados e da certidão em causa não consta a petição inicial daquele outro processo.
Fica assim prejudicado o conhecimento da invocada inconstitucionalidade de uma interpretação literal do artigo 100.º do CPC.
Ademais, tendo sido invocado o despedimento ilícito do Autor em 16-08-2023, além de manifesto que esse facto não tinha ocorrido aquando da prolação da sentença anterior, é sem dúvida aos tribunais judiciais (e não à arbitragem) que compete, nos termos do disposto no artigo 387.º, n.º 1 do Código do Trabalho, apreciar a regularidade e licitude do invocado despedimento.
Não agiu, pois, o Recorrido, de má-fé.
Face ao exposto, e aderindo no essencial à posição do Recorrido, somos de parecer que o recurso interposto deverá improceder".
Ambas as partes responderam ao parecer do Ministério Público, a apelada para com ele concordar e a apelante para reafirmar as razões da sua apelação.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar o mérito do recurso, delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente e pelas questões de que se conhece ex officio. Assim, importa apreciar:
i. da incompetência do Tribunal a quo em razão da matéria e consequente revogação da sentença recorrida;
ii. da litigância de má-fé do apelado.
***
II - Fundamentos.
1. Factos julgados provados:
Os factos julgados provados na sentença apelada são os que foram alegados pelo apelado na petição inicial (atrás sumariamente descritos), como de resto expressamente referiu ("Atendendo à falta de oposição da ré, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor na petição inicial (art.º 57.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho)".
Por outro lado, a este propósito também releva dizer, embora em contramão com o sugerido no parecer da Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, que nenhuma dúvida se suscita em dizer que os factos julgados provados na acção são exactamente os mesmos que antes serviram ao Tribunal do Trabalho de Lisboa para decidir ser incompetente em razão da matéria para apreciar o litigio que então lhe foi submetido pelo ora apelado (vale dizer, a qualificação jurídica dos sucessivos contratos celebrados entre as partes entre 04-06-2009 e 17-08-2022 como de avença, como foram denominados e pretendeu e pretende a apelante, ou de trabalho, como aqui e ali foi e é pretendido pelo apelado), como se vê da certidão da sentença junta com a apelação (documento esse que ‒ e uma vez que a apelante não contestou a acção ‒ estava em tempo para o fazer nos termo do art.º 423.º, n.º 3, tanto mais que da incompetência absoluta deve o Tribunal conhecer ex officio, conforme resulta dos art.os 576.º, n.os 1 e 2, 577.º, alínea a) e 578.º, como aquele do Código de Processo Civil).
2. O direito.
Vejamos então a questão da incompetência do Tribunal em razão da matéria, a qual melhor se deve colocar assim, uma vez que é inequívoco que antes foi já decidida pelo Tribunal a quo noutro processo que perante o mesmo correu entre as partes: o caso julgado formado pela decisão que declarou o tribunal materialmente incompetente vale apenas no respectivo processo ou também externamente quando o autor intente nova acção no mesmo tribunal?
A resposta negativa a essa questão parece inapelável tendo em conta que o art.º 100.º do Código de Processo Civil estabelece que "a decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo o disposto no artigo seguinte".
Todavia, como decidiu o acórdão da Relação do Porto, de 04-07-2024, no processo n.º 17658/23.5T8PRT.P1, publicado em http://www.dgsi.pt (data venia à apelante), "a norma enunciada no art.º 100.º do Cód. Proc. Civil deve ser interpretada restritivamente, devendo entender-se que, em nova acção, decalcada da primeira, o mesmo tribunal se encontra vinculado à sua anterior decisão de incompetência, nos casos em que esta assentou numa apreciação jurídica qualificativa da relação material controvertida, devendo absolver o réu da instância, por força da eficácia extra processual do caso julgado formal – autoridade de caso julgado, por vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objecto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objecto".
E as razões nele convocadas, deve dizer-se, são deveras convincentes e com as quais se concorda, in totum. Assim:
"Em todas estas acções as partes são as mesmas, a causa de pedir é a mesma e o pedido é o mesmo. Acresce que, nas primeira e a última acções, o tribunal também é o mesmo. Entre estas duas acções (n.º 1998/23.6T8PRT e n.º 17658/23.5T8PRT.P1) ocorre uma absoluta coincidência entre causas, designadamente, para efeitos de litispendência (se ambas as causas estiverem pendentes) ou de caso julgado (máxime, se a lide anterior terminou por julgamento do mérito do pedido) – art.º 581.º do Cód. Proc. Civil.
É desprovida de mérito a posição adoptada pela apelante, de acordo com a qual estas duas causas não seriam idênticas, por ser diferente a causa de pedir. A única diferença sinalizada pela apelante – constante do art.º 41.º da petição inicial, transcrito no ponto 10 – nada tem a ver com a relação material controvertida que preenche os pressupostos da responsabilidade civil do gerente ou administrador.
1.2. Caso julgado da decisão sobre a relação processual
A referida acção tramitada sob n.º 1998/23.6T8PRT terminou por decisão de absolvição da instância, por se ter decidido ser o Juízo Central Cível do Porto absolutamente incompetente. Dispõe o art.º 100.º do Cód. Proc. Civil que 'A decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida (…)'. É esta norma que analisaremos.
Explicava Alberto dos Reis que, 'quando se julga procedente a excepção de incompetência, o julgamento tem naturalmente um duplo aspecto: negativo e positivo. Ao mesmo tempo que se nega a competência do tribunal perante o qual a acção foi proposta, afirma-se a competência dum outro tribunal' – cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 323. Diferentemente do que ocorre no julgamento de incompetência relativa – onde os dois aspectos estão presentes −, na decisão (afirmativa) proferida sobre a incompetência absoluta só vale o aspecto negativo: o tribunal tido por competente não está vinculado pela decisão anterior, podendo declarar-se incompetente.
Destas considerações pode retirar-se que o sentido a atribuir à norma prevista no art.º 100.º do Cód. Proc. Civil, interpretada restritivamente, é apenas o de que a decisão proferida não tem força vinculativa para o tribunal designado competente, e não que a decisão é desprovida de qualquer efeito externo, relativamente à ulterior instauração da mesma acção num novo processo.
No entanto, Alberto dos Reis dava mais um passo e defendia que, mesmo no aspecto negativo, a decisão 'não tem valor fora do processo em que foi proferida. O próprio tribunal que num processo se julgou incompetente, não está inibido de noutro processo se considerar competente para a mesma acção'. E explicava: 'o princípio que está na base desta doutrina é o de que cada tribunal tem o poder de conhecer da sua própria competência' − idem, ibidem, p. 324.
1.3. Objecções à ineficácia extraprocessual do caso julgado formal
Esta interpretação da norma é (compreensivelmente) nitidamente historicista, sendo desenvolvida num contexto processual civil marcadamente autoritário. Tal posição é hoje dificilmente sustentável.
Por um lado, não deve prevalecer nesta discussão o perfil do juiz (concreto), autocrático e ferozmente individualista, mas sim a ideia de um tribunal que apenas existe para servir os cidadãos, garantindo o acesso ao Direito – desenvolvendo a sua função para os cidadãos. Não tem hoje sentido, a pretexto de se tutelar o poder do juiz conhecer a sua própria competência, desconsiderar a pronúncia do mesmo tribunal sobre a sua incompetência. Na verdade, tendo o tribunal emitido pronúncia sobre a questão, não há qualquer valor digno de tutela legal que justifique o reconhecimento de uma prerrogativa do juiz – do mesmo juiz ou de outro juiz do mesmo tribunal – de se desdizer, afirmando, em contradição com anterior decisão, a competência do tribunal. Prevalecente será, sim, a proibição de adopção de comportamentos contraditórios por parte do tribunal.
Por outro lado, estando o Processo Civil ao serviço das partes (hoc sensu), não pode deixar de se considerar ser um verdadeiro abuso do processo a repetição da mesma acção com as mesmas patologias adjectivas, a coberto da putativa inexistência de efeito extraprocessual das decisões que, nas causas anteriores, julgaram verificadas tais patologias processuais. A lei não se deve preocupar aqui mais com o poder autocrático do juiz (preocupação legítima noutros domínios, mas aqui perfeitamente deslocada) do que com o direito da contraparte a um processo equitativo – melhor, a um sistema processual civil equitativo (coerente e consequente com as decisões proferidas sobre questões concretas).
Afigura-se-nos que a interpretação da norma vertida no art.º 100.º do Cód. Proc. Civil, no sentido de caucionar novas demandas por parte do autor vencido (na questão da competência do tribunal), obrigando a contraparte a defender-se em cada caso, não é conforme à Constituição (art.º 20.º da Const. Rep. Portuguesa). O demandado também tem direito a um processo equitativo − incluindo, no caso, a que se recuse à contraparte o direito de repetir causas −, também gozando de garantia de acesso ao Direito, compreendendo este o direito a ver a questão definitivamente decidida (não ficando permanentemente sujeito à eventual prolação de uma decisão contraditória) e a beneficiar da prévia pronúncia final favorável de um tribunal (sobre a mesma exacta acção), notando-se que, como parte vencedora, não pode lançar mão do mecanismo previsto no art.º 101.º do Cód. Proc. Civil.
Não procede aqui o argumento de que o tribunal tem sempre o poder de conhecer da sua própria competência. Tal poder existe, ressalvados os casos previstos na lei – como na incompetência relativa (art.º 105.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil) –, mas já foi exercido na primeira acção pelo mesmo tribunal, sendo que não se pode afirmar a existência do poder do tribunal de se contradizer sobre a sua competência.
1.4. Excepção de autoridade de caso julgado
De acordo com este entendimento, nalguns casos, o autor deverá ficar impedido de instaurar nova acção perante o mesmo tribunal, sem que se mostre sanado o obstáculo que justificou a decisão de absolvição da instância proferida no primeiro processo – admitindo que, mantendo-se um vício impeditivo (não sanado) que fundou a absolvição da instância, a repetição da causa possa colidir com a excepção dilatória de caso julgado (material), cfr. José lebre de Freitas, «Um polvo chamado autoridade do caso julgado», ROA, vol. III-IV, jul./dez., 2019, p. 708, Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Coimbra, Almedina, 1982, p. 16, e Maria José Capelo, A sentença entre a Autoridade e a Prova, Coimbra, Almedina, 2015, p. 96 e segs., bem como o Ac. do STJ de 30-11-2017, proc. n.º 3074/16.9T8STR.S1; sobre a temática, ver ainda os Acs. do STJ de 15-11-1995, proc. n.º 004314, e de 06-03-2008, proc. n.º 08B402; mais próximo da afirmação da excepção peremptória de autoridade de caso julgado, nestas circunstâncias, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «O objecto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual)», BMJ, n.º 325, Abril, 1983, p. 157; também Castro Mendes se manifestou contra o entendimento comum de acordo com o qual a nossa lei reservou o efeito de caso julgado material para decisão de mérito – cfr. João Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, 2014, AAFDL, p. 518, incluindo nota de rodapé n.º 651.
Desenvolve, a propósito, Teixeira de Sousa que 'a inaceitabilidade da atribuição de caso julgado material às decisões de forma não impede (…) a admissão de uma eficácia extraprocessual do caso julgado formal' – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «O objecto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual)», BMJ, n.º 325, Abril, 1983, p. 157. No entanto, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal restringe-se 'aos processos subsequentes em que se aprecia a existência de uma mesma condição processual numa mesma individualização' – idem, ibidem, p. 158.
Adverte ainda o mesmo autor que, 'ainda que com este restrito âmbito, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal não significa a existência de uma excepção de caso julgado formal, pois aquela relevância externa não é um impedimento do órgão decisório à apreciação de determinado objecto pela sua vinculação à não contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objecto, mas a vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objecto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objecto: o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objecto, mas a sujeição a julgar identicamente certo objecto' – idem, ibidem, p. 159; sublinhado nosso. Podemos concluir, tentando não desvirtuar o pensamento de Teixeira de Sousa, que o autor reconhece a existência de autoridade de caso julgado (também) no que ao caso julgado formal diz respeito – veja-se, sobre a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado, idem, ibidem, p. 200 e segs..
Neste mesmo sentido, o pensamento dos dois últimos autores acima mencionados culmina e é ilustrado do seguinte modo: 'Por exemplo: o tribunal absolveu o réu da instância com fundamento na sua incompetência material para apreciar a acção; o autor insiste e propõe uma nova acção no mesmo tribunal; este tribunal está vinculado à absolvição da instância proferida na primeira acção' – cfr. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, Lisboa, AAFDL, 2022, p. 638".
De resto, já antes o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 30-11-2017, no processo n.º 3074/16.9T8STR.S1, publicado em http://www.dgsi.pt, havia considerado que "ocorrendo identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, é de admitir a eficácia extraprocessual do caso julgado formal se o fundamento que ditou a decisão de absolvição da instância vier a repetir-se no novo processo, sendo lícito opor neste segundo processo a excepção dilatória de caso julgado", sendo que para isso convocou a seguinte ordem de razões:
"Sustentam os recorrentes que a decisão de absolvição da instância proferida na acção n.º 1621/11.1.TBVNO, ainda que transitada em julgado, constitui mero caso julgado formal, não tendo, por isso, valor fora do processo em que foi proferida.
Trata-se, porém, de uma asserção que não é absoluta, pois, desde há muito, alguma doutrina vem defendendo a possibilidade de, em algumas situações, ser atribuída eficácia extraprocessual ao caso julgado formal, subordinando, contudo, essa eficácia à verificação de identidade das partes e da 'matéria adjectiva' (no tocante a pressupostos processuais positivos insanáveis) em contexto processual idêntico (identidade da 'individualização da causa').
Nesta linha de orientação, Anselmo de Castro, advoga essa eficácia extraprocessual do caso julgado formal se ocorrer a repetição da causa com a falta do mesmo pressuposto que originou a absolvição da instância, designadamente quando esteja em causa um pressuposto que co-envolva interesses materiais.
Daí que, na esteira deste entendimento, que se perfilha, se se absolveu da instância por certo fundamento e se este se repete no novo processo, é lícito opor neste segundo processo a excepção dilatória de caso julgado.
Ora, posto que na acção declarativa nº 1621/11.1TBVNO, a decisão de absolvição da instância das ora rés foi ditada pelo reconhecimento da autoridade do caso julgado decorrente da sentença proferida na acção nº 1293/10.0TBVNO, que, tal como se deixou dito no ponto 3.2.1, se projecta também na presente acção, onde os autores pretendem fazer valer contra as mesmas rés a mesma pretensão e os mesmos fundamentos invocados naquela acção nº 1621/11.1TBVNO, manifesto se torna concluir pela verificação e procedência da excepção de caso julgado".
E a verdade é que admitir outro entendimento equivaleria, qual reductio ad absurdum, permitir ao autor irresignado com a decisão do tribunal repetir ad aeternum a acção com a única consequência lógica de obter a mesma resposta.
Como atrás já se disse, a incompetência absoluta é uma excepção dilatória que, verificada, importa a absolvição do réu da instância (art.os 99.º, n.º 1, 576.º, n.os 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil).
Fica prejudicada a apreciação da questão remanescente .
Pelo que deve conceder-se a apelação da ré por verificada a excepção dilatória do caso julgado da incompetência do tribunal em razão da matéria e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e absolvê-la da instância.
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III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder provimento à apelação por verificada a excepção dilatória do caso julgado da incompetência do tribunal em razão da matéria e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e absolvê-la da instância.
Custas pela apelada (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
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Lisboa, 19-11-2025.
Alves Duarte
Paula Santos
Carmencita Quadrado