Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6121/2006-8
Relator: SILVA SANTOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/31/2006
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- A competência dos tribunais fixa-se no momento em que a acção é proposta (art.º 22.º/1 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) e, por conseguinte, há que considerar se, nesse momento, se verificam os pressupostos de competência a que alude o artigo 97.º/1, alínea a) da Lei n.º 3/99, ou seja, se a acção declarativa cível instaurada é de valor superior à alçada do tribunal da Relação e é daquelas em que a lei prevê a intervenção do tribunal colectivo.
II Ora, na acção de interdição, regulamentada no artigo 944.º e seguintes do Código de Processo Civil, a lei prevê a intervenção do tribunal colectivo quando prescreve (artigo 952.º do C.P.C.), findo o interrogatório e exame do interditando sem que haja lugar a imediata interdição, que se sigam os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados.
III- As varas cíveis são, pois, competentes em razão da matéria para julgar acção de interdição.
(SC)
Decisão Texto Integral:          DECISÃO PROFERIDA NOS TERMOS DO ART. 705 DO CPC


I.
O Ministério Público intentou  no tribunal judicial de Lisboa – Varas Cíveis - a presente acção especial de interdição relativamente a Maria […]

Liminarmente aquele tribunal decidiu declarar …«esta Vara Cível incompetente em razão da forma do processo e ordena-se, após trânsito, a remessa dos presentes autos aos Juízos Cíveis de Lisboa para distribuição».

II
Desta decisão recorre agora o M. P. pretendendo a sua revogação, porquanto:

1- Do teor do disposto nos arts 17.° da LOTJ (Lei n.° 3/99, de 13.01) e 62.°, n.° 2, do CPC, resulta que no âmbito da actual lei orgânica dos tribunais judiciais, a competência em função da forma do processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional, porquanto aquele preceito lhe não faz qualquer referência;
2- As varas Cíveis são tribunais de competência especifica, competindo-lhes a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada da Relação, para as quais a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo, conforme arts 96.° e 97.0, n.° 1, ai. a), da LOTJ;
3- Essa competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, nos termos do art. 22.°, n.° 1, do mesmo diploma;
4- As acções especiais de interdição revestem valor superior ao da alçada do tribunal da Relação, cfr. art.° 312.° do CPC;
5- A respectiva regulamentação legal prevê a hipótese de intervenção do tribunal colectivo no julgamento, de acordo com o estabelecido no art. 646.°, n.° 1, do CPC, visto que deverá seguir os termos do processo ordinário, nos casos do art. 952.°, n.° 2, do citado Código;
6- Assim, verificam-se todos os pressupostos que conferem competência especifica às varas Cíveis para conhecer das acções de interdição por anomalia psíquica;
7- Os casos compreendidos na previsão do n.° 4 do art. 97 da Lei n.° 3/99 serão as causas cujo procedimento normal, legalmente previsto, segue ab initio uma tramitação simplificada, por remissão para a disposição geral dos incidentes da instância contida no art. 304.° do CPC, mas poderão, eventualmente, prosseguir os termos do processo ordinário, consoante o valor da acção, se não puderem ser decididas sumariamente como sucede no âmbito dos processos especiais de prestação de contas e da acção de divisão de coisa comum, respectivamente, nos termos dos arts. 1014.°-A, n.° 3 e 1053.°, n.°s 2 e 3, do CPC;
8- Assim, as acções especiais de interdição, são originariamente e na sua fonte, da competência das varas Cíveis;
9- A decisão recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos art.°s 97.°, n.°s .1, ai. a) e 4 e 99.°, ambos da Lei n.° 3/99, com referência aos art.°s 948.°, 952.° e 646, n.°s 1 e 2, do CPC;
10- 10-Tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que considere competentes as varas Cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição.

O tribunal manteve a decisão.

III.
A matéria de facto relevante é aquela que supre se sumariou.

IV.
O princípio geral acerca da competência em razão da matéria consta do artigo 66º e 67 do CPC.

O artigo 68º do CPC dispõe que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo.

Acrescenta-se no nº 1 artigo 64º da LOFTJ: pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e de competência específica.

”Os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável...”(64º, nº 2).

Os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável; os tribunais de competência específica conhecem de matérias determi­nadas em função da forma de processo aplicável, conhe­cendo ainda de recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-ordenação, nos termos do n. 2 do artigo 102. – art. 64 nº2 do citado diploma

De acordo com o Artigo 97:
 Compete às varas cíveis:
A preparação e julgamento das acções decla­rativas cíveis de valor superior à alçada do tri­bunal da Relação em que a lei preveja a inter­venção do tribunal colectivo;
A preparação e julgamento das acções execu­tivas fundadas em título que não seja decisão judicial, de valor superior à alçada dos tribunais da Relação;
A preparação e julgamento dos procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 — Onde não houver tribunais de família e de comér­cio, é extensivo às acções em matéria de família e de comércio o disposto na alínea a) do número anterior.
3 — São remetidos às varas cíveis os processos pen­dentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.
4 — São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a inter­venção do tribunal colectivo.
5 — Nas varas cíveis compete ao juiz da causa ou ao juiz a quem for distribuído o processo o exercício das funções previstas no artigo 108.o, com as devidas adaptações.

Aos Juízos cíveis compete aos juízos cíveis preparar e julgar os pro­cessos de natureza cível que não sejam de competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível. (art.99)

A competência dos juízes cíveis é, assim, residual, pelo que, o essencial é determinar se a causa em questão compete às varas cíveis.
Se assim não for então encontrar-se-á por exclusão a competência do tribunal.

V.
De acordo com o citado art. 97 para a verificação da competência das varas cíveis é necessária a verificação cumulativa destes dois requisitos:

1. a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação;
2. a lei prever a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.

Segundo o art. 462 do CPC, as formas de processo declarativo comum são definidas através de critérios assentes exclusivamente no objecto da acção ou simultaneamente no seu valor e no respectivo objecto.

Assim, se o valor da acção exceder a alçada da Relação, a forma de processo comum é a ordinária (artigo 462º, n.º 1 CPC).

Por essa razão, como as acções sobre o estado das pessoas excedem o valor da alçada da Relação (artigo 312º CPC), seguirão a forma ordinária, salvo se se tratar de processo especial.

Os processos especiais regular-se-ão pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns.

Em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se achar estabelecido para o processo ordinário segundo o art.  463º, n.º 1 .

A acção em questão é de interdição.

A acção de interdição, porque é uma acção sobre o estado das pessoas  - artigos 138º a 151º CC e 311 nº 1 do CPC - excede o valor da alçada da Relação.

Porém, porque se trata de um processo especial é regulado:

· Em primeiro lugar, pelas disposições contidas nos artigos 944º a 958º CPC;
· Em segundo lugar, se estes artigos não forem suficientes, pelas disposições gerais e comuns;
· Em terceiro lugar, pelas normas relativas ao processo ordinário (artigo 467º e seguintes).

Em relação ao processo ordinário verificam-se algumas alterações significativas nas acções de interdição.

E estabelece o artigo 952º:

1. Se o interrogatório e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.
2. Nos restantes casos, seguir-se-ão os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados...

Portanto, findos os articulados e o exame, se a acção tiver sido contestada, ou o processo não oferecer elementos suficientes, a acção prosseguirá segundo as regras do processo ordinário.

VI.
É certo que também pode não haver intervenção do tribunal colectivo e por isso se afastaria a intervenção das varas cíveis.

Todavia, tal argumento não é decisivo, nem sequer pertinente.

É que, também nas acções ordinárias não contestadas tal intervenção pode não acontecer.

Só ocorrerá se ambas as partes o requererem.

Por outro lado, há mesmo casos em que é inadmissível a intervenção do colectivo, como se prevê no nº 2 do art. 646 do CPC.

E, não obstante estas situações, não se questiona nem se põe em causa a competência material das varas cíveis para prepara e julgar tais acções.

Ora, no caso em apreço, o ponto fundamental para se decidir tal questões resulta de saber, afinal, se se verificam ou não, originariamente, os pressupostos da competência das varas cíveis, ou seja, se ocorrem ou não os pressupostos cumulativos privativos das varas cíveis a que se refere o art. 97 referido.

E originariamente porquê?

Pela simples razão de que a atribuição da competência dos tribunais se fixa no momento em que a acção é proposta face ao estatuído no nº 1 do art. 22 da LOTJ.
(A competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente…).

Ora, a resposta não pode deixar de ser positiva.

VII.
De facto, trata-se de acção de valor superior à alçada e a lei prevê a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo o que tem de acontecer de forma primeira e originária.

E sendo como é uma competência originária, não pode confundir-se com a situação a que se refere o nº 4 do citado art. 97.

Portanto, originariamente, trata-se de uma acção declarativa cível de valor superior à alçada do tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, pelo que cabe às varas cíveis a competência em razão da matéria para conhecer, preparar e julgar, ainda que, por virtude de o réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção do tribunal colectivo.

Assim sendo, procedem as conclusões do agravante, o que determina a procedência do recurso.

VIII.
Deste modo e pelo exposto, na procedência do agravo, revoga-se a decisão impugnada no sentido de se considerar que no presente caso as varas cíveis são competentes em razão da matéria para conhecer, preparar e julgar a acção de interdição em questão.

Sem custas.

Lisboa, 31 de Julho de 2006

Silva Santos