Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26139/09.9T2SNT-XF.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: INSOLVÊNCIA
NULIDADE DA VENDA
PRAZO DE ARGUIÇÃO
DISPENSA DE DEPÓSITO DO PREÇO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: Sumário[1]:
I - As irregularidades na tramitação do procedimento da venda judicial (vícios procedimentais, nos termos dos arts. 195º e ss. do CPC), mas também os vícios na declaração de vontade do comprador (vícios materiais, nos termos do art. 838º, nº 1 do CPC) suscetíveis de destruírem a eficácia ou a validade da venda, devem ser arguidos, apreciados e decididos no âmbito do processo onde a mesma foi realizada, como questão incidental e em conformidade com o regime legal processual dos incidentes da instância (arts. 292º a 295º do CPC ex vi art. 17º do CIRE).
II - Na ausência de disposição especial que no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou no Código de Processo Civil regule ou preveja prazo especial aplicável, o pedido de anulação/nulidade da venda judicial deduzido no processo onde a mesma foi realizada deve entender-se subordinado ao regime processual aplicável a esse mesmo processo e, mais especificamente, aos incidentes nele previstos que, na falta de disposição especial, inclui o prazo legal supletivo de dez dias previsto no art. 149º do CPC.
III – Ao pedido de anulação da venda pelo comprador deve considerar-se aplicável o prazo de dez dias supletivamente previsto para a dedução de incidentes a contar do conhecimento do vício que o fundamenta, em detrimento do prazo de um ano, por ser aquele o que mais se ajusta ao “interesse público ligadas à natureza do processo de execução, em especial, decorrente da necessidade de assegurar a protecção da estabilidade das vendas em execução, bem como a protecção da confiança, da segurança jurídica e da boa-fé dos terceiros adquirentes.
IV - O conhecimento do vício fundamento do pedido de anulação da venda corresponde ao conhecimento empírico dos factos que o fundamentam, e não ao conhecimento da sua qualificação jurídica, se os mesmos poderiam ou não fundamentar um pedido neste ou naquele sentido, ou sobre a via ou solução juridicamente apta ou idónea a conduzir ao resultado prático visado alcançar com a requerida anulação da venda.
V - Os pedidos de retificação ou de reforma da sentença não interferem com o termo inicial e o decurso do prazo para requerer a anulação da venda nos termos dos arts. 195º e 199º do CPC ou nos termos do art. 838º do mesmo diploma.
VI - O credor adquirente de bens da massa insolvente não tem legitimidade para requerer a anulação da venda com fundamento em indevida dispensa de depósito do preço por não ser ele o interessado visado tutelar com as condições legais de que a mesma depende nos termos do art. 815º do CPC.
VII – A celebração/formalização da venda com indevida dispensa de depósito do preço não tem a virtualidade de afetar as suas validade e eficácia, mas apenas dar origem a crédito da massa insolvente sobre o comprador a título de preço devido pela aquisição do bem e não pago, cuja cobrança compete ao administrador da insolvência promover.
VIII - O desconhecimento pelo credor adquirente dos termos da verificação e graduação do seu crédito pela sentença de verificação e graduação de créditos já proferida nos autos só ao próprio é suscetível de imputar-se.

[1] Da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº7 do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I - Relatório
1. Por apenso ao processo de insolvência de CapitalGanho – Sociedade Imobiliária, Ldª, em 30.04.2025 Solid Struture – Mediação Imobiliária, SA requereu incidente de anulação de venda contra a massa insolvente e os credores EAM – Évora Asset Management, SA, Novo Banco, SA, Fazenda Nacional, e A., formulando os seguintes pedidos:
• A anulação da adjudicação realizada relativamente às verbas 3 e 10 da massa insolvente e bem assim o cancelamento dos registos de aquisição consubstanciados na apresentação 96 de 02.03.1999 relativamente à verba 3 da massa insolvente  apresentação 39 de 22.06.2004, com base em erro da requerente nos termos previstos no artigo 252.º do Código Civil;
• Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deve a decisão de adjudicação ser anulada por falta de conformidade com o que foi anunciado aquando da venda dos imóveis, nos termos dos artigos 195º e 197º e artigo 838.º do Código de Processo Civil e o cancelamento dos registos de aquisição consubstanciados na apresentação 96 de 02.03.1999 relativamente à verba 3 da massa insolvente e apresentação 39 de 22.06.2004, relativamente à verba 10 da massa insolvente.
• A devolução do valor de € 9.000,00 pago pela A pela adjudicação dos referidos imóveis.
Alegou que em 24.10.2013 adquiriu os créditos detidos pelo Banco Popular sobre a insolvente CapitalGanho e as hipotecas que os garantiam sobre os prédios descritos nas verbas 3 e 10 do auto de apreensão, correspondentes aos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Sintra sob os nº2103 e 3920 e inscritos na matriz predial sob os arts. 729 (urbano) e 21 (rústico), e sobre as frações correspondentes às verbas nºs 18, 19, 20, 21, 22, e 23; a partir de outubro de 2013 assumiu nos autos a posição de credora com garantia real, em julho de 2014 requereu a adjudicação de todas as verbas objeto de garantia real de que era titular, e todos aqueles imóveis foram-lhe adjudicados por €290.650,00, sendo a verba 3 pelo valor de €50.000,00 e a verba 10 pelo valor de €40.000,00, tendo a requerente depositado o valor total de €29.055,00, sendo €9.000,00 referente às verbas 3 e 10; a adjudicação resultou da reunião da comissão de credores de 14.08.2014 e a transmissão a favor da requerente ocorreu em 16.09.2014 através da ap. 2613 correspondente à inscrição da aquisição no registo predial (cfr. documento que junta); em 12.03.2024 o Sr. administrador da insolvência (AI) verificou que na sentença de graduação de créditos proferida a 14.12.2012 os imóveis referentes às verbas 3 e 10 foram tratados como imóveis sem hipoteca e o seu produto a distribuir pelos credores comuns e, nessa sequência, foi proferido despacho no sentido de a requerente proceder ao pagamento do valor de adjudicação das verbas 3 e 10 em falta (€81.000,00).
Por referência a este contexto alegou que requereu a adjudicação das verbas 3 e 10 no pressuposto de ser credor com hipoteca sobre as mesmas, situação que foi aceite pelos credores, pelo AI e pelo magistrado do processo, que induziram a requerente em erro no sentido de que teria as prorrogativas de um credor privilegiado, erro que foi suscitado em 12.03.2024 e depois definitivamente consolidado por acórdão da Relação de Lisboa de 26.02.2025; que se soubesse que teria de pagar a totalidade do preço e não apenas 10% do mesmo não teria requerido a adjudicação das verbas 3 e 10 pelo valor de €90.000,00. Invocou o art. 252º, nº 2 do Código Civil e alegou que se encontrava em erro sobre o preço do negócio e que este elemento foi essencial para a sua conclusão.
Subsidiariamente requereu a anulação da venda com fundamento nos arts. 195º, 197º e 838º do CPC alegando em fundamento que na sequência do seu pedido de adjudicação foi notificada para depositar 10% do preço quando, de acordo com a sentença de graduação de créditos, não poderia ter sido realizada; e que existe desconformidade entre o preço anunciado e o que é efetivamente devido porque ficou convicta que o valor de €9.000,00 seria o preço a pagar quando, afinal, é outro.
Juntou documentos (certidão predial dos imóveis em questão e comunicações por correio eletrónico)
2. Sobre este requerimento incidiu despacho liminar de indeferimento do incidente por manifestamente extemporâneo, mais aduzindo estranhar o pedido de anulação da adjudicação dessas verbas quando da certidão predial resulta que ela própria as vendeu há cerca de 10 anos.
3. Inconformada a requerente apresentou o presente recurso peticionando a admissão do incidente de anulação de venda que deduziu “por falta de conformidade com o que foi anunciado aquando da venda dos imóveis, nos termos dos artigos 195º e 197º CPC ex vi do art. 17º do CIRE”.
Formulou as seguintes conclusões:
A. A recorrente SOLID STRUCTURE - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A. é credora no âmbito do processo de insolvência da Capital Ganho Lda. e titular de hipoteca dos imóveis constituídos pelas verbas 3 e 10, sendo um o prédio urbano, sito em Rio de Mouro, concelho de Sintra, descrito na 2ª. Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o nº 2103 e inscrito na matriz predial urbana sob o Artigo 729 (indicado como verba 3.º da massa insolvente) e outro um prédio Rústico, sito em Terrugem, Torre da Mós ou Nozes, concelho de Sintra, descrito na 2ª. Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o nº3920 e inscrito na matriz predial urbana sob o Artigo 21 Secção T (indicado como verba n.º 10 da massa insolvente).
B. Os imóveis supra referidos juntamente com outras 5 frações (verbas n.º 18, 19, 20, 21, 22, 23) foram adjudicados à recorrente, em 2014, por € 290.650,00, tendo a recorrente depositado o valor total de € 29.055,00, conforme notificação do AI.
C. Relativamente a estes dois imóveis referidos em A., foi depositado pela credora 10% do preço, isto é o montante de € 9.000,00, enquanto credora privilegiada, tudo conforme mapa de rateio junto aos autos pelo então administrador de insolvência Dr. ….
D. Onze anos depois da adjudicação e registo dos imóveis, verifica-se que na sentença de graduação de créditos proferida a 14 de Dezembro de 2012, anterior à cessão de créditos hipotecários à A., os imóveis referentes às verbas 3 e 10 constam como imóveis sem hipoteca, sendo que o produto da sua venda é graduado em primeiro lugar pelos credores comuns.
E. A notificação de depósito do 10% do preço (aplicável apenas para credores privilegiados) e a adjudicação realizada com a concordância de todos os credores e os mapas de rateio são, nos termos dos artigos 195.º e 197.º do CPC, nulidades que determinam a anulação do negócio dado que consubstanciam a prática de ato que a lei não admite (um credor comum não pode depositar 10 % do preço e ser adjudicado um imóvel nesses termos).
F. Nessa sequência, a recorrente requereu a anulação da adjudicação do imóvel em virtude de erro da credora hipotecária sob o seu crédito e por falta de conformidade com o que foi anunciado pelo administrador de insolvência aquando da adjudicação dos referidos imóveis, nos termos dos artigos 195º e 197º e artigo 838.º do Código de Processo Civil.
G. Porém, tal incidente foi indeferido liminarmente por extemporaneidade uma vez que a Meritíssima Juiz a quo entendeu que a credora teria que dar entrada do incidente de anulação no prazo de 10 dias desde o momento em que conheceu o erro que, no limite, ocorreu aquando do transito em julgado da sentença proferida em 26 de Fevereiro de 2025.
H. Não tem razão a Meritíssima Juiz a quo. De facto, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, a nulidade é invocável a todo o tempo e é de conhecimento oficioso.
I. Em suma, procedendo o administrador da insolvência à adjudicação de imóvel pertencente ao insolvente e apreendido para a massa aceitando proceder à adjudicação pelo depósito de 10% do preço a um credor comum, pratica uma irregularidade que é suscetível de ser contextualizada no campo das nulidades processuais, em ordem à aplicação do regime processual civil (art. 195.º, nº1 do CPC, ex vi art. 17.º, nº1CIRE).
4. O tribunal recorrido proferiu despacho de admissão do recurso com indicação das peças processuais para instrução do mesmo, e mais ordenou a citação dos requeridos nos termos do art. 641º, nº 7 do CPC, que foi cumprida.
5. Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil[1], o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto da ação ou incidente a que respeita, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, não estando o tribunal superior adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto.
Assim, considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões apresentadas, sem prejuízo de outras que sejam de conhecimento oficioso, cumpre apreciar:
A) Da tempestividade do pedido de anulação da venda das verbas 3 e 10 (questão do prazo legal ou da ausência de prazo para a sua apresentação).
B) Da anulação dessa mesma venda,
a. com fundamento legal nos arts. 195º e 197º pela adjudicação daquelas verbas com depósito de apenas 10% do respetivo preço a credor sem preferência de pagamento sobre o produto das mesmas reconhecida pela sentença de graduação de créditos então já proferida e transitada nos autos;
b. com fundamento no art. 838º “por falta de conformidade com o que foi anunciado pelo administrador de insolvência aquando da adjudicação dos referidos imóveis.

III – Fundamentação de Facto
            O tribunal a quo assentou os seguintes factos:
1. Por sentença de 18-01-2010, transitada em julgada, a sociedade comercial CapitalGanho Sociedade Imobiliária, Lda. foi declarada insolvente.
2. Em 14-04-2010 foi constituída comissão de credores com a seguinte composição:
1) Caixa Económica Montepio Geral;
2) Amberpro Propriedades, Lda.;
3) Banco Popular Portugal, S.A..
3. Os autos prosseguiram para liquidação.
4. Foram, além do mais, apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens:
1) Prédio urbano, destinando a habitação, sito em Rio de Mouro, Sintra, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º 2103 e inscrito na matriz predial urbana sob o art. 729.º (cf. verba 3 do auto de apreensão de 25-03-2011 junto ao apenso B, que se dá aqui por reproduzido);
2) Prédio rústico, composto por terreno de cultura arvense e vinha com oliveiras, com a área de 7.160 m2, denominado Torre das Mós ou Nozes, sito em Toja, freguesia de Terrugem, Sintra, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº 3920 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 21.º secção T (cf. verba 10 do auto de apreensão de 25-03-2011 junto ao apenso B, que se dá aqui por reproduzido).
5. Foi registada, em 02-03-1999, hipoteca voluntária, a favor de BNC Banco Nacional de Crédito, S.A., sobre o imóvel acima identificado que constitui a verba 3 do auto de apreensão, para garantia de abertura de crédito até ao montante máximo de Esc.: 66.250.000,00, equivalentes a 330.453,61.
6. Foi registada, em 08-11-2010, a transmissão do crédito de Banco Popular Portugal, S.A. (anteriormente designado BNC Banco Nacional de Crédito, S.A.) e da hipoteca referida no ponto antecedente, a favor de Consulteam Consultores de Gestão, S.A..
7. Foi registada, em 22-02-2013, a transmissão do crédito de Consulteam Consultores de Gestão, S.A. e da hipoteca acima referida, a favor de Hipoteca IV Lux, S.A.R.L..
8. Foi registada, em 28-10-2013, a transmissão do crédito de Hipoteca IV Lux, S.A.R.L. e da hipoteca acima referida, a favor de Fantasy Moments, S.A..
9. Foi registada, em 22-06-2004, hipoteca voluntária, a favor de BNC Banco Nacional de Crédito, S.A., sobre o imóvel acima identificado que constitui a verba 10 do auto de apreensão, para garantia do pagamento de quaisquer operações bancárias até ao montante máximo de €944.930,00.
10. Foi registada, em 08-11-2010, a transmissão do crédito de Banco Popular Portugal, S.A. (anteriormente designado BNC Banco Nacional de Crédito, S.A.) e da hipoteca referida no ponto antecedente, a favor de Consulteam Consultores de Gestão, S.A.
11. Por sentença proferida em 09-01-2013, no apenso de verificação e graduação de créditos (apenso H), transitada em julgado, o crédito no valor de €863.669,01, reconhecido ao Banco Popular Portugal, S.A. foi julgado garantido sobre os bens que constituíam as verbas 18 (prédio n.º 3628-C, art. 5126.º), 19 (prédio n.º 3628- D, art. 5126.º), 20 (prédio n.º 3628-E, art. 5126.º), 21 (prédio n.º 3628-F, art. 5126.º), 22 (prédio n.º 3628-G, art. 5126.º) e 23 (prédio n.º 3628-H, art. 5126.º).
12. Mais foi decidido nessa sentença que:
Pelo produto da venda do bem que constitui a Verba 3, mencionada na al. qqqqqq) dos factos provados, deverão ser pagos da seguinte forma, os seguintes credores:
- Em primeiro lugar, o crédito do Estado por IMI, no valor de 26,67 euros - ver ponto 3.2.G), desta decisão;
- Em segundo lugar, os créditos comuns, elencados em 3.2.1 desta decisão.
- Em terceiro lugar, os créditos subordinados, elencados em 3.2.1 desta decisão.
(…)
Pelo produto da venda do bem que constitui a Verba 10, mencionada na al. qqqqqq) dos factos provados, deverão ser pagos da seguinte forma, os seguintes credores:
- Em primeiro lugar, o crédito do Estado do por IMI, no valor de 0,69 euros – ver ponto 3.2.G), desta decisão;
- Em segundo lugar, os créditos comuns, elencados em 3.2.1 desta decisão.
- Em terceiro lugar, os créditos subordinados elencados em 3.2.1 desta decisão.
(…)
Pelo produto da venda dos bens que constituem as verbas n.ºs 18, 19, 20, 21, 22 e 23, mencionadas na alínea qqqqqq) dos factos provados, deverão ser pagos da seguinte forma, os seguintes credores:
- Em primeiro lugar o crédito do Banco Popular Portugal, até ao valor máximo garantido de 670.000,00 euros.
- Em segundo lugar, os créditos comuns elencados em 3.2.1 desta decisão;
- Em terceiro lugar, os créditos subordinados identificados em 3.2.1 desta decisão.
13. Foi registada, em 22-02-2013, a transmissão do crédito de Consulteam Consultores de Gestão, S.A. e da hipoteca acima referida a favor de Hipoteca IV Lux, S.A.R.L..
14. Foi registada, em 28-10-2013, a transmissão do crédito de Hipoteca IV Lux, S.A.R.L. e da hipoteca acima referida, a favor de Fantasy Moments, S.A..
15. Por sentença proferida, no apenso AB, em 10-07-2014, transitada em julgado, Fantasy Moments, S.A foi declarada habilitada para prosseguir os presentes autos no lugar da credora Consulteam - Consultores de Gestão, S.A. em relação ao crédito de que era primitivamente titular o Banco Popular Portugal, S.A..
16. Por escritura pública de compra e venda realizada em 16-09-2014, o primitivo administrador da insolvência, na qualidade de representante da insolvente, declarou vender à sociedade Fantasy Moments, S.A., que aceitou, pelo preço global de €260.650,00, os imóveis apreendidos para a massa, descritos sob as verbas 3 (prédio n.º 2103, art. 729.º), 10 (prédio n.º 3920, art. 21.º-T), 18 (prédio n.º 3628-C, art. 5126.º), 19 (prédio n.º 3628-D, art. 5126.º), 21 (prédio n.º 3628-F, art. 5126.º), 22 (prédio n.º 3628-G, art. 5126.º), 23 (prédio n.º 3628-H, art. 5126.º) do auto de apreensão corrigido, apresentado em 25-03-2011, no apenso B, correspondendo à verba 3 o preço de €50.000,00 e à verba 10 o preço de €40.000,00, imóveis esses que a segunda declarou destinarem-se a revenda (cf. escritura junta por requerimento de 17-03-2017 ao apenso AA, cujo teor se dá aqui
por reproduzido).
17. Mais ficou a constar da referida escritura que, do indicado preço global, a sociedade Fantasy Moments, SA. pagou à massa insolvente a importância de €26.065,00, correspondente a 10% do preço global, tendo ficado dispensada de depositar o remanescente nos termos do art. 815.º do Código de Processo Civil.
18. Em 19-06-2014 foi registada a aquisição, por compra em processo de insolvência, a favor de Fantasy Moments, S.A., do imóvel acima identificado que constitui a verba 3 do auto de apreensão.
19. Mostra-se registada desde 27-11-2014 a aquisição a favor de R., por compra a Fantasy Moments, S.A., do imóvel acima identificado que constitui a verba 3 do auto de apreensão.
20. Em 30-12-2015 foi registada a aquisição, por compra em processo de insolvência, a favor de Fantasy Moments, S.A., do imóvel acima identificado que constitui a verba 10 do auto de apreensão.
21. Mostra-se registada desde 30-12-2015 a aquisição a favor de Amber Investimentos, S.A., por compra a Fantasy Moments, S.A., do imóvel acima identificado que constitui a verba 10 do auto de apreensão.
22. Em 17-03-2017, o administrador da insolvência, informou, no apenso de liquidação, que a credora, com garantias reais, Fantasy Moments tinha apresentado proposta de compra das verbas 3, 10, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 apreendidas para a massa insolvente, que tal proposta tinha sido aceite pela comissão de credores e que a referida credora tinha entregue cheque no valor de 29.055,00 correspondente a 10% do preço.
23. Por sentença de 12-04-2018, proferida no apenso XB, transitada em julgado, foi EAM Évora Asset Management, S.A. declarada habilitada para prosseguir os presentes autos no lugar da credora Caixa Económica Montepio Geral.
24. A sociedade Fantasy Moments, S.A. alterou a sua denominação para Solid Structure Mediação Imobiliária, S.A..
25. Por sentença de 14-06-2018, proferida no apenso XC, transitada em julgado, Solid Structure Mediação Imobiliária, S.A. foi declarada habilitada para prosseguir os presentes autos no lugar da credora e requerente Amberpro Propriedades Lda..
26. Em 12-05-2023 o credor Novo Banco, S.A. foi nomeado para integrar a comissão de credores, a qual passou a ter a seguinte composição:
1) EAM Évora Asset Management, S.A. (que sucedeu na posição da Caixa Económica Montepio Geral e ficou a assumir a presidência);
2) Solid Structure Mediação Imobiliária, S.A. (que sucedeu na posição de Amberpro Propriedades, Lda.);
3) Novo Banco, S.A..
27. Por despacho de 22-09-2023 foi nomeado novo administrador da insolvência, em substituição do anterior.
28. Por decisão de 30-10-2023, foi declarada encerrada a liquidação.
29. O administrador da insolvência apresentou proposta de rateio final, que foi alvo de várias reclamações.
30. Em 12-03-2024 veio o administrador da insolvência requerer: (i) que o Tribunal clarificasse a aparente desconformidade entre a sentença de graduação de créditos no que se refere ao produto da venda dos imóveis que constituíam as verbas 3 e 10 apreendidos para a massa, uma vez que estes foram tratados, na referida decisão, como imóveis sem hipoteca quando, na verdade, tinham esses ónus; (ii) a manter-se tal sentença, que o Tribunal decidisse se o credor Solid Structure devia depositar o remanescente do preço (€81.000,00), por o mesmo só ter depositado 10% do mesmo (€9.000,00).
31. Juntou com o requerimento certidões do registo predial dos imóveis que constituem as verbas n.ºs 3 e 10.
32. Os credores foram notificados para se pronunciar quanto à invocada desconformidade da sentença de verificação e graduação de créditos.
33. A requerente pronunciou-se, por requerimento de 22-03-2024, sustentando que, de acordo com as certidões prediais juntas, não subsistiam dúvidas sobre a existência de garantias reais a seu favor, bem como que a adjudicação das verbas 3 e 10 lhe foi feita, nas várias assembleias da comissão de credores, nas mesmas condições que os restantes credores garantidos, pelo que, a existir alguma desconformidade na sentença de graduação de créditos a mesma teria ficado sanada com a deliberação da comissão de credores.
34. Por despacho de 01-05-2024 foi determinada a notificação da requerente para depositar o remanescente do preço dos imóveis que constituem as verbas 3 e 10 com fundamento no facto de o rateio final ter de obedecer à sentença de verificação e graduação de créditos que há muito estava transitada em julgado.
35. Notificada por comunicação electrónica de 02-05-2024 desse despacho, veio a requerente dizer, por requerimento de 13-05-2024, que não se conformava com o mesmo por, em suma: (i) o mesmo contrariar a realidade registal; (ii) por o administrador da insolvência e a comissão de credores sempre terem reconhecido a existência das garantias (hipotecas) sobre os imóveis que constituem as verbas 3 e 10, bem como o facto de estes lhe terem sido adjudicados nas mesmas condições dos restantes credores garantidos; (iii) por a exigência de a requerente ser agora confrontada com a possibilidade de ter de pagar mais €81.000,00, devido a um lapso evidente da sentença de verificação e graduação de créditos, ser violadora do princípio da igualdade por consubstanciar tratamento mais desfavorável à requerente face aos restantes credores em idênticas circunstâncias.
36. Nessa mesma data, a requerente interpôs recurso de apelação do referido despacho de 01-05-2024, que foi admitido por despacho de 19-06-2024, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
37. A requerente alicerçou o recurso por si interposto nos fundamentos que havia invocado nos requerimentos de 22-03-2024 e de 13-05-2024, acrescentando um outro: que ocorreu erro na formação da sua vontade de adjudicar as verbas 3 e 10 por ter entendido que era credora titular de garantias reais sobre as mesmas e que estaria dispensada de depositar a totalidade do preço, sendo que, se assim não fosse, não teria requerido a adjudicação.
38. Por acórdão de 25-02-2025, transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso interposto pela requerente, confirmando na íntegra o despacho de 01-05-2024 (cf. acórdão constante do apenso XE).
39. No que toca ao suscitado erro na formação da vontade, decidiu-se, no referido acórdão, que, não tendo essa questão sido suscitada anteriormente nos autos (designadamente no requerimento de 22-03-2024, que deu origem ao despacho recorrido), mas antes apenas em sede recursiva e sendo, portanto, uma questão totalmente nova, o Tribunal da Relação não podia dela conhecer (cf. acórdão constante do apenso XE cujo teor se dá aqui por reproduzido).
40. Por requerimento de 30-04-2025, veio a requerente deduzir, por apenso ao processo de insolvência, incidente de anulação da adjudicação das verbas 3 e 10 apreendidas para a massa insolvente com base em erro na formação da vontade e, subsidiariamente, com base em falta de conformidade com o que foi anunciado aquando da venda dos imóveis.

IV – Fundamentação de Direito
1. O incidente de nulidade da venda deduzido pela recorrente foi julgado extemporâneo e rejeitado pela decisão recorrida, em síntese - e na esteira do acórdão de 07.03.2023 desta secção que cita -, por considerar que é de “dez dias o prazo para os interessados arguirem a invalidade da venda a partir do seu conhecimento, independentemente do fundamento em que o pedido venha alicerçado, i.e., seja ele de natureza processual (nulidade processual), ou de natureza substancial (nulidade material) art. 149.º, n.º 1, do CPC” e, de acordo com o alegado pela recorrente, tomou conhecimento dos factos em que suporta a sua pretensão em 12.03.2024 e, no limite (mas sempre na perspetiva da tese que a recorrente defende), com a notificação do acórdão de 25.02.2025 proferido no apenso H, que confirmou o acerto da notificação da recorrente para proceder ao depósito do remanescente do preço dos dois imóveis em questão que adquiriu à massa insolvente, sendo que só em 30.04.2025 veio requerer a anulação da venda dos mesmos.
A estes fundamentos a recorrente opõe que requereu a anulação da ‘adjudicação’ com fundamento legal nos arts. 195º, 197º e 838º e, sobre a questão do prazo aplicável para o efeito, começa por invocar o art. 287º do Código Civil para (numa linha) defender que “é de um ano o prazo para arguir a anulabilidade do negócio a contar do conhecimento do vício” e que este só ficou assente na ordem jurídica com o acórdão de 26.02.2025 e, mais à frente, sem que o justifique ou fundamente, alega que a anulação do negócio “pode ser invocável a todo tempo tal como determina o artigo 286.º do Código Civil, e é de conhecimento oficioso pelo que não existe prazo para anular a referida venda.”
2. Cumpre apreciar.
Na qualidade de compradora de dois imóveis vendidos em sede de liquidação da massa insolvente a recorrente fundamenta o pedido da anulação da venda quer nos arts. 195º e 197º do CPC, quer no art. 838º do mesmo diploma. Para justificar a tempestividade do pedido de anulação das vendas invoca indistinta e cumulativamente os arts. 286º e 287º do Código Civil.
2.1. Da anulação da venda com fundamento nos arts. 195º e 197º do CPC – Invalidade formal.
Prevê o art. 195º, nº 1 que [a] prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou não decisão da causa.
As nulidades que enquadram no art. 195º, nº 1– designadas de nulidades processuais secundárias ou inominadas - respeitam a atos de tramitação ou sequência processual e traduzem-se: na prática de ato indevido, na prática de ato legalmente previsto mas sem observância das respetivas formalidades legais, ou na omissão de ato devido praticar. O art. 197º prevê quem a pode invocar - o interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato. Da conjugação dos arts. 149º, nº1 e 199º, nº 1 resulta que podem ser arguidas no prazo de 10 dias a contar da data em que o requerente tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
Assim, a venda executiva será inválida se for anulado o ato da venda, enquanto ato subordinado a tramitação e regras processuais e, assim, enquanto ato processual.
A recorrente identifica duas irregularidades procedimentais no cumprimento da venda das verbas 3 e 10: a sua realização mediante o depósito de 10% do preço quando, de acordo com a sentença de graduação de créditos, não poderia ter sido assim realizada; e a desconformidade entre o preço anunciado e o que é efetivamente devido por ter ficado convencida que o valor de €9.000,00 seria o preço a pagar quando, afinal, é outro.
Ora, independentemente da bondade jurídica dos fundamentos que alega, senão antes, pelo menos desde a celebração da escritura de compra e venda (em 16.09.2014) que a recorrente sabia que o preço total das verbas 3 e 10 era de €90.000,00 e não €9.000,00 e, do mesmo modo, que a mesma foi celebrada sem que o administrador da insolvência lhe tenha exigido a entrega de 90% desse preço posto que apenas a notificou para proceder ao pagamento de 10%. Acresce que - e abstraindo agora do facto de a recorrente ter sido habilitada a intervir no processo em substituição de credor que foi oportunamente notificado da sentença de verificação e de graduação de créditos e, assim, abstraindo do que lhe era processualmente possível e exigível conhecer - em março de 2024 foi notificada do requerimento de 12.03.2024 do AI pelo qual, além do mais, este questionou ao tribunal se a recorrente devia depositar o remanescente do preço (€81.000,00) por só ter depositado 10% do mesmo (€9.000,00).
Ora, ainda que se tome qualquer uma destas datas como o momento em que a recorrente tomou conhecimento dos factos que qualifica como irregularidades do procedimento de venda e nos quais fundamenta o pedido da sua anulação, resulta à evidência que quando apresentou este pedido, em 30.05.2024, já tinham decorrido mais de 10 dias (quase 10 anos…) sobre a data em que deles tomou conhecimento. Estes factos e o conhecimento dos mesmos pela recorrente na data em que ocorreram apresentam-se como realidade ‘consolidada’ e verdades insofismáveis independentemente do momento em que a recorrente os perspetivou e qualificou como irregularidades procedimentais suscetíveis de destruir os efeitos da venda (enquanto ato processual) ou do momento em que com fundamento nos mesmos equacionou pedir a sua anulação (atendendo a que, num primeiro momento, confrontada com a obrigação de proceder ao depósito do preço em falta depositar, optou por requerer a retificação da sentença de graduação de créditos para ver reconhecida a preferência de pagamento emergente da hipoteca constituída em garantia do seu crédito e, assim, desonerar-se da realização daquele depósito). Com efeito, do que se trata é do conhecimento empírico dos factos que fundamentam o pedido e não da sua qualificação jurídica ou de se os mesmos poderiam ou não fundamentar um pedido neste ou naquele sentido. Muito menos se trata do conhecimento sobre a via ou solução juridicamente apta ou idónea a conduzir ao resultado prático ab initio visado alcançar pela recorrente (com o pedido de adjudicação dos imóveis com dispensa de depósito do preço, com a retificação da sentença de graduação de créditos e, na improcedência deste, com o pedido de anulação da venda cuja rejeição constitui objeto do presente recurso), que é o de obstar à obrigação e exigibilidade do depósito da quantia de €81.000,00 na conta da massa insolvente a título de parte do preço devido pelas verbas 3 e 10 que a esta declarou comprar e que esta declarou vender-lhe em setembro de 2014. Ora, o vício (no caso, a ausência de depósito da totalidade do preço devido não consentida pela lei processual) existe desde que é produzido e assume relevância desde que é conhecido pelo interessado que é por ele afetado (que além do mais, e adianta-se, pressupõe seja negativamente afetado e não por ele beneficiado), independentemente da qualificação jurídica que ao mesmo seja atribuída ou perspetivada. De resto, o termo inicial que a recorrente pretende seja considerado – acórdão da Relação que no apenso H confirmou o indeferimento do pedido de retificação da sentença de graduação de créditos – redundaria numa suspensão do prazo previsto pelo referido art. 199º, nº1 ou na aceitação da arguição da nulidade processual como mecanismo jurídico residual quando os demais falhassem na satisfação do efeito prático visado pelo requerente, o que, como se nos afigura óbvio, não é aceitável nem encontra disposição legal ou princípio processual que a fundamente; ao invés, os arts. 614º e 616º ditam que os pedidos de retificação ou de reforma da sentença sequer interferem com o termo inicial e o decurso do prazo para dela recorrer, fundamento de ordem sistemática que reforça a insusceptibilidade de interferirem com o termo inicial e o decurso do prazo para arguição de nulidade processual nos termos dos arts. 195º e 199º.
Com o que se conclui pelo acerto da rejeição do pedido de anulação da venda com fundamento em irregularidade/nulidade procedimental, por extemporâneo.
Ainda que assim não fosse, conforme dispõe o art. 197º, nº 2, sempre falharia legitimidade à recorrente para arguir nulidade processual com fundamento na celebração da compra e venda com indevida dispensa de pagamento de depósito do preço, posto não ser o credor comprador o interessado visado tutelar com a proibição da dispensa de depósito do preço fora das condições legais previstas no art. 815º[2].
Coerentemente com a natureza concursal da insolvência, o art. 165º[3] do CIRE restringiu o âmbito deste benefício ao credor com garantia real (posto que aqui não existe a figura do exequente, mas sim o coletivo dos credores do devedor que concorre ao produto da liquidação da massa). A dispensa de depósito do preço reconhecida ao credor com garantia real, para além de corresponder a uma forma de imediata satisfação (total ou parcial) do crédito, previne a prática de atos inúteis: careceria de sentido obrigar ou vincular o credor comprador à entrega da totalidade do preço quando, na insolvência, por força do art. 174º, nº1 do CIRE, o AI fica imediatamente obrigado a entregar-lhe o produto dessa venda a título de pagamento do crédito garantido[4]; salvaguardando sempre e em qualquer caso o depósito da parte que, do total do preço, seja necessário para assegurar o oportuno pagamento das dívidas da massa insolvente[5] que, como é sabido, inclui a remuneração legal do AI, qualquer que seja a respetiva natureza e montante, e, se for o caso, os créditos com reconhecida preferência de pagamento sobre o crédito do credor comprador. Nas palavras de A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, aqui deviamente adaptadas, “(…) o nº 1 consagra uma dispensa de depósito que se reconduz a uma compensação, total ou parcial, nos casos em que a venda é feita a favor do exequente ou de credor com garantia real sobre os bens por si adquiridos. Atento o teor do art. 541º, a dispensa do depósito do preço de que beneficia o credor com garantia real sobre o bem não abrange as custas prováveis da execução”.[6] Em total sintonia com este regime, em sede de elaboração de sentença de verificação e graduação de créditos o art. 140º, nº 2 do CIRE estabelece que A graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitam direitos reais de garantia e privilégios creditórios. E em sede de pagamento aos credores garantidos o art. 174º, nº 1 estabelece que Sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 172.º, liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas, é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba;.
Serve o exposto para confirmar que o depósito do preço pelo qual é vendido cada bem da massa insolvente visa assegurar a oportuna distribuição do produto da venda desses mesmos bens por todos os credores reconhecidos de acordo com a ordenação/graduação estabelecida por sentença de verificação e graduação de créditos. Assim, a dispensa de depósito de parte do preço concedida a credor que em relação aos demais credores reconhecidos não beneficia de preferência de pagamento sobre o produto da venda, consubstancia preterição de formalidade essencial suscetível de adulterar a ordem de pagamentos legalmente prevista ou, como é o caso, a já determinada por sentença transitada em julgado. O que vale por dizer que o pagamento da totalidade do preço devido depositar pela compra do bem da massa (nos termos do art. 824º, nº 2 do CPC e 167º do CIRE) configura ato ou ‘formalidade’ prevista, não para tutela do interesse do credor comprador, mas para tutela do interesse dos credores graduados antes deste ou que com ele concorrem ao produto desse mesmo bem. Inversamente, a dispensa indevida de depósito do preço traduz-se na concessão de um beneficio (ilegítimo, por ilegal) da recorrente na medida em que lhe permitiu adquirir o direito de propriedade sobre dois imóveis da massa insolvente e deles dispor livremente – como efetivamente dispôs através da venda dos imóveis a terceiros, um em 2014 e outro em 2015 – sem que tenha depositado o preço que por cada um deles deveria ter pago logo em 2014 e previamente à celebração da escritura de compra e venda dos mesmos. Por assim ser, a indevida dispensa de depósito do preço não tem a virtualidade de afetar a validade e eficácia da venda, mas apenas dar origem a crédito da massa insolvente sobre o comprador a título de preço devido pela aquisição do bem e não pago, cuja cobrança compete ao AI promover.
Ainda que assim não fosse, a legitimidade da recorrente continuaria a esbarrar com a salvaguarda prevista no art. 197º nº 2[7] - cuja apreciação se dilui na apreciação de mérito dos fundamentos da nulidade que invoca - na medida em que foi a recorrente quem deu causa à irregularidade que invoca ao aceitar comprar as verbas 3 e 10 sem proceder ao depósito da totalidade do preço devido, sabendo ou devendo saber que a sentença de graduação de créditos já então transitada nos autos não lhe reconheceu preferência de pagamento pelo produto daqueles imóveis. Sentença cujo teor a recorrente conhecia ou, no mínimo, agindo com a devida diligência, podia conhecer, atendendo a que assumiu a posição processual do credor originário (o BNC) em substituição do qual se habilitou a intervir no processo, incluindo, para o substituir no mapa de rateio em sede de distribuição do produto da liquidação pelos créditos verificados de acordo com os termos em que foram graduados; se os não conhecia, só à sua incúria ou falta de diligência pode imputar-se. Veja-se que é a própria lei processual que no art. 574º, nº 3[8] qualifica como confissão a declaração de desconhecimento de determinado facto de que o declarante deva ter conhecimento. Como é anotado por A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, “[o] princípio da autorresponsabilidade das partes obsta a que possa arguir a nulidade a parte que lhe deu causa (…).”[9] Com efeito, a falta de diligência da recorrente – traduzida na ausência de consulta do processo e, especificamente, da sentença que graduou o crédito que decidiu adquirir e passou a titular nos autos - não é anulada pela falta de diligência do AI e da comissão de credores aos quais, no mínimo, também se impunha a leitura atenta daquela sentença antes de se pronunciarem sobre as propostas de adjudicação dos bens da massa insolvente. Mas, em abstrato, a falta de diligência destes órgãos da insolvência não importa mais senão a possibilidade da sua responsabilização perante os credores que, por falta do cumprimento daquela formalidade essencial, não venham a receber o que lhes caberia receber do produto dos imóveis que não foi depositado (para além dos juros que entretanto e desde 2014 teriam vencido em benefício da massa insolvente e que se destinariam ao pagamento precípuo das dívidas desta, cfr. art. 172, nº2 do CIRE, com consequente redução da afetação do preço dos bens a esse efeito). Já no que respeita ao desconhecimento do teor da sentença de graduação de créditos que a recorrente implicitamente alega como pressuposto da anulação que requer e atuação processual que adotou por se manter nesse alegado desconhecimento, só a si é suscetível de imputar-se por omissão da elementar diligência de consulta do processo na parte especificamente destinada à imediata regulação dos termos do pagamento dos créditos que adquiriu ao credor BNC na pendência dos autos, e que estava em condições de conhecer ainda antes da aquisição (que ocorreu em data posterior a fevereiro de 2013) posto que a essa altura já havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos (em janeiro de 2013). Se a recorrente negligenciou o dever de consulta para se inteirar dos termos da regulação dos seus interesses no âmbito do processo no qual se habilitou a intervir como credor, não pode pretender que o desconhecimento que dessa falta adveio fosse obrigatoriamente suprida por outros, dando-lhe a conhecer o que ela própria tinha condições de conhecer e se suporia fosse por ela conhecido, e muito menos pretender imputar a qualquer outro sujeito processual a conduta que adotou por (alegadamente) desconhecer os termos da sentença de graduação de créditos patente nos autos. Como é referido no acórdão de 25.02.2025 proferido nos autos em apenso H, “de acordo com a Lei, apenas e só a Sentença de verificação e graduação de créditos tem influência no rateio e pagamento dos créditos. Os actos do Administrador da Insolvência e da Comissão de Credores posteriores à aludida Sentença em nada podem influenciar tal rateio e pagamento.”.
Do exposto resulta que, ainda que não se impusesse a sua rejeição por extemporâneo, o pedido de anulação da venda com fundamento nos arts. 195º e ss. do CPC sempre seria julgado improcedente.
2.2. Da anulação da venda com fundamento no art. 838º - Invalidada substancial
Como se enunciou, a recorrente justifica a tempestividade do pedido de anulação das vendas indistintamente nos arts. 286º e 287º do Código Civil (CC) sendo certo que, como é sabido, um e outro respeitam a distintos institutos de invalidade de negócios jurídicos de direito privado – a nulidade e a anulabilidade – e, por princípio, o enquadramento do vício num exclui o enquadramento e a aplicação do outro[10]. Relembrando, estabelece o art. 286º que [a] nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.; no art. 287º prevê-se que a anulabilidade só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.
Estas normas integram o Capítulo (I) do CC regulador do ‘Negócio Jurídico’, que inclui a regulação da declaração negocial e, por referência a esta, as modalidades, forma, perfeição, interpretação e integração da mesma, a falta e os vícios da vontade e os seus efeitos na validade e/ou eficácia da declaração negocial e, assim, do negócio por ela celebrado (arts. 217º a 257º e 280º a 294º do CC).
Cumpre antes de mais afastar a tese da ausência de prazo que a recorrente alega sem outro fundamento que não a indicação do art. 286º do CC posto que só a nulidade pode ser invocada a todo o tempo, o que pressupõe a invocação de vício juridicamente apto a gerá-la, como urgem ser a venda de bem alheio (art. 892º CC), o vício de forma (art. 220º CC), a falta de vontade por coação física ou falta de consciência da declaração (art. 246º), e os vícios da vontade por simulação (art. 240º CC) e reserva mental (art. 244º, nº 2 CC). Já a alegada desconformidade entre a vontade declarada e a vontade real por virtude de erro na sua formação constitui fundamento de anulabilidade e não de nulidade (art. 247º do CC), sendo dessa natureza o vício que a recorrente alega – e que enquadra no erro sobre os motivos determinantes da vontade de adquirir, atinentes com o modo de cumprimento do preço (no sentido de lhe assistir o direito de o compensar com parte do valor do crédito que adquiriu ao BNC, dispensando-a de proceder ao seu depósito na conta da massa insolvente), nos termos do art. 252º, nº1 do CC, e não sobre as características jurídicas ou físicas dos imóveis objeto da venda (relevante nos termos do art. 838º do CPC se desconformes com o anunciado no procedimento da venda) nem sobre o vendedor, nos termos do art. 251º do CC.
Cumpre aferir da aplicabilidade do prazo de um ano previsto no art. 287º do CC ao pedido de anulação de venda previsto no art. 838º do CPC, como é reclamado pela recorrente.
Afigura-se-nos que a discussão desta questão é indissociável da natureza jurídica da venda executiva por referência ao que a legitima e à finalidade que serve e, assim, ao contexto - processual - em que é celebrada. No caso, em sede de liquidação da massa insolvente que, por definição[11], é cumprida no âmbito do processo de insolvência.
Nos termos que se expuseram no acórdão desta secção de 07.03.2023 (relatado pela ora relatora e citado pela decisão recorrida) e que aqui se vão parcialmente reproduzir, não obstante a complexidade do processo de insolvência, repartido por fases e procedimentos declarativos e executivos, teleológica e processualmente a insolvência liquidatária assume-se como uma ação executiva para pagamento de quantia certa, coletiva (em contraposição com a execução singular) e genérica ou total (porque abrange todos os bens do devedor), prosseguida através de um processo especial (o processo de insolvência, entendido em termos amplos, abrangendo processo principal e apensos) que visa a satisfação de direitos de crédito sobre o património do devedor com prévia adoção de medidas cautelares (correspondentes à imediata apreensão dos bens nos termos do art. 149º do CIRE) e, em sede de pagamentos, obedecendo a uma ordem especialmente prevista para a insolvência, designadamente, ao nível da qualificação dos créditos, com influência na ordem do seu pagamento.
Consubstanciando o pedido de anulação de venda um pedido de sindicância da legalidade/validade de ato realizado no âmbito da atividade de liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente, a questão remete antes de mais para normas especialmente previstas pelo CIRE reguladoras da atividade de liquidação, lato senso e, na falta ou insuficiência destas, nos termos do art. 17º deste diploma, subsidiariamente remete para as disposições aplicáveis do CPC, especialmente as que disciplinam o processo executivo face à idêntica natureza executiva do processo de insolvência que, em relação àquela acrescenta o cariz universal da liquidação do ativo e do passivo do devedor. Ora, no âmbito do processo executivo, tal como o pedido de anulação da venda deduzido com fundamento legal no art. 195º (vício procedimental), também o deduzido com qualquer um dos fundamentos previstos pelo art. 838º, nº 1 do CPC (vício material) surge legalmente configurado, não como uma ação a propor ab initio de forma autónoma a esse mesmo processo, mas como seu incidente[12]. Isso mesmo resulta do segmento “…o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito… (subl. nosso). Com a óbvia adaptação, tratando-se de venda de bens da massa insolvente o pedido deve ser apresentado no processo de insolvência respetivo, dando origem a incidente do mesmo, mais especificamente, a incidente da liquidação.
Nesse sentido,
- acórdão desta secção de 14.10.2025[13] - “[t]al invocação deve ter lugar no próprio apenso de liquidação, uma vez que estarão em causa actos praticados nesses próprios autos, com a intervenção dos interessados aí também intervenientes.//Assim e se no processo executivo, o pedido de declaração de nulidades alegadamente cometidas na fase da venda executiva não pode deixar ser processualmente configurado como incidente, o mesmo se impõe aplicar à venda realizada no âmbito da insolvência.
- acórdão da Relação de Coimbra de 24.10.2023 - “[n]ão faria sentido, que estando uma questão incidental surgida no domínio da liquidação e com repercussão direta sobre o processo de insolvência - cujo decurso se quer urgente e cuja liquidação do activo se quer ver tratada com prontidão - se admitisse o recurso a um meio processual autónomo – acção de processo comum - para a sua apreciação jurisdicional.// (…) // Como se escreve no citado acórdão [reporta a acórdão do STJ de 09.07.2020], «como conjugar uma tal possibilidade com o funcionamento normal do processo de insolvência, com o princípio geral de que as controvérsias incidentais surgidas no decurso do processo devem, sob pena de preclusão, ser nele suscitadas e decididas (e não numa ação ad hoc) e com a estabilização dos direitos e interesses do insolvente e dos credores? Concorda-se assim inteiramente com o acórdão recorrido aí onde aduz que a invocação, apreciação e decisão do cerne da controvérsia em causa só poderia ter lugar nos próprios autos da liquidação insolvencial, pois trata-se da apreciação do aí ocorrido, impondo-se a intervenção da totalidade dos interessados, garantindo-se desse modo o devido contraditório e a obtenção de uma decisão vinculativa para o universo dos interessados. Essa tutela não seria possível de garantir num quadro de posterior instauração de ações autónomas e dispersas, pois, para além da necessária delimitação dos sujeitos, tal potenciaria a contradição de julgados”.
- acórdão da Relação de Guimarães de 26.11.2020 (tirado em recurso de decisão proferida em ação declarativa comum instaurada contra quem adquiriu o imóvel no âmbito da liquidação em processo de insolvência e o administrador da insolvência nele nomeado, pedindo que essa venda fosse declarada nula ou anulada) - A venda é efectuada no âmbito de um processo, é um acto processual sujeito ao regime de arguição das nulidades processuais, como se depreende do disposto na al. c) do nº 1 do art.º 839º do CPC, onde se prevê os efeitos da anulação do acto da venda nos termos do art.º 195º do CPC.//Acrescendo que os casos em que a venda fica sem efeito são apenas os previstos no art.º 838º e 839º do CPC.//O legislador, atentos os específicos interesses dos intervenientes processuais e o fim prosseguido com a venda realizada no âmbito de um processo judicial, estabeleceu um regime especial de invalidades e irregularidades da venda em execução (ou na insolvência) e tipificou taxativamente os casos em que a venda é inválida e fica sem efeito.//Por isso, é nesses processos – execução ou insolvência – que as irregularidades e as nulidades têm de ser arguidas e que se poderá reclamar contra os actos do agente da execução ou administrador de insolvência incumbido da mesma função.//É nesses processos que se conhece da invalidade da venda e que, sendo o caso, se determinará que a mesma fique sem efeito.//O argumento da apelante, de que no processo de insolvência não existe meio processual adequado e legal para impugnar as vendas dos imóveis, não colhe.//Não é pelo facto da autora não poder, ou já não estar em tempo para impugnar a venda segundo as regras ou com os fundamentos previstos no processo de insolvência, que passa a poder recorrer aos meios comuns, ampliando as causas de invalidade da venda, os casos em que fica sem efeito e os prazos para a impugnar.//Como atrás referimos, a competência material afere-se em função dos pedidos concretamente formulados e da causa de pedir invocada, independentemente do bem ou mal fundado da pretensão do autor e do eventual insucesso da acção, sendo por isso irrelevante o argumento aduzido pela apelante. (subl.s nossos)
Constituindo o incidente um procedimento deduzido por dependência de uma ação (por apenso ou nela enxertados, cfr. arts. 91º, n 1, 292º e 304º, nº 1 do CPC), aplicam-se-lhe antes de mais as regras do processo especial a que respeitam e, na falta de regulamentação especial, nos termos do art. 292º do CPC (ex vi art. 17º do CIRE), as disposições gerais previstas pelos arts. 149º, nº 1 e 293º a 295º do CPC. Assim, na ausência de disposição especial que no CIRE ou no CPC regule ou preveja prazo especial aplicável, o pedido de anulação/nulidade da venda judicial deduzido no processo onde a mesma foi realizada deve entender-se subordinado ao regime processual aplicável a esse mesmo processo e, mais especificamente, aos incidentes nele previstos, que, na falta de disposição especial, inclui o prazo legal supletivo previsto no art. 149º do CPC que, precisamente, estabelece que “Na falta de disposição especial, é de 10 dias o prazo para as partes requererem qualquer ato ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual; e também é de 10 dias o prazo para a parte responder ao que for deduzido pela parte contrária.
Para esta solução contribuem as características ou natureza da compra e venda que é celebrada no âmbito de um procedimento que tem como finalidade a satisfação dos direitos dos credores sobre o devedor titular dos bens objeto da venda, seja no âmbito da execução singular, seja no âmbito da execução concursal e universal como é a atividade de liquidação do passivo e do ativo do devedor insolvente.
Como é referido e sumariado no acórdão da Relação de Coimbra de 24.10.2023 (com subl. nosso), “A venda executiva não pode deixar de ser considerada como um fenómeno essencialmente processual e com os efeitos de direito substantivo do negócio típico da compra e venda – a venda realizada em sede de liquidação do activo no processo de insolvência é uma venda judicial, que visa satisfazer não um interesse próprio, mas sim um interesse alheio, o interesse do credor – e tem, por regra, os mesmos efeitos da compra e venda em geral - a propriedade transmite-se para o adquirente por mero efeito do contrato, como seu efeito real (arts. 879º-a) e 408º-1 Código Civil).” No mesmo sentido, o acórdão desta Relação e seção de 07.03.2023, assim sumariado: “I- A venda realizada em sede de liquidação do activo no processo de insolvência é uma venda judicial.//II- Salvo os casos expressamente regulados no CIRE, as vicissitudes que a afectam têm de ser solucionadas de acordo com o regime jurídico previsto no CPCivil para o processo executivo. Na doutrina, entre outros, Rui Pinto: “1. O ato de venda judicial pode ser impugnado por invalidade material, invalidade processual e por ineficácia superveniente, consoante tenha lugar um vício de violação da lei substantiva, um vício de violação da lei processual ou uma ausência de efeitos que não corresponda a uma específica violação normativa.//Para tal devem, prima facie, ser chamados à colação os artigos 838º a 841º.// (…) importa considerar que o regime processual civil de invalidades tem uma capacidade expansiva maior do que decorre do seu teor literal e que os regimes gerais civis não podem ser aplicados sem consideração dos princípios públicos de processo civil e da venda executiva.//É que, se é certo que as normas de direito privado podem ser aplicadas em consideração ao caráter subsidiário do regime geral dos atos jurídicos, de que o processo também não deixa de ser composto, e em consideração aos efeitos patrimoniais privados da venda executiva, porém, não estamos perante um contrato, mas perante uma transmissão executiva. Esta não pode ser sujeita à instabilidade (limitada, é certo) que o regime civil da declaração negocial acarreta. Na realidade, o regime civil comporta aspectos que supõem uma igualdade entre os interessas das partes, que nos parece algo postergada por um favor creditoris, compensado pelo baixo valor da aquisição executiva dos bens.//(…)//(…) o erro e o vício na formação da vontade e a divergência entre a vontade real e a vontade declarada merecem uma ponderação de interesses entre a execução e o terceiro.[14]
Com efeito, o regime legal da ação de anulação de negócios previsto no Código Civil – desde logo, o prazo para a sua instauração - está pensado para os negócios de direito privado, portanto, celebrados entre privados (ou atuando como tal) ao abrigo e no recíproco exercício da autonomia e liberdade contratuais e com efeitos restritos às partes que a celebram, contexto e efeitos que não assiste à venda judicial. Ainda que materialmente coincidentes nos efeitos obrigacionais – pagamento do preço e entrega do bem objeto da venda -, na venda judicial também estes adquirem vestes de atos processuais inseridos num procedimento legalmente regulado, que tem subjacente um ato de natureza pública ou de ius imperi que a determina, e que é legitimado por uma finalidade que extravasa dos sujeitos que a celebram. Por assim ser, como se expôs, não só as irregularidades na tramitação do procedimento de venda (vícios procedimentais, nos termos dos arts. 195º e ss. do CPC), mas também os vícios na declaração de vontade do comprador (vícios materiais, nos termos do art. 838º, nº 1 do CPC) suscetíveis de destruírem a eficácia ou a validade da venda, devem ser arguidos, apreciados e decididos no âmbito do processo onde a mesma foi realizada, como questão incidental e em conformidade com o regime legal processual dos incidentes da instância (arts. 292º a 295º do CPC ex vi art. 17º do CIRE). Só esta solução é suscetível de garantir que a validade da venda seja discutida entre quem deve ser discutida: na insolvência, em primeira linha contra o sujeito processual que nela participou em representação da massa insolvente e que, por isso, conhece e está melhor habilitado a deduzir oposição fundamentada contra a imputação de vícios de procedimento e também da declaração do comprador e, assim, a prevenir uma situação de indefesa das partes interessadas no processo de insolvência que, não tendo intervenção na venda nem poder de decisão quanto aos seus termos, são por ela diretamente afetadas – à cabeça, os credores que pretendem obter ou que já obtiveram satisfação (total ou parcial) do seu crédito pelo produto dessa mesma venda[15]. Argumento que se nos afigura adquirir contornos de evidência nos casos em que, como o em apreciação, a compradora é parte (habilitada) no processo na qualidade de credora, e os factos fundamento da invalidade material são endógenos à regulação processual da venda, entroncam e correspondem a atos processuais próprios do respetivo procedimento legal, como urge ser o depósito do preço e as condições em que o credor pode ser dispensado do mesmo, em correlação com a natureza garantida dos créditos e a sentença que como tal os reconheça e gradue pelo produto dos bens objeto da garantia e que, reitera-se, é conhecida ou cognoscível por todos os credores, incluindo o que se propõe adquirir com dispensa de depósito do preço.
A propósito dos sujeitos que intervêm na celebração da venda ‘executiva’, recorrendo de novo às palavras de Rui Pinto[16], “4. (…) é certo que do lado transmissário, há uma vontade de adquirir, própria do princípio geral do direito patrimonial privado de que ninguém pode adquirir contra sua vontade. Todavia do lado transmitente, nenhuma vontade pode ser imputada ao executado, ainda que em substituição (…).//Por conseguinte, a autoria do acto processual de venda não é do executado e os eventuais vícios sobre a coisa ou quanto a ónus ocultos também apenas podem ser assacados ao autor do acto processual – o Estado e o agente de execução [no processo de insolvência, ao administrador da insolvência].//(…)//5. Por seu turno, no plano dos efeitos da venda executiva, já vimos que os seus alegados efeitos obrigacionais da venda[17] apresentam, afinal, natureza processual.// Quanto ao efeito translativo do direito que é objeto da venda executiva – o titular perde o direito e um sujeito adquire-o na sua esfera – não é indicador da natureza contratual do acto em presença: também os actos de expropriação podem produzir idêntico resultado.//Muito pelo contrário, dão-se outros efeitos que são absolutamente alheios a um estrito negócio de transmissão onerosa de um direito patrimonial privado: por ex., a extinção das garantias reais e dos direitos reais de gozo menores e a sub-rogação no remanescente do produto da venda.//6. Daqui resulta que a venda executiva não é um contrato. É aquilo que Alberto dos Reis designava como “providência de expropriação”, enquanto priva o executado contra a sua vontade.” (subl. nosso)
Persistindo no que se nos afigura ser trave mestra na discussão sobre o prazo legal para apresentação do pedido de anulação da venda em sede de liquidação da massa insolvente com fundamento em invalidade substancial nos termos do art. 838º, reitera-se que não pode ser travada alheada da natureza da relação jurídica em que se funda e do contexto de processo judicial concursal e universal em que se insere, no qual, de resto, no caso a recorrente não figura como terceiro mas como parte na qualidade de credor reconhecido/habilitado. Sem entrar na controvérsia exegética a respeito da natureza da venda executiva – se um contrato, se um ato público, ou ato híbrido público-privado -, conforme se considerou e concluiu no acórdão da RG de 14.06.2018, a venda cumprida em sede de execução [n]ão pode deixar de ser considerada como um “fenómeno essencialmente processual.[18], ou, conforme consta do acórdão da RP de 10.11.2005, como [a]ctos do processo executivo”, (…) “como um procedimento jurisdicional”, com os efeitos de direito substantivo do negócio típico da compra e venda. Em suma, a ideia de que a venda - assim como o ato de apreensão que a precede, e o pagamento que lhe sucede - corresponde a medida usada pelo Estado, que se traduz [n]a atuação do órgão jurisdicional, no exercício da sua função executiva, que visa satisfazer não um interesse próprio, mas sim um interesse alheio, o interesse do credor.[19] Na insolvência, o interesse do coletivo dos credores.
Na tarefa que nos ocupa, a integração do art. 838º do CPC não prescinde do elemento sistemático, mais rigorosamente, da convocação do princípio da unidade do sistema jurídico e dos valores que tutela, da coerência, coesão, harmonização e igualdade de garantias e tratamento. Nesse desiderato impõe-se considerar o que o sistema jurídico prevê no âmbito de outros procedimentos legalmente instituídos com a mesma finalidade e através dos mesmos instrumentos jurídicos – satisfação de direitos de crédito por recurso à venda de bens do devedor -, como sucede ser o procedimento de venda no âmbito da execução fiscal regulado pelos arts. 248º a 258º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Releva ao caso o art. 257º deste diploma, no qual expressamente se prevê o prazo em que pode ser requerida a anulação da venda de bem penhorado realizada no âmbito da execução fiscal, nestes termos:
1 - A anulação da venda só poderá ser requerida dentro dos prazos seguintes:
a) De 90 dias, no caso de a anulação se fundar na existência de algum ónus real que não tenha sido tomado em consideração e não haja caducado ou em erro sobre o objecto transmitido ou sobre as qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado;
b) De 30 dias, quando for invocado fundamento de oposição à execução que o executado não tenha podido apresentar no prazo da alínea a) do n.º 1 do artigo 203.º;
c) De 15 dias, nos restantes casos previstos no Código de Processo Civil.
2 - O prazo contar-se-á da data da venda ou da que o requerente tome conhecimento do facto que servir de fundamento à anulação, competindo-lhe provar a data desse conhecimento, ou do trânsito em julgado da acção referida no n.º 3.
Realçando antes de mais o facto de o processo de execução fiscal corresponder a procedimento de natureza administrativa –em contraposição com a natureza judicial do processo de insolvência -, destaca-se a coincidência entre os fundamentos de invalidade substancial previstos na al. a) do art 257º do CPPT e os previstos no nº 1 do art. 838º do CPC (que a doutrina entende dever estender-se a qualquer outro vício da declaração de vontade do comprador previstos no CC[20]). Conforme se disse, a insolvência liquidatária assume-se como ação executiva para pagamento de quantia certa, na qual a liquidação/venda dos bens da massa insolvente integra atividade e objetivo cujo cumprimento a lei comete a operador judiciário (o AI) funcionalmente vinculado ao dever de atuar com legalidade. Ao dever funcional deste órgão da insolvência acresce o poder dever de fiscalização da comissão de credores e, principalmente, o poder dever de fiscalização judicial intrínseco ao próprio processo de insolvência, que não existem no processo de execução fiscal (cfr. arts. 68º e 58º do CIRE).
Ora, no confronto entre um e outro processo e entre uma e outra venda (fiscal e judicial), e a tutela e fiscalização da legalidade - que, no confronto com a execução fiscal, se imporá considerar - intrinsecamente reforçada no processo judicial, seria juridicamente incongruente – à luz do princípio da igualdade versus garantias de legalidade - que o comprador que adquiriu no âmbito de uma venda judicial pudesse requerer a sua anulação no prazo de um ano após o conhecimento do erro-vício em que formou a sua vontade de adquirir, e com fundamento de igual natureza o comprador que adquiriu no âmbito de uma venda fiscal o pudesse fazer no prazo de 90 dias.
É ainda de destacar a tramitação legalmente prevista para o pedido de anulação da venda que, como já se viu, pressupõe a sua apresentação, discussão e apreciação no processo onde foi realizada, o que por princípio resultaria sistemática e incongruentemente prejudicado face ao prazo regra de um ano que o art. 169º, al. a) do CIRE prevê para o encerramento da liquidação e do processo de insolvência.
De todo o exposto se extrai que, independentemente de o pedido de anulação da venda vir ou não estribado no incumprimento de normas ou deveres de natureza estritamente processual, deve considerar-se aplicável o prazo de dez dias supletivamente previsto para a dedução de incidentes a contar do conhecimento do vício que o fundamenta em detrimento do prazo de um ano a contar do mesmo termo inicial, por ser aquele o que mais se ajusta ao “interesse público ligadas à natureza do processo de execução, em especial, decorrente da necessidade de assegurar a protecção da estabilidade das vendas em execução, bem como a protecção da confiança, da segurança jurídica e da boa-fé dos terceiros adquirentes.”.[21] [22]
Mas, ainda que se considerasse aplicável o prazo de um ano e, cumulativamente, juridicamente relevante e atendível para o cômputo do mesmo o (alegado) desconhecimento da recorrente sobre o teor da sentença de graduação de créditos aquando da celebração da venda das verbas 3 e 10 e, assim, juridicamente atendível o (alegado) desconhecimento da ausência de preferência de pagamento que a legitimasse a não proceder ao depósito de 90% do preço destes bens, sempre seria de rejeitar o pedido de anulação de venda deduzido pela recorrente por extemporâneo na medida em que em março de 2024 foi notificada do requerimento do AI que dava conta do não reconhecimento dessa preferência pela sentença de graduação de créditos e só depois de decorrido mais de um ano sobre essa notificação a recorrente veio arguir o alegado erro na formação da sua vontade de adquirir produzido pelo desconhecimento da graduação de créditos determinada pela sentença, e pedir a anulação da venda com esse fundamento, remetendo-se nesta parte para o acima exposto sobre a irrelevância do pedido de retificação da sentença e da data da decisão final que o conheceu na determinação do termo inicial do prazo para requerer a anulação da venda.
Finalmente, ainda que o pedido prosseguisse para apreciação de mérito, sempre estaria votado à improcedência.
Desde logo, porque os elementos disponíveis nos autos não permitem concluir que a recorrente desconhecia a sentença de graduação de créditos e, assim, que desconhecia não beneficiar de preferência de pagamento pelo produto das verbas 3 e 10 e, assim, que desconhecia não beneficiar da faculdade de dispensa de depósito de 90% do respetivo preço. Contrariamente ao que alega, esse desconhecimento não resulta necessariamente do facto de ter apresentado pedido de adjudicação daquelas verbas com dispensa de deposito de preço conjuntamente com outras verbas (20 a 23) sobre as quais lhe foi reconhecida preferência de pagamento (com fundamento em garantia real), e porque, em abstrato, na ausência de outra prova num ou outro sentido a versão dos factos que a recorrente alega, no sentido de a aceitação e atuação da comissão de credores e do administrador da insolvência terem contribuído para a convencerem que lhe assistia o direito de ser dispensada de depósito de parte do preço, permitir igualmente a construção da versão contrária, ou seja, de ter sido a atuação da recorrente que convenceu os demais de um pressuposto inexistente. Acresce que sempre ficaria por demonstrar que o destinatário da proposta de compra apresentada pela recorrente – o AI que outorgou na venda em representação da massa insolvente - conhecia a essencialidade da dispensa de depósito do preço na formação da sua vontade em adquirir as verbas em questão (cfr. art. 252º do CC). Com efeito, este requisito – do conhecimento, pelo destinatário da declaração, da essencialidade dos motivos determinantes da vontade – só é prescindido pelo art. 838º, nº 1 do CPC quanto ao erro sobre o objeto do negócio, e o que bem se compreende na medida em que a situação jurídica e as características físicas deste são ou devem ser objeto de publicitação aos potenciais adquirentes no âmbito do procedimento de venda.[23]
Sem prejuízo de todo o exposto e da reconhecida extemporaneidade do pedido de anulação da venda, sempre se acrescenta que, com os fundamentos em que vem estribado, estaria votado à improcedência porque, ainda que se aceitasse como demonstrado o já referido desconhecimento da recorrente, este sempre seria imputável à sua incúria e negligência processuais por lhe ser processualmente possível e exigível o contrário, estando-lhe por isso vedado invoca-lo em seu beneficio e em prejuízo da massa insolvente e dos demais credores. Conforme antes se referiu, e aqui se reproduz, foi a recorrente quem deu causa à irregularidade que invoca ao aceitar comprar as verbas 3 e 10 sem proceder ao depósito da totalidade do preço devido sabendo ou devendo saber que a sentença de graduação de créditos já então transitada nos autos não lhe reconheceu preferência de pagamento pelo produto daqueles imóveis. Sentença cujo teor a recorrente conhecia ou, no mínimo, agindo com a devida diligência, podia conhecer, atendendo a que assumiu a posição processual do credor originário (o BNC) em substituição do qual se habilitou a intervir no processo, incluindo, para o substituir no mapa de rateio em sede de distribuição do produto da liquidação pelos créditos verificados de acordo com os termos em que foram graduados; se os não conhecia, só à sua incúria ou falta de diligência pode imputar-se. Veja-se que é a própria lei processual que no art. 574º, nº 3[24] qualifica como confissão a declaração de desconhecimento de determinado facto de que o declarante deva ter conhecimento. Como é anotado por A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, “[o] princípio da autorresponsabilidade das partes obsta a que possa arguir a nulidade a parte que lhe deu causa (…).”[25] Com efeito, a falta de diligência da recorrente – traduzida na ausência de consulta do processo e, especificamente, da sentença que graduou o crédito que decidiu adquirir e passou a titular nos autos - não é anulada pela falta de diligência do AI e da comissão de credores aos quais, no mínimo, também se impunha a leitura atenta daquela sentença antes de se pronunciarem sobre as propostas de adjudicação dos bens da massa insolvente. Mas, em abstrato, a falta de diligência destes órgãos da insolvência não importa mais senão a possibilidade da sua responsabilização perante os credores que, por falta do cumprimento daquela formalidade essencial, não venham a receber o que lhes caberia receber do produto dos imóveis que não foi depositado (para além dos juros que entretanto e desde 2014 teriam vencido em benefício da massa insolvente e que se destinariam ao pagamento precípuo das dívidas desta, cfr. art. 172, nº2 do CIRE, com consequente redução da afetação do preço dos bens a esse efeito). Já no que respeita ao desconhecimento do teor da sentença de graduação de créditos que a recorrente implicitamente alega como pressuposto da anulação que requer e atuação processual que adotou por se manter nesse alegado desconhecimento, só a si é suscetível de imputar-se por omissão da elementar diligência de consulta do processo na parte especificamente destinada à imediata regulação dos termos do pagamento dos créditos que adquiriu ao credor BNC na pendência dos autos, e que estava em condições de conhecer ainda antes da aquisição (que ocorreu em data posterior a fevereiro de 2013) posto que a essa altura já havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos (em janeiro de 2013). Se a recorrente negligenciou o dever de consulta para se inteirar dos termos da regulação dos seus interesses no âmbito do processo no qual se habilitou a intervir como credor, não pode pretender que o desconhecimento que dessa falta adveio fosse obrigatoriamente suprida por outros, dando-lhe a conhecer o que ela própria tinha condições de conhecer e se suporia fosse por ela conhecido, e muito menos pretender imputar a qualquer outro sujeito processual a conduta que adotou por (alegadamente) desconhecer os termos da sentença de graduação de créditos patente nos autos, e menos ainda que a sua negligência processual reverta em prejuízo dos demais credores. Como é referido no acórdão de 25.02.2025 proferido nos autos em apenso H, “de acordo com a Lei, apenas e só a Sentença de verificação e graduação de créditos tem influência no rateio e pagamento dos créditos. Os actos do Administrador da Insolvência e da Comissão de Credores posteriores à aludida Sentença em nada podem influenciar tal rateio e pagamento.”.
3. Finalmente, não podemos deixar de realçar a inutilidade prática do pedido de anulação da venda que a recorrente deduziu única e exclusivamente com o objetivo de se ‘libertar’ da obrigação de pagamento da parte do preço dos imóveis que foi indevidamente dispensada de depositar posto que com a sua procedência, conforme estabelece o art. 289º, nº 1 do Código Civil, ficaria constituída na obrigação de restituir à massa insolvente os imóveis objeto dessa mesma venda ou, não sendo possível - como não lhe seria posto que os alienou e constam inscritos em benefício de terceiros há mais de 10 anos -, a restituir o valor dos mesmos. Em suma, da anulação das vendas resultaria para a recorrente a obrigação de pagar à massa insolvente, no mínimo, o mesmo valor que se lhe impõe pagar a título de preço devido pela sua aquisição.
4. Termos em que se conclui pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão dele objeto.

V - Decisão
Em conformidade com o exposto, as juízas desta secção acordam em julgar a apelação improcedente, com consequente manutenção da decisão recorrida.       
Na qualidade de vencida, as custas da apelação recaem sobre a recorrente (arts. 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 28.10.2025
Amélia Sofia Rebelo
Susana Santos Silva
Isabel Fonseca (com declaração de voto)

Declaração de voto:          
Concordando inteiramente com a decisão propugnada no acórdão e respetiva fundamentação, à exceção, quanto a esta, da parte em que se alude ao prazo para a formulação de pretensão de anulação da venda nos termos do art. 838.º do CPC, pelo comprador, porquanto se adere à posição sufragada no arresto referido na nota 23 (acórdão do TRL de 31-10-2023, proferido no processo n.º 84/19.8T8SRQ-E.L1-1, relatora: Renata Linhares de Castro), sendo certo que, no caso ora em apreço, como salientado no acórdão, a questão é meramente académica porquanto mesmo considerando o prazo de um ano, ainda assim este sempre se mostraria ultrapassado.

Isabel Fonseca
_______________________________________________________
[1] Diploma a que respeitam as normas que se citam sem menção a outra origem.
[2] No seu nº1 prevê que [o] exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir.
[3] Sob a epígrafe Credores garantidos e preferentes, ao que aqui releva prevê que [a]os credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente (…) é aplicável o disposto para o exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo.
[4] Vd. Marco Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 5ª ed., p. 514
[5] Por força do principio da precipuidade previsto pelo art. 541º do CPC e conduzido ao art. 172º, nº 1 do CIRE.
[6] Código de Processo Civil Anotado, GPS, Almedina, Vol. II, p. 236. No mesmo sentido, de J. Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL Editora, Vol. II, p. 919 e s.
[7] Estabelece que [n]ão pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.
[8] Prevê que [s]e o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.
[9] Código de Processo Civil Anotado, GPS, I vol., Almedina, 2ª ed., p. 251.
[10] Sem prejuízo das situações designadas na doutrina e jurisprudência como de invalidade mista, que combinam características de ambos os institutos através da limitação da legitimidade para arguição da nulidade, como sucede, por exemplo, na nulidade dos contratos promessa por vício de forma nos termos conjugados dos arts. 220º e 410º, nº 3 do CC).
[11] Considerando que a massa insolvente enquanto património autónomo sujeito de relações jurídicas e detentor de personalidade judiciária só se constitui com a sentença de declaração da insolvência (cfr. arts. 46º, nº 1 e 149º, nº 1 do CIRE).
[12] Nesse sentido, na doutrina, entre outros, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, GPS, vol. II, p. 258 - “5. A decisão a proferir sobre o pedido de anulação é precedida do exercício do contraditório, aplicando-se o regime dos incidentes (nº2 e arts. 293º a 295º). Se a apreciação da questão for complexa ou exigir meios de prova mais alargados que os permitidos pelo art. 294º, o juiz remete o comprador para a ação de anulação autónoma, a intentar contra o credor a quem foi ou deva ser atribuído o preço da venda.”- e J. Castro Mendes e M Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL Lisboa Editora, 2022, p. 949 – “a) O erro sobre o objecto da venda permite que o comprador peça, no próprio processo de execução (ou seja, num incidente deduzido na execução) (…).(b) A anulação da venda e a indemnização do adquirente são decididas depois de ouvidos o exequente, o executado e os credores interessados e de examinadas as provas que forem produzidas pelo comprador (art. 838º, nº2). Se estes elementos forem insuficientes, o disposto no art. 838º, nº3 2ª parte, mostra que o comprador pode ser remetido para uma ação autónoma a propor contra o exequente, o executado e o credor a quem tenha sido ou deva ser atribuído o preço da venda. Trata-se de uma forma especial de resolução de um non liquet.
[13] Relatado no processo nº107/13.4TYLSB-W.L1.
[14] Em Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, p. 966 e s., posteriormente replicado em  Acção Executiva, AAFDL Editora, 2019, Reimpressão, págs. 913 e ss.
[15] Nesse sentido, ainda que reportado à invalidade formal da venda com fundamento nos arts. 195º e 197º do CPC, acórdão da RL de 23.05.2019: “(…) quer a massa insolvente, quer os credores, quer terceiros intervenientes nos autos de liquidação, alegadamente prejudicados, podem reagir relativamente aos actos, activos ou omissivos, do Administrador da Insolvência, provocando a sindicância do Tribunal, nomeadamente invocando as regras gerais sobre a nulidade dos actos, nos termos dos artºs. 195º e 197º, do Cód. de Processo Civil, ex vi do artº. 17º, do CIRE;//- e, tal invocação, e consequente apreciação e decisão, deve ter lugar nos próprios autos de liquidação, pois trata-se de efectiva apreciação do aí ocorrido, com intervenção da totalidade dos interessados intervenientes, garantindo-se o devido contraditório nos termos delineados pelo juiz da insolvência, assim se tutelando os variados interesses presentes e o proferir de uma decisão que seja vinculativa para o universo dos obrigados; - tutela que já não será possível garantir num quadro de posterior instauração de acções autónomas e dispersas, (…).”(subl. nosso)
[16] Primeira obra cit.
[17] O pagamento do preço pelo comprador e a entrega do bem objeto da venda pelo sujeito processual que a celebra.
[18] Proc. nº 483/03.7TBCMN-B.G1, disponível no site da dgsi.
[19] Telma Marisa de Paiva Coelho, Venda Executiva: Alguns Problemas, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º ciclo de Estudos em Direito, conducente ao grau de Mestre, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas, Julho/2017. Com interesse na matéria, cita acórdão do STJ de 30 de abril de 2003, Processo n.º 03B996, relator Araújo Barros, disponível em dgsi.
[20] J. Castro Mendes e M Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 948
[21] Acórdão de 12.04.2012 do Supremo Tribunal Administrativo, processo nº 0271/12, disponível na página da dgsi.
[22] Assinala-se o conhecimento da posição maioritariamente assumida pela doutrina nesta matéria, no sentido da aplicação do prazo previsto pelo art. 287º do CC ao incidente de invalidade substancial da venda executiva previsto pelo art. 838º do CPC (vd. A. Geraldes, P. Pimenta, e L. Sousa, ob. cit., vol. II, p. 258; João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 949; Rui Pinto, ob. cit., p. 972). Na jurisprudência, acórdão da Relação de Lisboa de 31.10.2023, assim sumariado: “1. O artigo 838.º do CPC é aplicável, por força do artigo 17.º do CIRE, à venda realizada em sede de liquidação do activo no processo de insolvência quando seja requerida a sua anulação pela adquirente do bem apreendido (credora hipotecária) com fundamento na desconformidade entre as características anunciadas e aquelas que efectivamente o bem apresenta.//2. Nesta situação, o prazo para ser deduzida a pretensão de anulação da venda é o previsto no artigo 287.º, n.º 1 do CCivil – um ano após o conhecimento dessa mesma desconformidade.//3. Tal pretensão terá, contudo, que ser deduzida na pendência do processo de insolvência, não o podendo ser após o trânsito em julgado do despacho que declarou encerrado tal processo nos termos previstos pelo artigo 230.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
[23] Nesse sentido, Rui Pinto, ob. cit., p. 970.
[24] Prevê que [s]e o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento e equivale a impugnação no caso contrário.
[25] Código de Processo Civil Anotado, GPS, I vol., Almedina, 2ª ed., p. 251.