Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
185/17.7GBMTJ.L1-9
Relator: MARIA DE FÁTIMA R. MARQUES BESSA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ARGUIDO
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I. A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito (art.º 286.º, n.º1 do CPP).
II. A abertura da instrução a requerimento do arguido está balizada pelo estatuído na alínea a) do n.º 1 do art.º 287.º do CPP, de onde decorre que aquele sujeito processual só terá legitimidade para requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público (ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular), tiver deduzido acusação.
III. O requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado pelo arguido não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as seguintes partes (n.º2, do art.º 387.º, do CPP):
a. A narração das razões de factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança;
b. As razões de direito de discordância relativamente à acusação.
c. Sempre que disso for o caso, a indicação dos actos de instrução, que o recorrente pretende que o juiz leve a cabo sendo admissível requerimento do arguido em que apenas se pede a realização de novo interrogatório judicial, mesmo que ele já tenha sido ouvido no inquérito, desde que o interrogatório se destine a fazer prova de factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou medida de segurança.
d. Sempre que disso for o caso, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.
IV. A possibilidade conferida ao arguido de requerer a abertura de instrução depende, sob pena de rejeição, da verificação cumulativa de três pressupostos: tempestividade, competência do juiz e admissibilidade legal da instrução, sob pena de rejeição (art.º 287.º, n.º3, do CPP).
V. A inadmissibilidade legal da instrução pode assentar em múltiplas situações, nomeadamente:
i. Na falta de legitimidade para tal do requerente;
ii. Na dedução contra desconhecidos;
iii. Na forma de processo não o admitir (formas de processo especiais);
iv. Na existência de nulidades no inquérito que impeçam a tramitação subsequente;
v. Na deficiente elaboração do requerimento de abertura de instrução.
VI. O requerimento de abertura de instrução do arguido que contenha as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação não pode ser rejeitado por inadmissibilidade legal da abertura da instrução, sob pena de violação do art.º 287.º, n.º 2 do CPP e do art.º 32.º, da CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I - RELATÓRIO
1. No âmbito da instrução n.º 185/17.7... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal do Barreiro, foi proferido Despacho de Rejeição do requerimento de abertura de instrução do arguido AA por inadmissibilidade da abertura da instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal.
2. Inconformado com esta decisão, o arguido, veio, em .../.../2025, dela recorrer para este Tribunal da Relação de Lisboa, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
a) O princípio do acusatório, espinha dorsal do modelo processual vigente, não dispensa, antes exige, o controlo judicial do libelo, visando evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, só por si, um incómodo, muitas vezes oneroso, e não raras vezes até um vexame (neste sentido, vide, o Acórdão do TRE de 05/12/2023, proferido no processo nº 155/22.3GESLV.E1, op. cit.).
b) Sendo remetidos os autos à distribuição para julgamento, conforme ordenado no douto Despacho recorrido, ficam precludidos os direitos do ora recorrente, a, em sede de instrução, ver judicialmente comprovada a decisão de acusação e a não ver a causa submetida a julgamento, tornando o presente recurso absolutamente inútil.
c) O presente recurso tem subida imediata, tanto mais, por se tratar de recurso cuja retenção o tornaria absolutamente inútil e efeito suspensivo da decisão recorrida (nº 1 e al. h) do nº 2 do art.º 407 e nº 3 do art.º 408º, ambos, do CPP).
d) Assim, deve ser atribuído efeito suspensivo do douto Despacho recorrido ao presente recurso, o que se requer a V. Exas.
e) Só a verificação dos elementos constitutivos objetivos e subjetivos é passível de integrar o preenchimento do tipo legal incriminador, sendo imprescindível que os mesmos constem da acusação, sem os quais não é a mesma fundada, porque insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (neste sentido, vide, o Acórdão do TRC de 13/09/2017, proferido no processo nº 146/16, op. cit.).
f) O crime de branqueamento de capitais consiste essencialmente na ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade de vantagens de crimes (neste sentido, vide, o Acórdão do TRP de 16/03/2022, proferido no processo nº 109/19.7TELSB-G.P1, op. cit.).
g) Salvo melhor entendimento, não constam da Acusação quaisquer factos de onde possa resultar, em julgamento, preenchidos quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo do crime de que o recorrente vem acusado, sendo inequívoco, que os factos que da mesma constam, não constituem crime, sendo esta manifestamente infundada (al. d) do nº 3 do art.º 311º do CPP e, neste sentido, vide, o Acórdão do TRG de 21/03/2022, proferido no processo nº 2411/19.9T9VCT.G1, op. cit.).
h) Sendo a Acusação em causa nos presentes autos, manifestamente infundada, conduziria a instrução, necessariamente, a despacho de não pronúncia, sendo a sua realização atentatória da proibição da prática de atos inúteis, como consagração do princípio da economia processual, enquadrando-se o caso sub judice no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” (neste sentido, vide, o Acórdão do STJ de 11-02-2016, proferido no processo nº 15/14.1UGLSB.S2 e o Acórdão do STJ de 12/03/2009, proferido no processo nº 08P3168), op. cit.).
i) Assim, deve esse Tribunal, julgando procedente o Recurso, revogar o douto Despacho recorrido no que respeita à sua fundamentação e consequências, decidindo que a Acusação é manifestamente infundada, porquanto, os factos nela descritos não constituem crime e ordenar o arquivamento dos autos, quanto ao recorrente.
j) Com todo o respeito pelo entendimento contrário, expresso no douto Despacho recorrido, parece ao recorrente, que aludiu no seu requerimento de abertura de instrução às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação.
k) Razões que se reconduzem a não constarem da Acusação factos de onde possam resultar, em julgamento, preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa.
l) Para além de que, somente, dizer-se que os factos que constam na acusação não são crime é colocar em causa a acusação, de facto e de direito, pelo que, salvo melhor entendimento, tal bastaria para que fossem indicadas razões de facto e de direito de discordância com a acusação (nº 2 do art.º 287º do CPP).
m) Assim, o douto Despacho recorrido ao ter entendido que o requerimento de abertura de instrução não respeitou as exigências de substância consagradas no nº 2 do art. 287º do CPP, preconizou uma incorreta interpretação das disposições legais aplicáveis, padecendo de erro de julgamento e não podendo, em consequência, permanecer na ordem jurídica.
n) Por a instrução se tratar de uma garantia constitucional, a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução e não configura a previsão de inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento apresentado pelo arguido que não contenha a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (art. 32º da CRP, neste sentido, vide, o ainda recente, Acórdão desse TRL de 11-05-2023, proferido no processo nº 6/22.9GDCTX-C.L1-9, op. cit.).
o) Mesmo nos casos em que o arguido requeira a abertura de instrução, sem mencionar quaisquer factos sobre os quais pretende que essa instrução recaia, nem assim a instrução será inadmissível, sendo sempre possível, desde que, se consiga extrair do requerimento uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, ficando assim, preenchido o pressuposto da sua legitimidade (neste sentido, vide, ainda o Acórdão desse TRL de 11-05-2023, proferido no processo nº 6/22.9GDCTX-C.L1-9, op. cit.).
p) Pelo que, ainda que o ora recorrente não tivesse respeitado as exigências de substância consagradas no art.º 287º, nº 2 do CPP, no requerimento de abertura de instrução, não identificando as concretas razões de discordância relativamente à opção de acusar, tal como entendido no douto Despacho recorrido, o que como acima se explanou, não se aceita.
q) Sempre o requerimento de abertura de instrução não deveria ter sido rejeitado, porquanto a instrução requerida pelo arguido, não obstante existir como direito disponível, insere-se no direito de defesa constitucionalmente consagrado, não sendo possível restringir esse direito mediante ampliação do conceito de inadmissibilidade legal da instrução (neste sentido, vide, o Acórdão do TRC de 10/04/2024, tirado no processo nº 9/21.0GHCBR.C1, op. cit.).
r) Assim, salvo melhor entendimento, o douto Despacho recorrido ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução com fundamento em inadmissibilidade legal, preconizou uma incorreta interpretação das disposições legais aplicáveis, padecendo de erro de julgamento e não podendo, em consequência, permanecer na ordem jurídica.
s) Caso existisse necessidade de aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução, o que não se aceita, sempre deveria ter sido emitido despacho de convite para o efeito, por ser legalmente devido (neste sentido, vide, novamente, o Acórdão desse TRL de 11-05-2023, proferido no processo nº 6/22.9GDCTXC.L1-9, op. cit.).
t) Assim, o douto Despacho recorrido, ao ter entendido que o despacho de aperfeiçoamento era legalmente inadmissível, também pelo ora exposto, preconizou uma incorreta interpretação das disposições legais aplicáveis, padecendo de erro de julgamento e não podendo, em consequência, permanecer na ordem jurídica.
Nestes termos, atentos os fundamentos expendidos, nos melhores de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser admitido, analisadas as questões colocadas nas alegações e respetivas conclusões, e proferido Acórdão que revogue o douto Despacho recorrido, com todas as legais consequências daí advindas
3.O recurso foi admitido pelo despacho de .../.../2025, com o seguinte conteúdo:
Por ter sido tempestivamente apresentado, estar motivado, ter o(a) recorrente legitimidade, ser a decisão recorrível e não sendo devida taxa de justiça inicial, admito o recurso interposto a fls. 5352 e ss. pelo(a) arguido AA (que incide sobre o despacho que rejeitou a abertura de instrução, a fls. 5349 e ss.), ao qual atribuo efeito suspensivo, com subida imediata e nos próprios autos (por razões de economia, utilidade e eficácia processual) – artigos 399º, 400, nº 1 a contrario, 401º, nº 1 alínea b), 406º nº 1, 407º, nºs 1 e 2, alínea h) e 408º, nº 3, 411º nº 1, al. a), 412º, 414º, nº 1, todos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 411º, nº 6 e 413º, nº 1 do Código de Processo Penal
4. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta ao recurso em .../.../2025, em síntese, para dizer que não assiste razão ao recorrente, porquanto:
CONCLUSÕES:
1. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido na sequência de despacho de acusação proferido pelo Ministério Público deve elencar as razões de facto e de direito da discordância da acusação, apresentando as concretas razões da sua discordância quanto à decisão do Ministério Público, em obediência, nomeadamente às exigências previstas no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal.
2. Na fase de instrução o juiz não aprecia todos os factos e meios de prova suscitados no processo, mas apenas os factos impugnados pelo recorrente que em seu entender merecem decisão distinta.
3. O requerimento abertura de instrução deve delimitar o objeto desta fase processual que não pode constituir uma renovação do inquérito, destina-se a apreciar os aspetos concretos que o requerente entende terem sido indevidamente apreciados.
4. A afirmação genérica, e sem qualquer alicerce ou sem qualquer discordância minimamente sustentada quanto aos elementos de prova recolhidos, de que a acusação contra si deduzida é manifestamente infundada não pode servir como base de uma fase processual cujo objeto está na disponibilidade do requerente.
5. O arguido/recorrente no requerimento de abertura de instrução deve esclarecer, fundamentadamente, as razões de facto e de direito da sua discordância quanto à acusação contra si deduzida, deve definir o objeto da instrução, em obediência, nomeadamente, ao estatuído no art. 286º do Código de Processo Penal.
6. Sendo a fase de instrução, facultativa, uma fase processual que se destina a tornar efetivo o controlo judicial da atividade do Ministério Público, tem de ter um objeto, sob pena de se tornar esta atividade uma reprodução da intervenção do Ministério Público.
7. Considerou a Mma JIC que o aludido requerimento de abertura de instrução não cumpriu os preceitos legais em causa, que estava obrigado a respeitar.
8. O douto despacho recorrido não violou qualquer uma das normas invocadas pelos recorrentes ou outras, que cumpra conhecer, sendo válido e legal, pelo que se deve manter nos seus precisos termos, assim se fazendo,
5. A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação, em .../.../2025, emitiu o seguinte parecer:
Parecer do Ministério Público
I. Recurso próprio e tempestivo, sendo correto o efeito e regime de subida que lhe está atribuído.
II. Nesta Instância, o Ministério Público acompanha nos seus precisos termos em que vem formulada, a resposta da Ex.ª Senhora Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância à motivação do recurso interposto pelo arguido AA, do despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal.
III. Atentas as considerações expostas na citada resposta, e porque se nos afigura que nessa resposta se demonstrou já, com suficiente e adequada clarividência, a sem razão do Recorrente emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso e, como consequência, confirmado o despacho proferido pelo Tribunal a quo que rejeitou o requerimento de abertura de instrução. Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
*
Foi cumprido o nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal.
*
No exame preliminar considerou-se que o objecto do recurso interposto deveria ser conhecido em conferência.
*
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal.
Nada obsta à prolacção do Acórdão.
****
II. OBJECTO DO RECURSO
Constitui jurisprudência e doutrina assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP). (Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995 Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção.)
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso(…) A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente(…) não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente(…)”
Atendendo às conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a apreciar:
Da rejeição indevida do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, em violação do disposto no 287, n.ºs 2 e 3 do CPP e 32.º, da CRP.
III -FUNDAMENTAÇÃO
Factos relevantes para apreciação do recurso:
III.1. O arguido AA, em face da Acusação, formulada pelo M.P. contra si, veio, nos termos do art.º 287º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP), requerer a abertura de instrução, através do seguinte requerimento:
“ABERTURA DE INSTRUÇÃO,
O que faz, nos termos e com os fundamentos seguintes:
A. Do âmbito da Acusação:

Vem o arguido acusado da prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º-A, nºs 1, al. j), nºs 3, 5 e 8 do Código Penal (CP) com referência ao art.º 4º, nº 1, al. f) da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto.
2º
A Acusação tem 412 pontos, sendo que apenas uma pequena parte, direta ou indiretamente se lhe reporta (24 pontos), que ora se transcreve:











B. Dos factos:

De acordo com a Acusação, entre .../.../2017 e .../.../2017, foram emitidos cheques de contas tituladas pela ..., no valor de € 430.000,00, que foram depositados em contas bancárias por si tituladas (vide, pontos 253 a 260 da Acusação).

Tendo este autorizado a utilização das suas contas para depósito e transferência das quantias provenientes da atividade ilícita (vide, ponto 11 da Acusação).

Na sequência de contacto do arguido BB, que de acordo com a Acusação pretendia esvaziar a ... de ativos financeiros, tendo em vista distanciar esses fundos da sua origem ilícita.

Fundos que lhe seriam entregues na qualidade de terceiro de confiança com a função de mero depositário temporário (certamente mediante o pagamento de uma “comissão” pela prestação do “serviço”, de valor não concretamente apurado).

Para posteriormente voltarem à sua disponibilidade, na qualidade de beneficiário efetivo dos mesmos ativos (vide, ponto 251 da Acusação).

Solicitando que lhe permitisse transferir temporariamente para a sua esfera patrimonial a quantia de€ 430.000,00, mediante transferências bancárias que aceitou, sabendo que os montantes correspondentes eram provenientes da fuga ao pagamento de IT (vide, ponto 252 da Acusação).

Em .../.../2017, foi emitido recibo com o valor de € 188.265,31, respeitando € 35.204,08 a Imposto dobre o Valor Acrescentado (IVA), vide, ponto 261 da Acusação.
10º
Para além disso, segundo a Acusação, durante ano de 2017, até ... foram igualmente emitidos outros 6 cheques, que foram igualmente depositados na mesma conta, no valor total de € 280.000,00 (vide, ponto 262 da Acusação).
11º
A estepropósito, cabe sublinhar que não constada Acusação quem emitiutais cheques, de que conta foram emitidos, em que datas foram emitidos, quais os seus valores, quando foram depositados, nem consta sequer, a conta em que alegadamente foram depositados.
12º
Agiu com o propósito concretizado de adquirir essas quantias (vide, ponto 407 da Acusação).
13º
A este propósito, salvo o devido respeito e melhor opinião, na Acusação deveria ter sido decido, se as quantias depositadas se destinavam a ser posteriormente devolvidas ou aseremadquiridas.
Pelasingelarazão,dequeambasascoisasnãosão, numraciocínio lógico, possíveis.
14º
Sabia que com a sua atuação estava a introduzir na economia regular e lícita aquelas quantias provenientes de atividades ilícitas (vide, ponto 408 da Acusação).
15º
A este respeito, perscrutando a Acusação, o único facto imputado que concerne à introdução na economia de tais quantias, reside no mero depósito dos cheques em contas abertas junto de instituições bancárias nacionais.
16º
Agiu com o propósito concretizado de obter proveitos económicos da colaboração prestada ao arguido CC de montante não concretamente apurado (vide, ponto 410 da Acusação).
17º
A este propósito cabe referir que não resulta da Acusação qualquer facto de onde possa vir a resultar a concretização do “propósito concretizado”, tanto mais, que não foi sequer concretamente apurado.
C. Do direito:
1. Da lei penal substantiva aplicável:
18º
Nos termos do art. 29º nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.”
19º
Postula o nº 4 do art.º 2º do CP, que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente”.
20º
Como se decidiu, entremuitos outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça(STJ) de 27/02/2020, proferido no Recurso nº 736/03.4TOPRT.P2.S1, em que se refere:
O apuramento do regime concretamente mais favorável perante sucessão de leis penais, de acordo com o art. 2.º, n.º 4, do CP, é feito do cotejo dos regimes em bloco da lei vigente e da lei pré-vigente ao caso em julgamento, ou seja, pondo em confronto a globalidade daqueles dois regimes, e não apenas partes ou segmentos dos mesmos”, in, www.dgsi.pt, sombreados e sublinhado nossos, acessível em:https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/AA5FD649712B5D96802576710061AB8C
21º
O art.º 368º-A do CP, foi objeto de duas alterações com relevância para os presentes autos,a primeirapela Leinº 59/2007, de4de setembro e asegundapela Lei nº 83/2017, de 18 de agosto.
22º
O art.º 368º-A do CP, na redação da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, dispõe: Branqueamento
1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infrações referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínimasuperior aseismeses ou deduraçãomáxima superior acinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
2 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão de dois a doze anos.
3 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
4 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
5 - O facto não é punível quando o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e a queixa não tenha sido tempestivamente apresentada.
6 - A pena prevista nos nºs 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual.
7 -Quandotiver lugarareparação integral dodano causado aoofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
8 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
9 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
10 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
23º
O art.º 368º-A do CP, na redação da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, dispõe: Branqueamento
1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infrações referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, e no artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
2 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão de dois a doze anos.
3 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
4 - A punição pelos crimes previstos nos n.ºs 2 e 3 tem lugar ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores, ou ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º
5 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada. 6 - A pena prevista nos n.ºs 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual.
7 -Quandotiver lugarareparação integral dodano causado aoofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
8 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
9 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
10 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
24º
A Lei nº 83/2017, de 18 de agosto iniciou a sua vigência em ... de ... de 2017, porquanto, nos termos do seu art.º 191º, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, que ocorreu em 18 de agosto.
25º
Pelo que, é aplicável em bloco, o art.º 368º A, na redação da Lei 59/2007, de 4 de setembro, aos factos praticados até ... de ... de 2017, sendo aplicável em bloco, o art.º 368º-A, na redação da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, aos factos praticados posteriormente.
26º
E, ao contrário do constante da Acusação, são inaplicáveis nos presentes autos, os nºs 5 e 8 do art.º 368º-A, na sua redação atual, porque inexistiam quer na sua redação da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, quer na sua redação da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, tendo sido no mesmo artigo introduzidos posteriormente.
27º
Bem como, a al. f) do nº 1 do art.º 4º da Lei nº 83/2017 de 16 de agosto, só é aplicável aos factos praticados depois da sua entrada em vigor.
28º
Temos, pois, que para além do nº 1 do art.º 368º-A, para efeitos de enquadramento dos factos em causa nos presentes autos no conceito de “vantagem”.
29º
Ao nível do tipo de ilícito em causa, da Acusação apenas pode subsistir, o preceituado no nº 3 da redação atual do art.º 368º-A, aliás, a mesma redação do nº 2 do artigo em face, quer da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro, quer da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, semelhante à redação da al. a) do nº 1 do art.º 23º do Decreto-lei nº 15/93 de 22 de janeiro (embora aqui somente em sede de tráfico de estupefacientes) e à redação da al a) do art.º 2º do Decreto-lei nº 325/95 de 2 de dezembro (aplicável a um maior leque de crimes), que é a seguinte:
“2 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão de dois a doze anos.
2. Da inexistência de indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena.
30º
Nos termos do artigo 286º do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
31º
Para tal, atento o disposto no artigo 308º, nº 1 do CPP, importa aferir se resultam dos autosindíciossuficientesdeseverificarem ospressupostosdequedependeaaplicação de uma pena.
32º
Devendo considerar-se que existem indícios suficientes quando, segundo um juízo de probabilidade, e pela apreciação de toda a prova constante dos autos, resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena.
33º
Sendo certo, que em sede de comprovação da decisão de Acusação se exige um grau de existência de indícios maior do que na fase de inquérito, designadamente, em sede de apuramento da suficiência de indícios para determinação da existência de “fortes indícios” para aplicação da prisão preventiva.
34º
Neste sentido, se decidiu no Acórdão do STJ de 28/08/2018, proferido no Recurso nº 142/17.3JBLSB-A.S1, em que se refere:
III - Sendo diferente o contexto probatório em relação ao (primeiro) momento da aplicação da medida de coacção e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que de certo modo se equivalem o conceito de «fortes indícios» usado no art. 202.º e o de «indícios suficientes» explicitado no art. 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.
IV-Masaferidaessaidoneidadepelacircunstânciadeseremusadosperanterealidades processuais distintas. “Fortes indícios” tendo em conta que a medida de coacção é fixada ainda numa fase de aquisição da prova configurando-se esse conceito como uma exigência de que ela não se apoie numa débil consistência probatória mas antes em elementos probatórios já de solidez suficiente embora porventura não bastantes ainda para deduzir uma acusação.Indícios suficientes” no sentido em que, finda essa fase de investigação e aquisição da prova eles terão então de possuir, força necessária e solidez vincada, para deles resultar uma possibilidade razoável de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido.
V - Esta é, crê-se, a interpretação que confere ao sistema a integridade e coerência adequadas pois, como ensinou Antunes Varela a lei não deve «rebaixar-se à categoria de simples artigo pronto a ser digerido segundo as várias necessidades fisiológicas do organismo social», in, www.dgsi.pt, sombreados e sublinhadonossos,acessívelem:https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d59264ff29f98d5b80 2582fa002cd101?OpenDocument
35º
Atendendo ao nº 2 do art.º 368º-A, na redação aplicável, comete o crime de branqueamento quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente,comofim dedissimularasuaorigemilícita, oudeevitarqueoautor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal.
36º
Neste âmbito, seguiremos de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30/10/2019, proferido no Processo nº 405/14.0TELSB.L1-3, que aborda a questão de forma cabal, referindo o seguinte:
“Em termos gerais, poderá definir-se o crime de branqueamento de capitais, como «o processo através do qual os bens de origem delituosa se integram no sistema económico legal, com a aparência de terem sido obtidos de forma lícita» (Juana Del Carpio Delgado, El Delito de Blanqueo de Capitales, citada por Jorge Manuel Dias Duarte, in Branqueamento de Capitais, o Regime do D.L. 15/93 de 22.01., p. 34). 37º
(…) o fim visado com a prática do crime de branqueamento é sempre a dissimulação da origem ilícita dos bens a branquear, ou evitar que os autores ou participantes dos crimes-base sejam criminalmente perseguidos e submetidos a uma sanção penal (Faria Costa, O branqueamento de capitais: algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal. p. 308-309 e Jorge Fernandes Godinho Do crime de «Branqueamento» de Capitais: Introdução e Tipicidade. p. 140-148 e Pedro Caeiro, A Decisão-Quadro do Conselho, de 2 de Junho de 2001...,
38º
(…) No nº 2, referem-seos actosde converter, transferir, auxiliaroufacilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal.
39º
Deve considerar-se que a “conversão”, para efeitos do tipo em questão, engloba todas as operações de alteração da natureza e de transferência dos bens gerados directamente pelo crime-base ou adquiridos em resultado da respectiva prática em bens de outra natureza ou tipo.
40º
Por seu lado, a “transformação”, referida no tipo, compreende todas as operações destinadas ou aptas a mudar fisicamente (no sentido de mudança geográfica) esses bens, mas também todas as operações através das quais é alterada a titularidade dos direitos sobre os bens, ou esses direitos são transmitidos a outrem que não o agente do crime precedente.» (Margarida Mateus de Carvalho, Branqueamento de Capitais, Dissertação de Mestrado, Escola de Direito de Lisboa da Universidade Católica, Março de 2016, p. 26).
41º
O auxílio oufacilitaçãode operações deconversão outransferênciade vantagens, visa integrar no âmbito do tipo todas as formas de comparticipação criminosa, consoante os actos de auxílio ou de facilitação sejam ou não causais (autoria ou cumplicidade) e consubstanciem, actos de execução do crime (auxílio ou facilitação materiais) ou de instigação (auxílio ou facilitação morais).
42º
(…) Em toda esta gama de condutas possíveis (e nas previstas no nº 3), mostram-se sobejamente retratadas as diferentes fases do branqueamento – a de imersão, colocação ou conversão a da circulação ou dissimulação e, por fim, a da integração.
43º
A verdadeira origem e propriedade do dinheiro é camuflada, com o auxílio de contas bancárias, vales postais, cheques, e outros instrumentos negociáveis, operando a transformação «da natureza e configuração dos bens gerados ou adquiridos com a prática do facto ilícito típico subjacente» (Vitalino Canas, O Crime de Branqueamento: Regime de Prevenção e Repressão, Almedina, 2004, p. 158).
44º
Segue-se a reciclagem ou «ensaboamento», mediante a dissociação entre os lucros e a sua fonte ilegítima, traduzida, por exemplo, na diminuição do volume do dinheiro injustamente obtido, repartindo-o em quantias parcelares, por multiplicação das operações, seja, de carácter financeiro, em valores mobiliários, seja, através do sistema bancário, com movimentos por várias contas, cheques sobre o estrangeiro, etc., ou com a alteração jurídica da titularidade, posse ou domínio dos bens ou sua deslocação para outro local, tudo com a finalidade de disfarçar «o rasto de todo o procedimento, por forma a ninguém, além do estritamente necessário, ter acesso a factos que mais tarde possam denunciar o seu autor moral» (Januário Gomes, Branqueamento de Capitais, http://www.verbojuridico.net).
45º
A fase da integração, refere-se a investimentos, a curto, médio ou longo prazo, criando uma aparência de legalidade, em sectores de actividade totalmente legais, já que, «quanto mais o dinheiro sujo penetra no sistema mais difícil se torna identificar a sua » (Lourenço Martins, Droga e Direito, 1994, p. 455), em que os bens e proventos regressam à circulação, no tráfego jurídico económico-financeiro.
46º
(…) Assim, em qualquerdas diferentescondutasprevistas, éprecisoqueo agentesaiba qual a fonte ou origem dos bens e/ou rendimentos (elemento cognitivo do dolo).
47º
Tem de agir, praticando alguma das condutas típicas ciente de que aqueles bens ou produtos resultam da prática de algum dos crimes subjacentes.
48º
Além disso, é indispensável que queira (elemento volitivo), por si ou através de outra pessoa, praticar alguma ou algumas daquelas condutas.
49º
É, ainda, necessário à consumação do branqueamento que a actuação do agente seja levada a cabo, com a finalidade de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal (dolo específico).
50º
Com efeito, o branqueamento, na modalidade tipificada no 2 é um crime de intenção que exige o dolo específico, um propósito, ou melhor dois propósitos (os quais podem ser cumulativos ou alternativos), que acrescem à consciência e vontade relativa aos elementos objectivos do crime o agente tem de actuar com ofimdedissimularaorigemilícitadasvantagensemcausa, oucomofimdeevitar que o autor ou participante das infracções subjacentes seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal”, in, www.dgsi.pt , sombreados e sublinhadosnossos,acessívelem:https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e37df64286ce19368 02584b7004c8fb6?OpenDocument&Highlight=0,crime,de,branqueamento
51º
Da análise da Acusação, resulta que os únicos factos concretos que são imputados, respeitam ao depósito em contas abertas junto de instituições bancárias, das quantias nela referidas.
52º
Estessãoosúnicosfactosconcretosimputados. Tudoomais, sãosuposições, opiniões, convicções pessoais e conclusões que carecem, em absoluto, de fundamento fáctico.
53º
Será que alguém pode ser condenado por crime de branqueamento somente por depositar cheques nas suas contas?
54º
Cremos sinceramente que a resposta é negativa.
55º
Razão pela qual, desde logo, inexistem indícios suficientes, porquanto, segundo um juízo de probabilidade e pela apreciação de toda a prova constante dos autos, não resulta uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada uma pena, impondo-se que seja proferido despacho de não pronúncia.
56º
Aliás, salvo melhor opinião, e caso não tivesse existido fase de instrução, caberia ao Presidente do Tribunal proferir despacho de rejeição da Acusação, por manifestamente infundada, em face da constatação de que os factos concretamente imputados não constituem crime, nos termos da al. a) do nº 2 e al. d) do nº 3 do art.º 311º do CPP. Todavia, ainda se dirá o seguinte,
57º
Conforme resulta, entre muitos outros, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado, o crime de branqueamento tipificado no nº 2 exige um dolo específico que se consubstancia em dois propósitos: 1) o agente tem de atuar com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens em causa, ou 2) com o fim de evitar que o autor ou participante das infrações subjacentes seja criminalmente perseguido (ou submetido a uma reação criminal, o que em bom rigor, aliás, parece o mesmo, porquanto o agente não pode ser criminalmente perseguido sem estar submetido a uma reação criminal, bem como, é verdade o contrário.
58º
Inexistem na Acusação quaisquer factos instrumentais de onde possa vir a decorrer a prova de tais propósitos. Propósitos que são subjetivos, constituindo intenções do sujeito, que na ausência de factos exteriores que os possam indiciar, só existem na sua vontade e que só ele conhece.
59º
Pelo que, tal prova só poderia validamente resultar de confissão. Confissão que não é provável ocorrer em conjuntura processual nenhuma e também não é provável ocorrer no presente processo, sendo aliás, a expetativa da sua ocorrência manifestamente insuficiente para fundar qualquer acusação.
60º
Mas, por mero raciocínio jurídico, mesmo que uma hipotética confissão viesse a ocorrer versaria sobre propósito impossível de conduzir ao resultado previsto no âmbito da norma.
61º
Porque, por um lado, depositar cheques de uma empresa nacional em contas bancárias abertas junto de instituições bancárias nacionais (no caso em nome do próprio advogado)nãodissimulaaeventualorigem ilícitadasvantagensemcausaeseria, aliás, absurdo.
62º
Salvo o devido respeito pelo Tribunal não seria “esconder o gato com o rabo de fora”, seria “esconder uma pontinha do rabo, com o resto do rabo e o gato de fora”. E,
63º
Por outro lado, depositar cheques de uma empresa nacional em contas bancárias abertas junto de instituições bancárias nacionais, não pode evitar que o autor ou participante das infrações subjacentes seja criminalmente perseguido em caso nenhum.
64º
E ainda menos no presente caso, atendendo a que as quantias depositadas se limitam a € 430.000,00, só o pedido cível deduzido supera o valor de € 75.000.000,00 e se encontra em causa, a prática de 10 crimes distintos.
65º
Aqui, nem a pontinha do rabo do gato ficava escondida.
66º
Ora, inexistem na Acusação factos concretos de onde se possa inferir os propósitos que consubstanciam o dolo específico exigido pelo crime de branqueamento tipificado no nº 2 do art.º 368-A do CP, pelo que, o tipo subjetivo não se encontra preenchido.
67º
Tanto mais, que tais propósitos se afiguram inverosímeis, por tudo o exposto e pelo facto constante da Acusação, de ter sido emitido recibo com o valor de € 188.265,31.
68º
Inexistem factos de onde se possa retirar que o agente sabia qual a fonte ou origem dos bens e/ou rendimentos (elemento cognitivo do dolo), de que resultavam da prática de algum dos crimes subjacentes ou de que tenha querido (elemento volitivo), por si ou através de outra pessoa, praticar alguma ou algumas das condutas previstas, pelo que, igualmente, não se encontra o tipo subjetivo preenchido.
69º
Noquerespeitaaoelementoobjetivodotipo, não existem naAcusaçãoquaisquer factos de que possa resultar uma operação de conversão de bens em causa (transformação noutros bens), trata-se de dinheiro depositado na conta da sociedade que continuou a ser dinheiro, embora depositado nas contas de outro titular, não se alterando a sua natureza ou tipo.
70º
Inexistem igualmente, quaisquer factos de onde se possa retirar que existiu auxílio ou facilitação de alguma operação de conversão ou transferência, porquanto se visa aqui integrar no âmbito do tipo todas as formas de comparticipação criminosa, que consubstanciem, atos de execução do crime (auxílio ou facilitação materiais) ou de instigação (auxílio ou facilitação morais), o que não ocorre minimamente indiciado.
71º
No que respeita à transferência, não existem dúvidas de que as quantias em causa foram transferidas, mediante cheques, das contas da sociedade para as contas indicadas na Acusação.
72º
Como se conhece jurisprudência, em que se inclui o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado, no sentido de que o mero depósito bancário, pode constituir crime de branqueamento.
73º
Mas, de forma predominante, quando o depósito é efetuado pelo autor do crime de onde provêm as vantagens, o que não ocorre no caso “sub judice”.
74º
E sempre, quando se encontra preenchido o dolo específico do tipo, o que conforme acima referido, nem se verifica indiciado no presente caso, nem sequer existem factos concretos na Acusação que o possam indiciar.
75º
Quanto às fases do crime de branqueamento, os depósitos, caso fossem relevantes, poderiam ser enquadrados quer na fase de colocação, quer na fase de circulação, dependendo da perspetiva, mas nunca na fase de integração, por não constituírem investimento diferente do depósito nas contas da sociedade pré-existente.
76º
Por último, cabe trazer à colação o Acórdão do STJ de 13/10/2011, proferido no Processo nº 141/06.0JALRA.C1.S1, em que se refere:
“I - O objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o themadecidendum”,in,www.gde.mj.pt,sombreadoesublinhadonossos,acessívelem:http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4c71e1e1b5e0fb9e 80257937002c92c1?OpenDocument
77º
Ora, por tudo o acima exposto e tendo em conta a prova que consta dos autos, não existe qualquer probabilidade razoável de vir a ser aplicada uma pena, aliás resulta antes uma probabilidade forte, fundada e séria de vir a ser absolvido.
78º
Assim, não deverá ser sujeito a julgamento pelos factos de que vem acusado, sendo proferido despacho de não pronúncia, o que se requer a V. Exa.
Nos termos expendidos, e nos melhores de direito, com o douto suprimento de V. Exa., requer-se que depois de recebido o presente requerimento, seja proferido Despacho de Não Pronúncia, relativamente ao arguido identificado na parte inicial, com todas as consequências legais daí advindas.
III.2. A decisão recorrida que incide sobre o requerimento de abertura de instrução do arguido que antecede, tem o seguinte teor (transcrição):
Do requerimento de abertura de instrução
I. Na sequência da acusação pública contra si deduzida, vem o arguido AA, sob a ref. 41523104, de ........2025 (fls. 5322 e ss.), requerer a abertura de instrução nos presentes autos, peticionando a prolação de despacho de não pronúncia.
II. Importa, assim, analisar se o requerimento de abertura de instrução obedece aos requisitos exigidos pelo artigo 287º do Código de Processo Penal.
Estatui o nº 2 do citado artigo 287º que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar.
Nos presentes autos, foi deduzida acusação pública contra, entre outros, o arguido AA -, sendo-lhes imputada a prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º-A, nºs 1, al. j), nºs 3, 5 e 8 do Código Penal, com referência ao art.º 4º, nº 1, al. f) da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto – por factos reportados ao período de ........2017 a ........2017.
No requerimento de abertura de instrução, sustenta o arguido, quanto à aplicação da lei penal substantiva (fls. 5324-vº e ss.), que é aplicável em bloco o art.º 368º A do Código Penal, na redação da Lei 59/2007, de 4 de setembro, aos factos praticados até ... de ... de 2017, e sendo aplicável em bloco o art.º 368º-A, na redação da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, aos factos praticados posteriormente, e não sendo aplicáveis os nºs 5 e 8 do art.º 368º-A, na sua redação atual. De acordo com o disposto no artigo 2º, nº 1 do Código Penal, as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
Acrescentando o nº 4 do mesmo normativo que “Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente.
Considerando que os factos pelos quais o arguido se mostra incurso são puníveis à luz da(s) lei(s) antiga(s) e da lei nova, a apreciação e aplicação da lei que em concreto seja mais favorável, resultante da sucessão de leis penais, é necessariamente realizada na fase de julgamento, e cuja ponderação é efetuada em sentença (verificando-se ser tipificado por todas as leis, apreciar o conjunto de normas aplicáveis aos institutos jurídicos criados pela lei penal, quais as penas cominadas e, a final e em concreto, qual o regime mais favorável ao agente do crime) - e não em sede de instrução. Sendo legalmente inadmissível a prática processual de atos inúteis, é ilícito a realização de uma instrução, onde não poderá ser decidido qual o regime que concretamente se mostra mais favorável ao agente, à luz do artigo 2º, nº 4 do Código Penal, e que, nessa medida, conduziria à sua pronúncia com o enquadramento jurídico pelo qual (já) se mostra incurso – cfr. artigo 130º do Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.06) ex vi do artigo 4º do Código de Processo Penal.
No requerimento de abertura de instrução, é manifestada e em traços genéricos a discordância com a acusação deduzida, sendo alegada a “inexistência de indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena” (fls. 5327), concluindo que “tendo em conta a prova que consta dos autos, não existe qualquer probabilidade razoável de vir a ser aplicada uma pena, aliás resulta antes uma probabilidade forte, fundada e séria de vir a ser absolvido” (fls. 5331).
O arguido não apresenta, em concreto, argumentos críticos, de facto, que contrariem os fundamentos subjacentes à decisão de acusar, limitando-se, na sua essência e em termos gerais, a sustentar a inexistência de indícios suficientes dos factos pelos quais se mostra incurso.
Não é impugnado pelo arguido o depósito dos cheques nas suas contas bancárias (cfr. artigos 51º 53º do requerimento de abertura de instrução – fls. 5319/5329-vº) – bem pelo contrário -, no entanto, refere que na acusação não se encontram quaisquer factos instrumentais de onde possa vir a decorrer a prova do propósito, a que alude no seu artigo 57º do requerimento de abertura de instrução - ou seja, que “o agente tem de atuar com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens em causa”, ou “com o fim de evitar que o autor ou participante das infrações subjacentes seja criminalmente perseguido (ou submetido a uma reação criminal)” (fls. 5329-vº).
3 Tal propósito (dolo específico) mostra-se concretamente descrito na peça acusatória, entre o mais, nos artigos 267º, 268º, 407º e 408º.
O que o arguido requerente põe em causa é a eventual (falta de) “prova” de tal imputação.
Contudo, não há alusão às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública, nomeadamente, o que foi desatendido, na fase processual de inquérito e que, por esse motivo, culminou na dedução de acusação, que meios de prova não foram corretamente valorados, que diligências de prova deveriam ter sido e não foram realizadas, etc.
A defesa do arguido, mediante apresentação de peça processual, que assente na alegação genérica de falta de prova ou na mera negação dos factos é legalmente admissível para efeitos de contestação, nos termos do artigo 311º-B do Código de Processo Penal, que não está sujeita a formalidades especiais (nº 2 do citado artigo 311º-B) e onde não são exigidas as especificações contempladas no mencionado artigo 287º, nº 2, 2ª parte.
Contrariamente, o exercício de defesa naqueles moldes não respeita as exigências, de substância, previstas neste artigo 287º, nº 2 e que fazem depender a admissibilidade do requerimento de abertura de instrução.
Ora, na fase de instrução, não cabe ao tribunal fazer a concatenação e valoração de toda a prova carreada para os autos, nem indicar ao arguido os específicos meios de prova que sustentam cada facto imputado, mormente, quando tal não foi concreta e especificadamente objeto de discórdia pelo requerente.
Na instrução, não compete ao juiz conhecer todos os factos relacionados com o caso em discussão, teremos que dizer que, nesta fase, a atividade do juiz não abrange todos os factos do caso, não abrange sequer todos os factos constantes da acusação.
Ao juiz compete, apenas, conhecer os factos impugnados, ou seja, os factos que, dentre os constantes da acusação ou do despacho de arquivamento, mereçam solução discordante por parte do requerente. É este articulado que, ao estabelecer o objeto da instrução, determina o âmbito dos poderes de conhecimento e decisão do juiz.
Assim os factos a comprovar, na instrução, serão apenas os indicados pelo requerente (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.12.2004, processo 0442431, disponível in www.dgsi.pt). A liberdade, por parte do juiz de instrução, da prática dos atos necessários à recolha de indícios não é uma liberdade ilimitada, porque depende do objeto da acusação ou do requerimento de abertura de instrução, no sentido de que os atos a realizar nesta fase estão intimamente ligados com os factos alegados pelo requerente e visam, necessariamente, a comprovação/infirmação do objetivo pretendido. Esta limitação é uma decorrência direta do princípio da vinculação temática.
O requerimento para abertura de instrução, apesar de não estar sujeito a formalidades especiais, tem que definir o thema a submeter à comprovação judicial: não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, não o podendo extravasar – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.03.2007, processo nº 06P4688, e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.07.2000, processo nº 99100659, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Quando a intenção da instrução é infirmar a acusação formulada, também os factos impugnados devem estar devidamente identificados porque é esta identificação que permitirá o exercício pleno do contraditório e balizará o âmbito do conhecimento do juiz: só os factos impugnados estarão sob escrutínio, só eles serão avaliados, apenas sobre eles incidirão as diligências a realizar e apenas sobre eles se pronunciará a decisão instrutória – cfr. artigo 288º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Conforme se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.05.2021, proc. 471/19.1T9LNH-A.L1-5, disponível in www.dgsi.pt, cujo entendimento sufragamos: “A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar. Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc. Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe). - Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu. - A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido. A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais. - Mas, o objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.º 2 do artigo 287º com o n.º 4 do artigo 288º, ambos do CPP. - Logo, um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada e, da mesma forma, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de uma versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais”.
Perante o que ficou exposto, não respeitando o requerimento de abertura de instrução apresentado as exigências de substância consagradas no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, onde não são identificadas as concretas razões de discordância relativamente à opção de acusar, sem qualquer análise crítica fundada no inquérito, e nos termos supra referidos, pelo que dada a ausência de objeto da instrução definido, nada existe a submeter à comprovação judicial, não sendo possível ser desencadeado, nesta fase, um controle judicial sobre a opção tomada de acusar.
Por ser legalmente inadmissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento (cfr., por maioria de razão e igualdade, o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2005, publicado no DR, Série I-A, de 04.11.2005), e por se concluir, pelo que ficou dito, que as aludidas deficiências integram um caso de inadmissibilidade legal da instrução, previsto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, impõe-se a rejeição da requerida abertura de instrução.
III. Face ao exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução do arguido AA por inadmissibilidade da abertura da instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal..(fim de transcrição)
IV. FUNDAMENTOS DO RECURSO E RESPECTIVA APRECIAÇÃO.
Apreciemos, então, a questão a decidir:
IV.1.Da rejeição indevida do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, em violação do disposto nos art.ºs 287º, nºs. 2 e 3 do CPP e 32.º, da CRP.
Em causa está o despacho de rejeição de abertura de instrução que é vestibular da fase processual facultativa, a instrução.
Considerando o disposto no n.º3 do art.º 287.º, do CPP“O requerimento [para abertura de instrução] só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Assim, a possibilidade conferida ao arguido depende da verificação cumulativa daqueles três pressupostos: tempestividade, competência do juiz e admissibilidade legal da instrução, sob pena de rejeição.
Estes, porém, são indispensáveis à legitimação da intervenção judicial prévia à fase de julgamento, no quadro constitucional da autonomia do Ministério Público e da sua titularidade do exercício da ação penal (art.º 219º, nº2 da Constituição da República Portuguesa), que se projeta sobre a estrutura basicamente acusatória (art.º 32º, nº5 da Constituição da República Portuguesa), embora integrado por um princípio de investigação, do processo penal.
Primeiro pressuposto: No que respeita à tempestividade, a consagração constitucional do Ministério Público como magistratura autónoma e titular da acção penal eliminou os termos do problema que se prendia com a ideia de que as decisões do Ministério Público, na fase de instrução preparatória, tinham carácter administrativo e, portanto, não sendo decisões jurisdicionais, eram insuscetíveis de transitarem em julgado.
Daí que, para o nosso caso, o requerimento de abertura de instrução deva ser apresentado no prazo previsto no artigo 287º, nº1, (20 dias a contar da notificação do despacho de acusação ou de arquivamento).
Segundo pressuposto: A competência do juiz enquanto requisito para a abertura da instrução determina que requerimento para a abertura da instrução, conquanto dever ser entregue nos serviços do Ministério Público, deve ser dirigido ao juiz de instrução competente em função do território, da matéria, e da hierarquia, aplicando-se as mesmas regras de qualquer outro Juiz (art.ºs 17.º, 19.º a 23.º, 32.º e 33.º, do CPP). O controlo jurisdicional do despacho de arquivamento proferido no âmbito dos poderes autónomos do Ministério Público é levado a cabo por um juiz de instrução a quem a lei atribui competência em razão da hierarquia, da matéria e do território.
Terceiro pressuposto: no que respeita à admissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução, pressuposto que está em causa nos autos:
A inadmissibilidade legal da instrução pode assentar em múltiplas situações, nomeadamente:
-na falta de legitimidade para tal do requerente;
-na dedução contra desconhecidos;
-na forma de processo não o admitir (formas de processo especiais);
-na existência de nulidades no inquérito que impeçam a tramitação subsequente;
-na deficiente elaboração do requerimento de abertura de instrução.
Neste último caso, (fundamento invocado no caso pelo Juiz de Instrução para rejeitar o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo arguido) tal ocorre quando o RAI não respeita as exigências legais, nomeadamente quando não indica os factos típicos objectivos e subjectivos ou as disposições legais que considera terem sido violadas, ou indica factos que não são crime ou que não foram objecto de inquérito, ou quando não cumprem o estatuído no n.º3 do art.º 283.º, do CPP.
É um facto que a fase de inquérito é encerrada por decisão final do Ministério Público que o arquiva ou deduz acusação (art.º 276º, nº1).
A fase de instrução, facultativa, é da competência de um juiz de instrução (art. 288º, nº1). A intervenção judicial prévia ao julgamento tem respaldo constitucional nos termos do nº4 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa nos seguintes termos: “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática de atos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
Esta intervenção judicial poderia, no entanto, ser vista como violadora do princípio enformador da estrutura acusatória do processo penal se a fase de instrução consistisse num novo inquérito, agora dirigido por um juiz.
Foi, portanto, necessário conformar constitucionalmente a intervenção judicial, nesta fase de instrução, restringindo-a à “comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” (art.º 286.º, do CPP). (sublinhado nosso)
Comentando o preceito, diz Eduardo Maia Costa no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2016, 2.ª edição revista, págs. 957/8:
“A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.
A instrução visa, pois, a comprovação das seguintes decisões:
a) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;b) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido;
c) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.” (sublinhado nosso)
A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre qualquer dessas decisões por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento.
Citando Germano Marques da Silva “A instrução visa a comprovar a acusação em ordem à decisão sobre a submissão da causa a julgamento, nos termos da acusação ou de uma das acusações formuladas. Não se trata de um recurso, desde logo porque o objecto da instrução não é uma decisão judicial, mas um acto do MP ou do assistente; corresponde antes à ideia clássica do juízo de acusação para dare actionem.
Comprovar significa confirmar, reconhecer como bom, concorrer com outras provas para demonstrar. A instrução destina-se a precisamente obter o reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação, a confirmar ou não a acusação deduzida, para o que o juiz tem o poder-dever de a esclarecer, investigando-a autonomamente” Curso de Processo Penal Vol. III, pág. 140.
O requerimento para abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, não estando sujeito a formalidades especiais, deve, porém, conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas. Esse requerimento define o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação, fixando a vinculação factual da instrução.
Também Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, 2022, Almedina, pág. 648, assim o defende:
“Não está sujeito a formalidades especiais(…), não pode deixar de ter em consideração, no mínimo, o seguinte:
a)deve indicar sempre obrigatoriamente as razões de facto e de direito, que sustentam a sua discordância relativamente à acusação ou arquivamento.
b) deve, quando o entender necessário, indicar os atos de instrução que entende deverem ser levados a cabo pelo Juiz e os factos que pretende provar com tais actos.
c)deve, quando o entender necessário, indicar os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que pretende provar com tais meios de prova(…)”.
Ora, o Tribunal Constitucional nomeadamente nos Acórdãos TC 54/2000, 388/99 e 46/2019 tem dito repetidamente que “não podem eliminar-se as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente” e, ainda, que o art. 287º, nº2 CPP “estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação. A esta exigência acrescerá, apenas caso o requerente o pretenda, a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz promova, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, espera provar”.
Gomes Canotilho/Vital Moreira, In Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, notas ao art. 32º defende que o direito à instrução incorporar as garantias de defesa do arguido em processo penal.
No Acórdão do TRL de 11-05-2023, proferido no processo nº 6/22.9GDCTX-C.L1-9 (in www.dgsi.pt) foi sufragado na mesma linha o seguinte entendimento.
“Diz a lei que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Comprovar provém do latim comprobare “confirmar”, e significa demonstrar alguma coisa, apresentando provas, certificados … para o efeito, verificar ou demonstrar a veracidade de um facto a partir de evidências – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Vol I, pág. 895.
Segundo o dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, da Porto Editora, comprovar significa confirmar, provar.
Assim, desde logo, a letra da lei inculca que a instrução tem por finalidade a verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e/ou mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual. Portanto, o pedido que é dirigido ao juiz de instrução é o de apreciar o que existe nos autos e/ou a estes é aportado e pronunciar-se sobre o seu acerto.
Nestes termos, resulta da lei que a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada.
E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema.
E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”
Os factos que o arguido quer ver tratados na instrução serão, ou os concretamente presentes na acusação, ou os que, daí ausentes, de todo modo neutralizam, o efeito jurídico-penal dos factos da acusação. O arguido contrariará então directamente a acusação, ou carreará factos que retiram aos da acusação a repercussão penal pretendida pelo Ministério Público.
Sempre que for possível extrair do requerimento, uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estará preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido.
A fase de instrução permite que a atividade levada a cabo pelo Ministério Público, durante a fase do inquérito, possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo um direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 5 da CRP) neste sentido também, entre outros, para além do referido TRL de 11-05-2023, proferido no processo nº 6/22.9GDCTX-C.L1-9, vai o Ac. da Relação de Évora de 12/7/2023, Proc. nº 415/22.3TNR-C.E1, in www.dgsi.pt)
Por seu turno, estatui o art.º 287.º, n.º 2 do CPP, referindo-se ao requerimento de abertura de instrução, que o mesmo deve conter “em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar”.
Sabemos que o fundamento mais alargado de rejeição é o da inadmissibilidade legal, nos termos em que se mostra previsto no n.º 3 do art.º 287.º do CPP, sendo inquestionável que o mesmo será de aplicar nos casos em que o requerente não dê cumprimento àquele n.º 2.
No entanto, tal não poderá ser assumido em termos absolutos, mas antes no sentido de que efetivamente impeça a almejada comprovação judicial com vista à introdução, ou não, da causa a julgamento, por ser essa a finalidade que norteia a instrução - art.º 286.º, n. º 1 do CPP.
Em causa está a abertura da instrução a requerimento do arguido, logo, balizada pelo estatuído na alínea a) do n.º 1 do art.º 287.º do CPP, de onde decorre que aquele sujeito processual só terá legitimidade para requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público (ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular), tiver deduzido acusação.
Com efeito, a instrução não é um mero prolongamento do inquérito nem um espaço para debates abstractos, mas um incidente processual autónomo e estruturado, com o propósito exclusivo de apreciar, à luz dos elementos de prova relevantes, se existem indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento. Para que esta finalidade se concretize, é imperioso que o requerimento de abertura de instrução delimite, de forma clara e objectiva, os factos que o requerente pretende ver provados ou infirmados, bem como as diligências de instrução que considera pertinentes.
Ou seja, apesar da informalidade prevista no artigo 287.º, n.º 2, do CPP, o requerimento deve conter elementos mínimos que permitam ao juiz delimitar o objecto da instrução e aferir da sua admissibilidade legal.
Ademais, a dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” de prática de crime e da sua imputação ao(s) acusado(s).
Estabelece o artigo 283.º, n.º 2, do CPP:
“Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Conforme ensinava Prof. FIGUEIREDO DIAS, ainda na vigência do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do conceito normativo indícios suficientes, considerar que «… os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.». Cfr. “Direito Processual Penal”, 1.º Vol. Coimbra Editora, 1974, pág. 133.
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 439/02, após considerar que o princípio in dubio pro reo não deve ser excluído da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia, decidiu «julgar inconstitucionais os artigos 286.º, n.º 1, 298.º, e 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil.». In, www.tribunalconstitucional.pt.
Na posição maioritária acolhida na jurisprudência, o juízo sobre a suficiência dos indícios deverá passar pela probabilidade dominante/elevada, a qual se traduz num juízo de prognose não só da condenação ser mais provável que a absolvição, mas ainda que, em julgamento, será ultrapassada a barreira do in dubio pro reo.
O requerimento de abertura de instrução do arguido, só pode acontecer, obviamente, havendo uma acusação contra ele e visando ele impugná-la. O requerimento visa simplesmente pôr em causa a acusação que lhe é imputada, com o definitivo fundamento de que os indícios recolhidos não são suficientes para ser acusado, ou com fundamento em questões de natureza eminentemente ou tendencialmente processual, não estando esse requerimento submetido ao mesmo nível de exigência formal que o requerimento do assistente. (Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª Edição, 2022, Almedina e, entre outros, os Acórdãos de 13 de julho de 2020 do TRG proc. 845/17.2T9BGC.G1,
Citando Paulo Pinto de Albuquerque:
“O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes:
a. a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança;
b. as razões de direito de discordância relativamente à acusação.
c.a indicação dos atos de instrução que o recorrente pretende que o juiz leve a cabo sendo, por exemplo, admissível requerimento do arguido em que apenas se pede a realização de novo interrogatório judicial, mesmo que ele já tenha sido ouvido no inquérito, desde que o interrogatório se destine a fazer prova de factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou medida de segurança.
d.e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito. (in Comentário ao Código de Processo penal, pág. 208 ).
Não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no n.º2 do art.º 287.º, do CPP (Acórdão do TC n.º 46/2019).
À semelhança do que sucedia no direito anterior, a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova judiciária da acusação, mas também por razões puramente de direito material ou adjectivo, que a tornem inadmissível. Já não parece que possa ter lugar a requerimento do arguido quando apenas pretenda ilidir ou enfraquecer a prova indiciária ou preparar a defesa sem pretender, porém, a neutralização da acusação, pela sua rejeição na decisão instrutória ( Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Vol. III, pág. 131).
É certo que, como entendido no Acórdão da Relação de Lisboa de 20/05/2025, proc. 631/23.0PILRS-A.L1-5 (in www.dgsi.pt) “a instrução não é um mero prolongamento do inquérito nem um espaço para debates abstractos, mas um incidente processual autónomo e estruturado, com o propósito exclusivo de apreciar, à luz dos elementos de prova relevantes, se existem indícios suficientes para submeter o arguido a julgamento. Para que esta finalidade se concretize, é imperioso que o requerimento de abertura de instrução delimite, de forma clara e objectiva, os factos que o requerente pretende ver provados ou infirmados, bem como as diligências de instrução que considera pertinentes. Ou seja, apesar da informalidade prevista no artigo 287.º, n.º 2, do CPP, o requerimento deve conter elementos mínimos que permitam ao juiz delimitar o objecto da instrução e aferir da sua admissibilidade legal. A omissão de indicação clara e substancial dos factos a provar ou das diligências pretendidas compromete a funcionalidade e a legalidade da instrução, legitimando a rejeição liminar do requerimento.”
Acórdão, em que foi sumariado, parcialmente, o seguinte:
“1 - A fase de instrução permite que a atividade levada a cabo pelo Ministério Público, durante a fase do inquérito, possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo um direito de defesa constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 5 da CRP).
2 – O fundamento mais alargado de rejeição do requerimento de abertura de instrução (RAI) é o da inadmissibilidade legal, nos termos em que se mostra previsto no n.º 3 do art.º 287.º do CPP, sendo inquestionável que o mesmo será de aplicar nos casos em que o requerente não dê cumprimento ao n.º 2 da disposição legal citada (o mesmo deve conter “em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar”).
3 - No entanto, tal não poderá ser assumido em termos absolutos, mas antes no sentido de que efetivamente impeça a almejada comprovação judicial com vista à introdução, ou não, da causa a julgamento, por ser essa a finalidade que norteia a instrução - art.º 286.º, n.º 1 do CPP.(…)”
Revisitando o caso dos autos, denotamos que requerimento que o arguido apresentou contém uma manifesta discordância com a decisão do Ministério Público de o acusar e de requerer o seu julgamento.
O recorrente pugna pela abertura da instrução, uma vez que considera que a factualidade que lhe é imputada não é susceptível de integrar a disposição legal do crime em questão, não devendo por isso o feito ser introduzido em juízo.
O arguido, apresenta, a nosso ver, com suficiência as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, o que é evidenciado, nomeadamente, nas seguintes passagens do RAI:
A estepropósito, cabe sublinhar que não constada Acusação quem emitiu tais cheques, de que conta foram emitidos, em que datas foram emitidos, quais os seus valores, quando foram depositados, nem consta sequer, a conta em que alegadamente foram depositados.(art.º 11.º)
A este respeito, perscrutando a Acusação, o único facto imputado que concerne à introdução na economia de tais quantias, reside no mero depósito dos cheques em contas abertas junto de instituições bancárias nacionais.(art.º 15.º)
Agiu com o propósito concretizado de obter proveitos económicos da colaboração prestada ao arguido CC de montante não concretamente apurado (vide, ponto 410 da Acusação).(art.º 16.º)
A este propósito cabe referir que não resulta da Acusação qualquer facto de onde possa vir a resultar a concretização do “propósito concretizado”, tanto mais, que não foi sequer concretamente apurado. (art.º 17.º)
Inexistem na Acusação quaisquer factos instrumentais de onde possa vir a decorrer a prova de tais propósitos. Propósitos que são subjetivos, constituindo intenções do sujeito, que na ausência de factos exteriores que os possam indiciar, só existem na sua vontade e que só ele conhece. (art.º 58.º)
Ora, inexistem na Acusação factos concretos de onde se possa inferir os propósitos que consubstanciam o dolo específico exigido pelo crime de branqueamento tipificado no nº 2 do art.º 368-A do CP, pelo que, o tipo subjetivo não se encontra preenchido. (art.º 66.º)
Da análise da Acusação, resulta que os únicos factos concretos que são imputados, respeitam ao depósito em contas abertas junto de instituições bancárias, das quantias nela referidas. (art.º 51.º)
Estes são os únicos factos concretos imputados. Tudo o mais, são suposições, opiniões, convicções pessoais e conclusões que carecem, em absoluto, de fundamento fáctico. (art.º 52.º)
Será que alguém pode ser condenado por crime de branqueamento somente por depositar cheques nas suas contas? (art.º 53.º)
Razão pela qual, desde logo, inexistem indícios suficientes, porquanto, segundo um juízo de probabilidade e pela apreciação de toda a prova constante dos autos, não resulta uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada uma pena, impondo-se que seja proferido despacho de não pronúncia. (art.º 55.º)
Ora, por tudo o acima exposto e tendo em conta a prova que consta dos autos, não existe qualquer probabilidade razoável de vir a ser aplicada uma pena, aliás resulta antes uma probabilidade forte, fundada e séria de vir a ser absolvido. (art.º 77.º).
Consequentemente, para além da questão da aplicação das leis no tempo, que, de facto o momento mais apropriado será o da sentença, ao contrário do que é afirmado pela decisão recorrida “que não são identificadas as concretas razões de discordância relativamente à opção de acusar, sem qualquer análise crítica fundada no inquérito”, analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos pelo arguido, e independentemente da decisão instrutória de pronúncia ou não que venha a ser proferida, certo é que vemos nele não apenas as razões de facto, mas também as razões direito pelas quais o recorrente discorda da acusação, não se limitando a uma a mera alegação genérica e negação dos factos, como denotam os segmentos supra destacados.
Sendo essa a leitura que, com o devido respeito, fazemos da peça processual (RAI)apresentada pelo recorrente, e, tendo por referência aquilo que é estatuído no n. º 2 do art.º 287.º do CPP, nada impede, na nossa perspetiva, a realização da comprovação judicial da decisão de deduzir acusação do arguido pelo Ministério Público.
Pelas razões apontadas, impõe-se a admissão do RAI do arguido e consequente abertura da instrução.
Pelo exposto, o recurso há-de ser julgado provido.
V – Dispositivo.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
-Dar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando a decisão recorrida de rejeição do requerimento de abertura de instrução, que deverá ser substituída por outra que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos.
*
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 06/11/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Marisa Arnêdo
Ivo Nelson Caires B. Rosa