Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4197/16.0T8LSB.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: TRIBUNAIS DE COMÉRCIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
AÇÕES DE REGISTO
DIREITOS SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-A simples sujeição de determinada ação judicial a registo comercial não é fator de atribuição de competência material para o seu conhecimento aos tribunais de comércio.
II-Definindo-se os direitos sociais como todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à proteção dos seus interesses sociais, julga-se que a ação em que a parte autora pretende ver reconhecida a sua qualidade de sócia e de gerente de determinada sociedade, é relativa ao exercício de direitos sociais.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


Carla, contribuinte fiscal (….), residente em (…), intentou a presente ação declarativa, com processo comum contra  Bruno, contribuinte fiscal (…) residente na (…), e outros

Pediu que:

a)Fosse declarado nulo do contrato de cessão de quotas celebrado entre a Autora e o 1.º Réu e, consequentemente, declarado nulo o respetivo registo, ordenando-se o cancelamento do registo apresentado pela 3.ª Ré, por depósito em 17.12.2015, sob a designação Dep. 4350/20151217;
b)Fosse declarado nulo o contrato de cessão de quota celebrado entre o 1.º e 2.ª Réus e, consequentemente declarado nulo o respetivo registo, ordenando-se o seu cancelamento apresentado pela 3.ª Ré, por depósito em 18.12.2015, sob a designação Dep. 4255/20151218;
c)Por via da nulidade das cessões de quota e respetivos registos, fosse declarado nulo o registo da destituição da autora Carla da gerência, apresentado pela 3.ª Ré, sob a designação Ap. 31/20160104, bem como a nomeação do Requerido Bruno como gerente, ordenando-se o cancelamento do seu registo apresentado pela 3.ª Ré sob a designação Ap. 32/20160104, devendo consequentemente a gerência ser restituída à Autora, Carla;
d)Pediu, subsidiariamente, que fosse declarada a anulabilidade da cessão de quotas entre a A. e o 1º R..

Para tanto, alegou, em síntese:

A autora e o réu Bruno são casados desde 2003, no regime de comunhão de adquiridos, encontrando-se em processo de divórcio.
Em 14-01-2009, a autora constituiu a sociedade comercial unipessoal por quotas, ora terceira ré, sendo, desde então, a sua única sócia e gerente.
Outorgando em representação da ora autora, no uso de uma procuração irrevogável, que a autora não se recorda de ter emitido, o réu Bruno transmitiu para si próprio a quota da autora na sociedade, pelo preço de um euro.
Posteriormente, continuando a outorgar por si e em representação da ora autora, o mesmo réu cedeu a essa quota à 3.ª Ré, pelo mesmo preço de um euro.
E, no seguimento, a terceira ré deliberou destituir a ora autora da sua gerência, e nomear gerente o réu Bruno Miguel.
A ação foi intentada na Secção de comércio da comarca de Lisboa, defendendo a autora, que, estando a mesma sujeita a registo comercial, cabe na previsão do art. 128.º, n.º 1, al. h) da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Os réus presentaram contestação, tendo alegado, em síntese:

A citação da terceira ré é nula, pelo que deverá ser repetida.

A primeira cessão foi outorgada com base em procuração irrevogável outorgada pela aqui autora;
O valor do negócio não foi de um euro, antes envolveu a assunção de passivo da sociedade estimado em mais de € 600.000,00.

Houve resposta da autora.

No seguimento, foi proferida decisão a julgar verificada a exceção dilatória de incompetência material da Secção de comércio para conhecer da ação, e a absolver os réus da instância.

Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

1.-A Recorrente propôs na 1.ª Secção de Comércio da Comarca de Lisboa acção declarativa contra os Recorridos, onde pediu:

a)Declaração de nulidade do contrato de cessão de quotas celebrado entre a Recorrente e o 1.º Recorrido sendo consequentemente declarado nulo o registo comercial do mesmo, ordenando-se o cancelamento apresentado pela 3.ª Recorrida, por depósito de 17.12.2015, sob a designação Dep. 4350/20151217;
b)Declaração de nulidade do contrato de cessão de quotas celebrado entre o 1.º e 2.º Recorridos sendo consequentemente declarado nulo o registo comercial do mesmo, ordenando-se o cancelamento apresentado pela 3.ª Recorrida, por depósito de 18.12.2015, sob a designação Dep. 4255/20151218;
c)Por via da nulidade das cessões de quota e respectivos registos, a declaração de nulidade do registo da destituição da ora Recorrente da gerência, apresentado pela 3.ª recorrida, sob a designação Ap. 31/20160104, bem como da nomeação do Recorrido Bruno como gerente, ordenando-se o cancelamento do seu registo apresentado pela 3.ª Recorrida sob a designação Ap.32/20160104, devendo consequentemente a gerência ser restituída à ora Recorrente.

2.-O Tribunal a quo declarou-se, na decisão de que se recorre, materialmente incompetente, absolvendo os ora Recorridos da instância, fundamentando a sua decisão no facto de Recorrente pretender que sejam declarados nulos os contratos de cessão de quotas e consequentemente os seus registos, referindo que “Devendo a competência material do tribunal ser apreciada em função da pretensão formulada na presente acção é claro que a pretensão da autora é no sentido da declaração de nulidade ou anulação do contrato de cessão de quotas, sendo os cancelamentos dos registos consequência da procedência daquele pedido.”

3.-Decorre do art.º 128º n.º1, alínea h), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que compete às secções do comércio preparar e julgar as acções a que se refere o Código de Registo Comercial.

4.-Preceitua o art.º 9.º n.º 1, alínea b) do C.R. Comercial que estão sujeitas a registo “as acções que tenham como fim principal ou acessório, declarar, fazer reconhecer, constituir modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos nos art.º 3.º a 8.º” ( s.n.n.)

5.-E, por sua vez, o art.º 3.º, n.º1, al. c) do Código de Registo Comercial, preceitua que estão sujeitos a registo “a unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples.”

6.-Só podendo a nulidade de um acto de registo por depósito operar por força de uma decisão judicial que a declare e determine, necessariamente teria pois a ora Recorrente de intentar e pedir o que peticionou naquelas alíneas a) e b) do seu petitório – fosse declarada a nulidade dos referidos contratos de cessão de quotas que nas mesmas se identificam, e consequentemente declarado nulo o respectivo registo.

7.-Já que as alíneas c) e m) do nº.1, do art.º 3.º, do Código de Registo Comercial, impõem, respetivamente, o registo da transmissão de quotas e da destituição e nomeação de gerente;

8.-E o art.º 53.º- A, n.º 5, alínea c) , do C.R.C., impõe que os registos referidos no art.º 3.º, n.º1, alínea c) sejam efetuados por depósito, seja, por uma forma de registo que consiste no depósito de documentos e menção no registo a que corresponde, a notícia de que constam da pasta eletrónica da sociedade os documentos relativos àquele facto societário, não tendo o conservador, o poder de qualificar a conformidade legal dos documentos entregues para depósito.

9.-Só o registo por transcrição definitivo beneficia da presunção da verdade registal plasmada no art.º 11.º do C.R.C, pelo que o registo comercial tem, em regra efeito declarativo e, em consequência, a presunção legal dele decorrente é meramente iuris tantum, podendo ser ilidida mediante prova em contrário, o que a Recorrente pretende fazer com a presente ação.

10.-Terá pois deste modo forçosamente de se concluir que os pedidos formulados pela ora Recorrente sob a) e b) integram as supra referidas normas, como integradores da necessária finalidade acessória para efeitos do respectivo registo.

11.-Conforme decidiu o douto Acórdão do S.T.J., de 8.07.2003, Luís Fonseca, 03B1627, in www.stj.pt, a propósito da norma ínsita no anterior art.º 89.º, n.º 1, alínea g), da Lei 3/99 de 13 de Janeiro, com o mesmo conteúdo, “dispondo o art. 89º, nº 1, al. g) da Lei nº 3/99 de 13 de Janeiro, que compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções a que se refere o Código de Registo Comercial, o seu sentido, atenta a amplitude da norma, deve ser o de abranger todas as acções referenciadas no referido Código, nomeadamente aquelas que estão sujeitas a registo comercial nos termos das alíneas b) e f) do seu art. 9º.”

12.-Quanto ao pedido formulado em c), o mesmo subsume-se, também ao disposto no art.º 128.º, n.º1, alínea h), da Lei 62/2013, de 26 de Agosto, uma vez que não se pede a anulação da deliberação de novo gerente, mas outrossim a nulidade de tal registo, em consequência das nulidades dos contratos de cessão de quotas que permitiram ao novo sócio deliberar a nova gerência.

13.-A decisão recorrida viola assim o disposto no art.º 128.º n.º 1 alínea h), ex vi art.ºs 9.º, n.º 1, alínea b) e 3.º, n.º1 alínea c) do Código de Registo Comercial, ao considerar-se incompetente para julgar a presente lide.

14.-Devendo considerar-se a 1.ª Secção de Comércio de Lisboa competente para apreciar a acção proposta pela Recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre decidir.

Sendo o objeto dos recursos delimitado, em regra, pelas respetivas conclusões, e não se suscitando a apreciação de outras questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa no presente recurso saber se o tribunal recorrido é materialmente competente para conhecer da presente ação.

A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório que antecede, onde se deixou enunciado o núcleo da pretensão deduzida pela autora, definido pelo pedido e pela respetiva causa de pedir.

Sendo pacífico que a questão da competência material dos tribunais se afere em face da relação jurídica material controvertida, tal como a mesma se apresenta configurada pela parte autora.

Vejamos:

Para começar, acompanham-se as seguintes considerações sobre a questão de competência material feitas na decisão recorrida que, por comodidade, se transcrevem:

«Sendo os tribunais judiciais de 1ª instância, em regra, os tribunais de comarca, cuja área de competência é a circunscrição em que estão instalados, podem, todavia, existir tribunais com competência especializada, aos quais compete conhecer de matérias determinadas.
Nos termos do art.40º n.º 2 da Lei nº 62/2013 de 26.8 (Lei de Organização do Sistema Judiciário), a competência em razão da matéria define as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.
Estipula o art. 81º da mesma lei que os tribunais de comarca podem desdobrar-se em instâncias centrais e locais e naquelas, secções de competência especializada, entre as quais, de Comércio (al. f).
Segundo estatui o art. 128º, nº 1, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
a) os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) as acções de liquidação judicial de sociedades;
f) as acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) as acções de dissolução de sociedades gestores de participações sociais;
h) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial; e
i) as acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
(…)
Ora, em face do pedido, verificamos que ficam facilmente afastadas, por aqui não terem aplicação, as alíneas a), b), d), e), f), g) e i) deste normativo

Ou seja, a verificação da competência material dos tribunais de comércio para conhecerem da presente ação está limitada à previsão das alíneas:
c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais; e,
h) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
Com algumas dúvidas, também se acompanha a decisão recorrida na parte em que conclui que o simples facto de uma ação estar sujeita a registo comercial não constitui fundamento de atribuição de competência material aos tribunais de comércio, ao abrigo da al. h) acima transcrita.
A solução não é pacífica, como resulta do acórdão do STJ que vem invocado pela recorrente.

Mas, em sentido contrário e, salvo o devido respeito, com melhor fundamentação, pode ver-se o acórdão do mesmo tribunal de 12-02-2004, proferido no processo 04B188, disponível em www.dgsi.pt., onde se pode ler:
«A letra do segmento normativo compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções a que se refere o Código do Registo Comercial permite ao intérprete a consideração de que o mesmo abrange todas as mencionadas acções, independentemente do seu desiderato finalístico, incluindo todas aquelas a que se reporta o artigo 9º daquele Código.
Todavia, não pode deixar de se confrontar tal resultado derivado da interpretação meramente literal daquele normativo com os elementos extraliterais a que acima se aludiu.
Em primeiro lugar, a genérica menção da lei a acções previstas no Código do Registo Comercial não é conforme com o critério legal normal de determinação da competência especializada dos tribunais, certo que o respectivo referencial se reporta à matéria envolvente.
Em segundo lugar, a entender-se que o aludido segmento normativo abrange as acções que o artigo 9º e 80º, n.ºs 4 a 6, isto é, todas as sujeitas a registo, então, tal como foi salientado na sentença proferida na 1ª instância, quedava inútil a definição da competência por referência às diversas acções relativas a matérias determinadas a que aludem as várias alíneas do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Além disso, tal interpretação não se conformaria com a motivação expressa nos trabalhos preparatórios da lei que converteu os tribunais de recuperação da empresa e de falência em tribunais do comércio.
Ela é, com efeito, no sentido de não reatamento do modelo dos antigos tribunais de comércio, mas a de lhes atribuir competência em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade, designadamente as do contencioso das sociedades comerciais, da propriedade industrial, das acções e recursos previstos no Código de Registo Comercial, e os recursos das decisões em processos de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência.
Assim, a mencionada motivação aponta no sentido de que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais e das sociedades civis sob a forma comercial, a qual deve orientar o intérprete na determinação do sentido e alcance do segmento normativo em análise (Ac. do STJ, de 5.2.2002, CJ, Ano X, Tomo 1, pág. 68, e PAULA COSTA e SILVA, "Sobre a Competência dos Tribunais de Comércio", Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 62, 2002, págs. 210 a 215).
Confrontando o resultado da interpretação meramente literal com o aludido elemento sistemático e teológico, impõe-se a conclusão de que o legislador, ao expressar o normativo da alínea g) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, declarou mais do que pretendia.
Impõe-se, por isso, a interpretação restritiva do referido normativo em termos de exclusão de abrangência das normas que elencam as acções sujeitas a registo, cujo escopo nada tem a ver com a competência em razão da matéria dos tribunais de comércio.
6.
À luz das referidas conclusões de ordem jurídica, importa concluir que o normativo da alínea g) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais se reporta exclusivamente às chamadas acções de registo a que acima se fez referência

Acresce que, sendo a competência material dos tribunais delimitada em função da especialidade das matérias a apreciar, não faz sentido que, por exemplo, as ações de interdição de comerciante individual, ou do seu levantamento, também sujeitas a registo comercial, nos termos da al. a) do art. 9.º do respetivo Código, sejam julgadas nos tribunais do comércio.

Julga-se, pois, que a simples sujeição de determinada ação judicial a registo comercial não é fator de atribuição de competência material para o seu conhecimento aos tribunais de comércio.

Diversamente, não se acompanha a decisão recorrida quando conclui que a presente ação não é relativa ao exercício de direitos sociais, e não cabe na previsão da al. c) do art. 128.º da Lei nº 62/2013, de 26-08, (LOSJ).

De facto, definindo-se os direitos sociais como «todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à proteção dos seus interesses sociais», julga-se que a ação em que a parte autora pretende ver reconhecida a sua qualidade de sócia e de gerente de determinada sociedade, é relativa ao exercício de direitos sociais.

E, assim, a presente ação insere-se na competência material dos tribunais do comércio, por força do preceituado na al. c) do art. 128.º da LOSJ.

Procedendo o recurso.

Termos em que acordam em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e declarando a competência material do tribunal recorrido para conhecer da presente ação.
Custas pela parte vencida a final.



Lisboa, 09-02-2017



(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)
Decisão Texto Integral: