Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7351/17.3T8LSB.L1–6
Relator: ANABELA CALAFATE
Descritores: CIRE
TRIBUNAL DE INSTÂNCIA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
APREENSÃO DE BENS
MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - Como a acção em que é pedido o reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre veículos foi instaurada antes da sua apreensão para a ré massa insolvente, não tem aplicação o disposto nos art. 146º nº 2 e 148º do CIRE, carecendo de fundamento a decisão de julgar materialmente competente o tribunal de instância local cível.
II - Mas, visto ter esta acção por finalidade óbvia ficar a autora legitimada para obter o cancelamento dos registos a favor da devedora e da massa insolvente desta, é manifesto o interesse na apensação ao processo de insolvência, como havia requerido o administrador da massa insolvente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
A [ …, SA ], instaurou acção declarativa comum nos juízos de instância local cível da comarca de Lisboa contra B e Massa Insolvente desta, pedindo que seja reconhecido que a autora é proprietária dos veículos de matrículas ..-IZ-.., ..-NA-.. e ..-NA-19 para cancelamento do registo de aquisição pela 1ª ré.
Alegou, em síntese:
- vendeu os veículos à 1ª ré através de contrato sujeito a condição resolutiva pois foi registada a reserva de propriedade a favor da autora;
- a 1ª ré não procedeu ao pagamento dos preços, pelo que a autora procedeu à resolução dos contratos de compra e venda;
- verificou-se assim a condição resolutiva, pelo que a autora é a única proprietária dos veículos;
- em 22/02/2017 o administrador da insolvência deslocou-se às instalações da autora com vista à apreensão dos veículos para a massa insolvente, por alegadamente estarem registados em nome da 1ª ré;
- é pois, a ameaça de apreensão que motiva a necessidade do reconhecimento judicial do direito de propriedade da autora.
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Em 08/05/2018 veio o administrador da insolvência dizer que teve conhecimento da instauração desta acção, pedindo a sua apensação aos autos de insolvência ao abrigo do disposto nos art. 146º e 148º do CIRE, em virtude de os veículos serem da titularidade da insolvente.
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Notificada a autora para se pronunciar sobre eventual verificação de excepção dilatória de incompetência do tribunal, apresentou resposta em 03/07/2017, concluindo pela improcedência da excepção, mas para o caso de ser julgado incompetente o tribunal, requereu a remessa do processo para o tribunal julgado competente.
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Em 31/08/2017 veio o administrador da insolvência dizer que os veículos estão registados em nome da insolvente, que a autora os detém abusivamente e que já foi ultrapassado o prazo previsto no art. 146º nº 1 al b) do CIRE para a apensação desta acção à da insolvência.
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Em 12/10/2017 foi proferida decisão que julgou materialmente incompetente o tribunal de instância local cível e absolveu as rés da instância, por se ter entendido que a competência cabe ao tribunal do comércio onde corre o processo de insolvência, não se tendo pronunciado sobre a requerida remessa dos autos para apensação aos da insolvência.
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Inconformada, apelou a autora, terminando a alegação com as seguintes conclusões:
A) A competência dos tribunais é aferida por referência à relação material controvertida, tal como descrita na petição inicial;
B) Nos termos da petição apresentada, a presente acção destina-se a reconhecer a propriedade da autora sobre os veículos de matrículas ..-IZ-.., ..-NA-.. e ..-NA-19.
C) O tribunal competente para julgar uma acção de simples apreciação com vista ao reconhecimento da propriedade sobre os veículos dos autos é o tribunal de competência genérica (residual), nos termos do disposto nos art.sº 64 e 65.º do CPC e art.º 80.º da LOSJ, a saber, o Juízo Local Cível de Lisboa.
D) Os veículos dos autos nunca foram apreendidos pelo Administrador de
Insolvência a favor da massa insolvente da primeira ré;
E) O pedido de registo da apreensão dos veículos automóveis dos autos foi realizado em data posterior à da interposição da acção, não se encontrando comprovado nos mesmos a efectiva inscrição registral da apreensão pedida pelo Administrador de Insolvência.
F) Não estando os veículos apreendidos pela massa, a autora recorrente não podia pretender condenar a massa insolvente ré a separá-los desta última (e muito menos a restituí-los, uma vez que se encontravam em sua posse).
G) A presente acção não foi – nem podia ser – proposta nos termos e com os fundamentos da acção de separação e restituição de bens prevista no CIRE, pelo que a competência para a apreciar não pode aferir-se ficcionando os termos de uma acção que nunca foi proposta – pelo que a sentença a quo aplica indevidamente o disposto no art.º 146 e 148.º do CIRE.
H) Nessa conformidade, a presente acção deve ser apreciada e decidida pelo tribunal materialmente competente para o efeito: o tribunal a quo.
I) Tendo a defesa da segunda ré sido realizada sem a representação (obrigatória) de advogado (art.º 40.º/1/a) do CPC e art.º 55, n.º 2 do CIRE), deverá ser desconsiderada a matéria trazida aos autos pelo Administrador para todos os efeitos legais, desentranhando-se os requerimentos por este indevidamente apresentados.
J) A sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 64.º e 65.º do CPC, art.ºs 80.º e 128.º da LOSJ, art.º 146.º do CIRE, 40.º/1/a) do CPC e 55.º/2 do CIRE.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a competência material do tribunal a quo para a apreciação da presente causa, prosseguindo a acção os seus regulares termos, com a condenação das rés no pedido, assim se fazendo a costumada justiça.
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A massa insolvente contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da apelante, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões decidir são:
- se devem ser desentranhados os requerimentos juntos pelo administrador da insolvência
- qual o tribunal materialmente competente
- se esta acção deve ser remetida ao tribunal de comércio para apensação ao processo de insolvência
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III - Fundamentação
A) Pretende a apelante que sejam desentranhados os requerimentos juntos pelo administrador da insolvência por não estar a massa insolvente representada por advogado.
Mas não decorre da lei que o administrador da insolvência tenha de estar representado por advogado para requerer apensação de acções ao processo de insolvência.
Quanto ao requerimento em que o administrador da insolvência invocou a incompetência em razão da matéria, cabe dizer que a 2ª ré está já representada nos autos por advogado nomeado no âmbito da protecção jurídica.
Além disso, a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria é de conhecimento oficioso, pelo que bem andou o administrador da insolvência ao juntar cópia da sentença que declarou a insolvência e documentos comprovativos dos registos sobre os veículos.
Nestes termos, devem manter-se nos autos os requerimentos em causa.
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B) Decorre dos autos:
1. Esta acção foi instaurada em 27/03/2017.
2. Em 06/01/2017 foi declarada a insolvência de B e ordenada a imediata apreensão e entrega ao administrador da insolvência de todos os bens da insolvente.
3. Em 09/01/2017 foi publicado anúncio da referida sentença, nele constando que o prazo para a reclamação de créditos foi fixado em 30 dias.
4. Em 22/02/2017 o administrador da insolvência deslocou-se às instalações da autora com vista à apreensão dos veículos automóveis de matrículas ..-IZ-.., ..-NA-.. e ..-NA-19 alegando estarem registados em nome da insolvente.
5. Através da Ap. 10781 de 05/07/2017 foi registado na Conservatória do Registo Predial de Oeiras o seguinte facto: «Apreensão processo falência», relativamente ao veículo marca Mercedes Benz de matrícula ..-IZ-.., constando como titular: massa insolvente da B.
6. Através da Ap. 10750 de 05/07/2017 foi registado na Conservatória do Registo Predial de Oeiras o seguinte facto: «Apreensão processo falência», relativamente ao veículo marca Smart de matrícula ..-NA-.., constando como titular: massa insolvente da B.
7. Através da Ap. 4985 de 05/07/2017 foi registado na Conservatória do Registo Predial de Oeiras o seguinte facto: «Apreensão processo falência», relativamente ao veículo marca SMART de matrícula ..-NA-19, constando como titular: massa insolvente da B.
7. Em 10/02/2015 estava registada a propriedade dos referidos veículos a favor a B, com reserva de propriedade em nome da A.
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C) O nº 1 do art. 85º do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) estabelece que declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.
O art. 141º preceitua, designadamente:
«1 - As disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:
a) À reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio;
b) (…);
c) À reclamação destinada a separar da massa insolvente os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa.
2 - (…)
3 - (…) A separação dos bens a que faz menção o nº 1 pode igualmente ser ordenada pelo juiz, a requerimento do administrador da insolvência, instruído com parecer favorável da comissão de credores, se existir.
(…).».
O art. 146º prevê, designadamente:
«1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação e restituição de bens (…) por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, (…).
2 - O direito à separação pode ser exercido a todo o tempo; (…)
3 - Proposta a acção, há-de o autor assinar o termo do protesto no processo principal da insolvência.
4 - (…)».
E por sua vez, o art. 148º determina que a acção para separação e restituição de bens corre por apenso aos autos de insolvência, ficando as custas a cargo do autor, caso não venha a ser deduzida contestação.
Esta acção foi instaurada depois de ser declarada e publicitada a insolvência e depois de o administrador pretender efectuar a apreensão material dos veículos para a massa insolvente, mas antes da apreensão e do registo desta.
De harmonia com o disposto no nº 1 al a) do art. 149º e no art. 150º do CIRE, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão mediante arrolamento de todos os bens integrantes da massa insolvente, devendo o administrador da insolvência diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues.
Flui do art. 152º do CIR que o administrador da insolvência deve registar prontamente a apreensão dos bens, servindo de título bastante para o efeito o extracto do arrolamento e, no caso de no registo existir sobre eles qualquer inscrição de transmissão, de domínio ou de mera posse em nome de pessoa diversa do insolvente, deve juntar ao processo de insolvência nota das respectivas inscrições.
Na petição inicial pede-se que se aprecie a questão da titularidade do direito de propriedade sobre bens que foram registados a favor da B mas com reserva da propriedade a favor da autora.
Como esta acção foi instaurada antes da apreensão dos bens, não tem aplicação o disposto nos art. 146º nº 2 e 148º do CIRE, carecendo de fundamento a decisão de julgar materialmente incompetente o tribunal de instância local cível.
Mas, visto ter esta acção por finalidade óbvia ficar a autora legitimada para obter o cancelamento dos registos a favor da B, e da massa insolvente, é manifesto o interesse na apensação ao processo de insolvência, como havia requerido o administrador da massa insolvente.
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IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a remessa destes autos ao Juízo de Comércio de Lisboa - 4ª Secção para apensação ao processo onde foi declarada a insolvência da B.
Custas da apelação em partes iguais pela autora e pela massa insolvente.
Lisboa, 15 de Novembro de 2018

Anabela Calafate

António Manuel Fernandes dos Santos 

Eduardo Petersen Silva