Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9052/09.7TBOER.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ERRO SOBRE A BASE DO NEGÓCIO
PRESSUPOSTOS
ANULABILIDADE
SINAL
RESTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O erro pode referir-se à pessoa do declaratário, ao objecto de negócio, aos motivos do negócio ou à base do negócio.
II - No que concerne à base do negócio (que é o que se discute nos autos) ela “será, então, uma representação duma das partes, conhecida pela outra e relativa a certa circunstância basilar atinente ao próprio contrato e que foi essencial para a decisão de contratar”, ocorrendo erro sobre a base do negócio quando “os elementos essenciais para a formação da vontade do declarante e conhecidos da outra parte, os quais, por não corresponderem à realidade, tornam a exigência do cumprimento do negócio concluído gravemente contrário aos princípios da boa-fé”.
III - Pretendendo o promitente comprador vir a adquirir dois lotes para construção, tendo por certo que neles poderia começar a construir no início de OUT2007, e tendo sido nesse pressuposto, conhecido da promitente vendedora, que formulou a vontade de celebrar com ela os contratos promessa , uma vez que tal circunstância não se veio a verificar, incorreu o primeiro em erro sobre a base do negócio.
IV - Mas, para ser relevante, importa que o promitente-comprador em erro sofra uma lesão, ou seja, que a exigência das obrigações que assumiu afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (artigos 252º, nº 2 e 437º, nº 1, do CCiv).
V - Concluindo-se pela relevância do erro sobre a base do negócio, integra ele causa de anulabilidade do mesmo, não obstando à respectiva decretação o facto de a Autora ter pedido a resolução, pois que não só os termos em que o pedido é formulado são susceptíveis, enquanto declaração de vontade, de interpretação, valendo como o efectivo efeito jurídico que com a acção se pretende obter (no caso a desvinculação do contrato), independentemente de qualificação, à qual, aliás, o tribunal não se encontra sujeito.
Decisão Texto Parcial:ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
A ( … SA) intentou, em 2DEZ2009, acção declarativa sob a forma ordinária contra B (…Ldª )  alegando que, no desenvolvimento da actividade de indústria e comércio de construção civil a que ambas se dedicam, celebrou com a Ré, em 30MAR2006, dois contratos promessa de compra e venda de dois lotes destinados à construção, onde se clausulou que a escritura seria efectuada no prazo máximo de 180 dias a contar da data da aprovação dos projectos, prevendo-se que tal aprovação e conclusão de infraestruturas ocorressem dentro de um ano a ano e meio; a referência a essa previsão de ano e meio correspondia ao prazo que a A. entendia, face ao planeamento da sua actividade, como essencial para a concretização do negócio, e que era do conhecimento da Ré; tomando conhecimento de que ainda não havia ocorrido a aprovação dos projectos, em AGO2008, dirigiu missiva à Ré propondo solução amigável em alternativa à resolução dos contratos; não se tendo logrado alcançar solução amigável, por missiva de 12NOV2008, recebida a 17 do mesmo mês, invocando que a não verificação, até ao momento, da aprovação dos projectos e a imprevisibilidade dessa ocorrência eram incompatíveis com a programação da sua actividade, tendo perdido o interesse nos contratos definitivos, declarou resolvidos os contratos promessa, solicitando a devolução, até 30NOV, do valor actualizado do entretanto pago a título de sinal.
Invocando o disposto nos artigos 252º, 432º, 433º, 436º e 439º do CCiv, termina pedindo a condenação da Ré a reconhecer (subsidiariamente se decrete) a resolução dos contratos e a restituir-lhe a quantia € 641.945,70, actualizada à taxa de 4% desde o seu recebimento até 30NOV2008 (subsidiariamente actualizada até à data da citação), e juros moratórios de 1DEZ2008 até integral pagamento (subsidiariamente desde a citação).
A Ré contestou afirmando não se verificarem os pressupostos da resolução, uma vez que não há incumprimento definitivo, designadamente porque tem actuado diligentemente pela aprovação dos projectos, não está em mora, não ocorre objectiva perda do interesse na prestação, não ocorreu (nem podia ocorrer) interpelação admonitória.
Em 29JUN2011 final foi proferida sentença que, considerando não se verificar nenhuma das causas de resolução decorrentes dos artigos 801º e 808º do CCiv nem se poder extrair da referência à previsão de licenciamento em ano e meio uma causa contratual de resolução, mas antes uma situação de impossibilidade temporária não imputável à R., julgou improcedente a acção.
Inconformada, apelou a A. concluindo, em síntese, pela nulidade da sentença e estarem verificados os pressupostos do erro sobre a base do negócio ou alteração das circunstâncias.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.
II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- da nulidade da sentença;
- da verificação dos pressupostos do erro sobre a base do negócio (artº 252º, nº 2 do CCiv) ou da alteração das circunstâncias (artº 437º do CCiv).
III – Da Nulidade
Se é certo que, de acordo com o disposto no artº 664º do CPC o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, não é menos certo que o mesmo juiz deve, como prescrito no artº 660º, nº 2, do CPC, resolver todas as questões que as partes tenham submetido.
No caso concreto dos autos a A. pede o reconhecimento da resolução do contrato em face da factualidade que alega, invocando expressamente as disposições legais que tratam da resolução por erro sobre a base negocial e a alteração anormal das circunstâncias.
Ainda que se entendesse que a factualidade alegada admite a indagação sobre a resolução do contrato fundada em incumprimento definitivo tal não exclui, ademais se se conclui pela não verificação daquele incumprimento, a obrigação de indagar sobre a verificação de outras causas de resolução, designadamente aquelas cujo fundamento jurídico foi expressamente invocada pela parte.
Ao não o fazer o juiz deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, padecendo a sentença recorrida do vício de nulidade previsto no artº 668º, nº 1, al. d), do CPC.
Não obstante, e atento o disposto no artº 715º do CPC, este tribunal irá conhecer do objecto da apelação.
IV – Fundamentos de Facto
É a seguinte a matéria de facto a considerar:
A) A A. é uma sociedade comercial anónima que tem como objecto a indústria e comércio da construção civil (al. A) dos factos assentes).
B) A R. é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto a construção civil e obras públicas e compra e venda de imóveis (al. B) dos factos assentes).
C) Em 30/03/2006, A. e R. firmaram um acordo, que foi reduzido a escrito e que denominaram de “contrato promessa de compra e venda” (al. C) dos factos assentes).
D) Nos termos do referido acordo, a R. declarou prometer vender à A. e esta declarou prometer comprar, pelo preço de € 1.296.860,00 (um milhão duzentos e noventa e seis mil oitocentos e sessenta euros), o Lote 4, destinado à construção, com a área de 749,23 metros quadrados, com uma área de construção acima do solo de 2.000,00 metros quadrados e duas caves para estacionamento, resultante da urbanização com plano de pormenor praticamente aprovado, designado por Estudo Urbanístico da Capela de ... em …., elaborado pela Câmara Municipal de ..., e pronto para reunião de Câmara de MAR/ABR2006, o qual deu origem a cinco lotes para habitação, um lote para comércio e serviços e um outro para silo de automóveis, dos terrenos localizados em …., Quinta ..., inscritos na matriz predial sob os artigos n.º 000 da secção 00, n.º 000, da secção 00, n.º 000, da secção 00 n.º 000 e n.º0, descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição 0000, Livro B-30, actual 27; descrição 00000, Livro B-34, actual 25; descrição 0000, Livro B-18, actual 0000; descrição 0000, Livro B-18, actual 0000 e descrição 0000, Livro B-18, actual 0000, respectivamente (al. D) dos factos assentes)[1].
E) Da “cláusula terceira” do referido acordo consta o seguinte teor:
“As condições de pagamento são as seguintes: a) 194.529,00 euros (cento e noventa e quatro mil quinhentos e nove euros) a título de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura do presente contrato, quantia que a promitente vendedora declara ter recebido e dá quitação. b) Reforço de sinal de 194.529,00 euros (cento e noventa e quatro mil quinhentos e nove euros) no prazo de 60 dias a contar da data do presente contrato. c) Reforço de sinal de 389.058,00 (trezentos e oitenta e nove mil e cinquenta e oito euros) com a aprovação de projectos e infra-estruturas concluídas). d) O restante capital em dívida ou seja 518.744,00 (quinhentos e dezoito mil setecentos e quarenta e quatro euros) será liquidado no acto da escritura pública de compra e venda.” (al. E) dos factos assentes).
F) Na data da assinatura do referido acordo, a A. entregou à R. a quantia de € 194.529,00 (cento e noventa e quatro mil quinhentos e vinte e nove euros) (al. F) dos factos assentes).
G) Posteriormente, em 25/05/2006, a A. entregou à R. a quantia de € 194.529,00 (cento e noventa e quatro mil quinhentos e vinte e nove euros) (al. G) dos factos assentes).
H) Na data de 30/03/2006, A. e R. firmaram um outro acordo, que foi reduzido a escrito e que denominaram de “contrato promessa de compra e venda” (al. H) dos factos assentes).
I) Nos termos deste acordo, a R. declarou prometer vender à A. e esta declarou prometer comprar, pelo preço de € 842.959,00 (oitocentos e quarenta e dois mil novecentos e cinquenta e nove euros), o Lote 5, destinado à construção, com a área de 388,50 metros quadrados, com uma área de construção acima do solo de 1.300,00 metros quadrados e duas caves para estacionamento, resultante da urbanização com plano de pormenor praticamente aprovado, designado por Estudo Urbanístico da Capela de ... em ….., elaborado pela Câmara Municipal de ..., e pronto para reunião de Câmara de MAR/ABR2006, o qual deu origem a cinco lotes para habitação, um lote para comércio e serviços e um outro para silo de automóveis, dos terrenos sitos em …., Quinta ..., inscritos na matriz predial sob os artigos n.º 000 da secção 00, n.º 000, da secção 43, n.º 000, da secção 43, n.º 000 e n.º4, descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição 0000, Livro B-30, actual 27; descrição 00000, Livro B-34, actual 25; descrição 0000, Livro B-18, actual 0000; descrição 0000, Livro B-18, actual 0000 e descrição 0000, Livro B-18, actual 0000, respectivamente (al. I) dos factos assentes)[2].
J) Da “cláusula terceira” deste segundo acordo consta o seguinte teor:
“As condições de pagamento são as seguintes: a) 126.443,85 euros (cento e vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos) a título de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura do presente contrato, quantia que a promitente vendedora declara ter recebido e dá quitação. b) Reforço de sinal de 126.443,85 euros (cento e vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos) no prazo de 60 dias a contar da data do presente contrato. c) Reforço de sinal de 252.887,70 (duzentos e cinquenta e dois mil oitocentos e oitenta e sete euros e setenta cêntimos) com a aprovação de projectos e infra-estruturas concluídas. d) O restante capital em dívida ou seja 337.183,60 (trezentos e trinta e sete mil cento e oitenta e três euros e sessenta cêntimos) será liquidado no acto da escritura pública de compra e venda.” (al. J) dos factos assentes).
L) Na data da assinatura do acordo referido em H), a A. entregou à R. a quantia de € 126.443,85 (cento e vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos) (al. L) dos factos assentes).
M) Posteriormente, em 25/05/2006, a A. entregou à R. a quantia de € 126.443,85 (cento e vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e oitenta e cinco cêntimos) (al. M) dos factos assentes).
N) Em ambos os referidos acordos outorgados por A. e R. consta uma “cláusula quarta” com o seguinte teor: “A escritura de compra e venda realizar-se-á à promitente compradora, no prazo máximo de 180 dias a contar da data da aprovação dos projectos e a promitente compradora obriga-se a entregar no Cartório Notarial onde se vai realizar a escritura e dentro de 10 dias úteis toda a documentação que lhes diz respeito, assim que sejam avisados por carta registada com aviso de recepção” (al. N) dos factos assentes).
O) Em ambos os referidos acordos outorgados por A. e R., consta uma “cláusula quinta” com o seguinte teor: “prevê-se que todos os projectos do referido lote incluindo as especialidades fiquem aprovadas, bem como as infra-estruturas concluídas dentro de um ano a ano e meio, data que prevemos para a entrega do lote” (al. O) dos factos assentes).
P) Após a celebração dos referidos acordos, a R. nunca interpelou a A. para a realização das escrituras públicas de compra e venda (al. P) dos factos assentes).
Q) Por carta datada de 12/08/2008, enviada pela A. à R. e por esta recebida, aquela comunicou que “a Sociedade O... &  B..., S.A. assinou aqueles contratos no pressuposto de que “todos os projectos dos referidos lotes incluindo as especialidades fiquem aprovados, bem como as infra-estruturas concluídas dentro de um ano e meio”, data em que seriam entregues os lotes, ou seja, no máximo até 30 de Setembro de 2007. Acontece que tal não só não aconteceu, como ainda não é previsível quando possa acontecer. Essa incerteza não se compadece com a necessária programação da actividade desta sociedade, bem sabendo V. Ex.cias que a A contratou, convicta de que, pelo menos a partir de 1 de Outubro de 2007, os lotes estariam disponíveis e com as infra-estruturas concluídas. (…) a A (…) vem propor a V. Ex.cias uma solução amigável, aguardando que a B lhe faça, até ao final do mês, uma proposta aceitável para ambas as partes.” (al. Q) dos factos assentes).
R) Em resposta, por carta datada de 25/08/2008, enviada pela R. à A. e por esta recebida, aquela referiu que “(…) Quando da assinatura dos respectivos contratos (…) havia um compromisso por parte da Câmara Municipal de ... em resolver e aprovar este estudo, e também a urbanização dentro de 3 ou 4 meses, este acordo em reunião de 2006-02-14. (…) Neste momento, a urbanização está aprovada, foi aprovada em 2008-05-16 e os trabalhos de urbanização terão início dentro do primeiro trimestre de 2009, se não for possível antes. Também durante 2009 a urbanização ficará concluída, podendo dar-se início à construção dos referidos Lotes” (al. R) dos factos assentes).
S) A A. é portadora de um documento do Departamento de Planeamento e Gestão Urbanística da Câmara Municipal de ..., datado de 26/03/2009, do qual consta o seguinte teor: “CERTIFICO (…) que através do requerimento mil trezentos e vinte e seis de vinte e três de Janeiro de dois mil e oito (…), a B solicitou o licenciamento de uma operação de loteamento para a Capela de ..., em ….. Após análise por parte da Divisão de Planeamento, foi emitida a informação (…) cujo despacho proferido em oito de Maio, conduziram a um ofício, no sentido de serem reformuladas e esclarecidas algumas questões. MAIS CERTIFICO que em onze de Julho de dois mil e oito (…) deu entrada uma junção de elementos que (…) conduziram à comunicação ao requerente no sentido de colmatar algumas situações. CERTIFICO AINDA que (…) o processo foi remetido para a Comissão Municipal de Avaliações, onde à presente data se encontra, a fim de ser emitido parecer. (…)”(al. S) dos factos assentes).
T) Em 12/11/2008, a A., por carta que enviou à R. e que foi por esta recebida, aquela informou o seguinte: “ (…) não se tendo verificado os pressupostos dos contratos-promessa, a A deixou de ter interesse nos contratos definitivos. (…) Assim, vimos comunicar a V. Ex.cias. a resolução dos contratos promessa entre nós celebrados, com efeitos retroagidos à data da sua celebração. A resolução dos contratos implica que cada uma das partes deve restituir à outra o que dela recebeu (…) A reposição do montante recebido por conta do preço implica que a este se some o valor razoável da sua remuneração numa aplicação alternativa (…). Assim, é mais que razoável que a reposição do montante recebido por conta do preço implique que a este acresça a taxa de 4% desde o seu recebimento até à sua efectiva restituição. Nestes termos, vimos também informar que, em consequência da resolução dos contratos-promessa, devem V. Ex.cias. proceder, até 30 de Novembro de 2008, à restituição do montante de € 641.945,70 (…).”(al. T) dos factos assentes).
U) Por carta datada de 5/11/2009, enviada pela R. à A., e por esta recebida, aquela comunicou o seguinte: “(…) como lhes foi informado aquando da promessa de venda dos Lotes supra referidos, havia um compromisso, por parte da Câmara Municipal de ..., prestado em reunião com a mesma em 14.02.2006, em aprovar a urbanização no prazo de 3 a 4 meses. Tal ainda não foi possível por variadíssimos entraves e condicionantes por parte da Câmara Municipal, o que temos vindo a dar a respectiva resposta atempadamente (…). Assim não cabendo qualquer responsabilidade à Construções I..., Lda., no que se refere à demora na aprovação camarária dos projectos, pretende esta sociedade manter os contratos nos seus precisos termos (…)”(al. U) dos factos assentes).
V) Os lotes descritos nas alíneas D) e I) da matéria de facto assente destinavam-se a construção a ser executada pela A. (resposta dada ao art. 1º da base instrutória).
W) Ao firmar com a R. os acordos referidos nas alíneas D) e I) da matéria de facto assente, a A. tinha em vista iniciar a construção nos lotes a partir de 1/10/2007 (resposta dada ao art. 2º da base instrutória).
X) O que era do conhecimento da R. (resposta dada ao art. 3º da base instrutória).
Y) A ré endereçou ao Presidente da Câmara Municipal de ... uma carta, com data de 28.05.2007, onde solicitou uma reunião com o mesmo acerca do Estudo Urbanístico da Capela de ..., em …., que abrange os terrenos descritos nas alíneas D) e I) da matéria de facto assente (resposta dada ao art. 4º da base instrutória).
Z) Em 25.07.2007, a Câmara Municipal de ... aprovou o referido Estudo Urbanístico (resposta dada ao art. 5º da base instrutória).
AA) Em 23/01/2008 a R. dirigiu à Câmara Municipal de ... o pedido de licenciamento do loteamento dos terrenos descritos nas alíneas D) e I) da matéria de facto assente (resposta dada ao art. 6º da base instrutória).
BB) Em sequência, em 28/05/2008, a Câmara Municipal de ... solicitou à R. o envio dos seguintes elementos em falta:
- Certidão actualizada da descrição do registo da conservatória de todos os prédios abrangidos;
-Elementos de caracterização acústica;
-Plano de acessibilidades;
-Pedido de viabilidade de abastecimento de energia eléctrica;
-Planta com indicação das áreas de cedências e áreas com ónus de utilização pública;
-Planta georeferenciada da área de terreno a desafectar do domínio público;
-Pedido de licenciamento de obras de demolição das construções existentes;
-Descrição pormenorizada dos lotes com indicação dos artigos matriciais de proveniência;
-Declaração do proprietário confinante para execução das obras de infra-estruturas (resposta dada ao art. 7º da base instrutória).
CC) Em resposta, em 11/07/2008 e em 3/12/2008, a R. entregou na Câmara Municipal de ... todos os elementos solicitados (resposta dada ao art. 8º da base instrutória).
DD) Em 5/01/2009, a Câmara Municipal de ... informou a R. de que continuava em falta o envio da declaração de concordância do proprietário confinante para a execução das obras de infra-estruturas, da certidão actualizada da descrição do registo da conservatória de todos os prédios abrangidos e da revisão do plano de acessibilidades (resposta dada ao art. 9º da base instrutória).
EE) A resposta aos elementos entregues pela R. em 3/12/2008 foi dada pela Câmara Municipal de ... em 7/05/2009 e 5/06/2009 (resposta dada ao art. 10º da base instrutória).
FF) Em 6/07/2009, a R., não concordando com a avaliação dos terrenos efectuada pela Câmara Municipal de ..., entregou naquela Câmara uma exposição escrita (resposta dada ao art. 11º da base instrutória).
GG) Da qual obteve resposta em 25/09/2009 (resposta dada ao art. 12º da base instrutória).
V – Fundamentos de Direito
O erro consiste em “ignorância ou falsa representação de uma realidade que poderia ter intervindo ou interveio entre os motivos da declaração negocial. A declaração é uma decisão volitiva, precedida no plano psicológico de uma deliberação, rápida ou demorada, em que o possível autor se representa o possível negócio ou o seu circunstancialismo. Ora nesta representação podem faltar elementos, ou pode haver elementos que não correspondem à realidade”[3].
“Traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exacto conhecimento da realidade – o declarante não teria realizado o negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou”[4].
“Implica uma avaliação falsa da realidade: seja por carência de elementos, seja por má apreciação destes”[5].
Decorre de uma situação em que “a vontade real formou-se em consequência do erro sofrido pelo declarante. Se não fosse ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efectuou”[6].
“A pessoa foi levada a fazer um contrato, que quis em si e no seu conteúdo, porque tinha uma falsa ideia acerca da existência ou significado de certos factos ou normas jurídicas. Essa falsa ideia terá sido decisiva na formação da sua vontade, de tal maneira que, se a pessoa estivesse esclarecida, conhecendo o verdadeiro estado das coisas, não teria querido o negócio ou, pelo menos, não o teria querido como o fez”[7].
O erro pode incidir sobre circunstâncias passadas, presentes ou futuras.
“A cada passo cada um de nós, ao realizar um negócio jurídico, procede na plena convicção de que se verificou no passado certo acontecimento ou estado de coisas, de tal maneira que se soubesse que esta sua convicção não correspondia à realidade pretérita ou actual ou se frustraria quanto à evolução posterior, não teria concluído o negócio ou tê-lo-ia concluído de modo diferente[8].
E não desconhecendo que certos autores excluem as circunstância futuras do domínio do erro, remetendo-as para o domínio da alteração das circunstâncias[9], entendemos que as circunstâncias futuras se incluem no domínio do erro se e na medida em que por se cingirem à representação das partes foram decisivas para a formação da vontade e, consequentemente, relevam na própria celebração do negócio[10].
O erro pode referir-se à pessoa do declaratário, ao objecto de negócio, aos motivos do negócio ou à base do negócio.
No que concerne à base do negócio (que é o que se discute nos autos) ela “será, então, uma representação duma das partes, conhecida pela outra e relativa a certa circunstância basilar atinente ao próprio contrato e que foi essencial para a decisão de contratar”[11], ocorrendo erro sobre a base do negócio quando “os elementos essenciais para a formação da vontade do declarante e conhecidos da outra parte, os quais, por não corresponderem à realidade, tornam a exigência do cumprimento do negócio concluído gravemente contrário aos princípios da boa-fé”[12].
Alguma doutrina vem exigindo que o erro na base do negócio seja bilateral[13]. Todavia, entendemos, “nada na lei exige a bilateralidade. O erro é-o do declarante, recaindo embora sobre um elemento decisivo do contrato, conhecido pela outra parte (a qual, sobre ele, podia não ter qualquer opinião)”[14].
Feito o enquadramento doutrinário da questão a decidir, vejamos agora como nele enquadrar a factualidade apurada.
Autora e Ré dedicam-se ambas à actividade de construção civil (Factos A e B).
No exercício dessa actividade a Ré encontrava-se a promover a Urbanização da Capela de ... em …., dando origem a cinco lotes para habitação, um lote para comércio e um lote para silo automóvel (Factos D e I).
Prometeu vender à Autora os lotes 4 e 5 resultantes dessa urbanização (Factos D e I).
E ao fazê-lo não se limitou a invocar o seu domínio sobre os bens prometido vender e a sua qualidade de promotora da urbanização, indo ao ponto de afirmar que o plano de pormenor estava praticamente aprovado e pronto para a reunião da Câmara desse mês ou do mês seguinte (Factos D e I).
E o facto de fazer constar tal circunstância do próprio clausulado do contrato evidencia que essa era uma circunstância essencial em que as partes basearam a vontade de contratar e que consideraram na altura como de realização certa, como um dado adquirido.
A Autora pretendia adquirir os referidos lotes para neles proceder á construção dos edifícios previstos na urbanização (Facto V).
E visava encetar essa construção no início de OUT2007 (Facto W).
Data em que previam (sendo que a previsão não é um facto inócuo mas antes a representação da verificação de uma situação) estarem aprovados os projectos e concluídas as infra-estruturas, previsão essa que fizeram expressamente constar dos termos contratuais (Facto O).
O que igualmente evidencia estarmos perante uma circunstância essencial para a celebração do negócio, que foi expressamente considerada.
Em face de tal factualidade podemos concluir que a Autora pretendia comprometer-se a adquirir dois lotes para construção, tendo por certo que neles poderia começar a construir no início de OUT2007, e foi nesse pressuposto, conhecido da Ré, que formulou a vontade de celebrar com ela os contratos promessa a que se referem os autos. Ou seja, e uma vez que tal circunstância não se veio a verificar, em erro sobre a base do negócio.
Vejamos agora se tal erro é relevante.
Para que tal ocorra necessário é que a parte que se encontre em erro sofra uma lesão, que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato (artigos 252º, nº 2 e 437º, nº 1, do CCiv).
Começando pela última das referidas condições, temos por evidente que sendo a base do negócio a obtenção em tempo determinado de local onde pudesse exercer a sua actividade de construção civil está desse contrato excluído o risco quanto à concretização e ao momento dos devidos licenciamentos e necessária infra-estruturação; com os termos do negócio pretendeu-se, precisamente, excluir esse risco.
Como evidente é que a Autora se viu impedida de proceder às previstas construções nos lotes objecto dos contratos promessa, com a consequente impossibilidade ou perturbação da sua normal actividade; ao que acresce a indisponibilidade, sem que o possa rentabilizar ou amortizar, do significativo montante que já entregou à Ré – mais de € 600.000.
Por último, exigir que a Autora se mantenha vinculada aos contratos promessa que celebrou com a Ré, não obstante frustrada a base negocial subjacente – aquisição de local para construção em curto prazo –, mantendo-se, pelo contrário, numa situação de indefinição do momento do cumprimento do contrato e de potencial perpetuidade da sujeição (note-se que à data do encerramento da discussão – 25MAR2011- ainda a Ré não tinha obtido licenciamento dos lotes; nem veio aos autos notícia de que o tenha obtido entretanto) atenta gravemente os princípios da boa-fé.
Em face do que se conclui pela ocorrência de relevante erro sobre a base do negócio, causa de anulabilidade do mesmo[15].
E não obsta se decrete essa mesma anulabilidade o facto de a Autora ter pedido a resolução, pois que não só os termos em que o pedido é formulado são susceptíveis, enquanto declaração de vontade, de interpretação, valendo como o efectivo efeito jurídico que com a acção se pretende obter (no caso a desvinculação do contrato), independentemente de qualificação, à qual, aliás, o tribunal não se encontra sujeito.
A anulabilidade implica a destruição do negócio e a restituição do prestado (artº 289º do CCiv), que no caso de entregas de valores monetários corresponde à devolução do mesmo valor actualizado ao tempo da devolução em função da depreciação da moeda e não da rentabilidade do capital (artº 551º do CCiv).
Pelo que se não acolhe a pretensão da A. no sentido de a actualização do valor monetário a restituir ser feita a uma taxa de 4%, salvo na parte em que tal constitui uma limitação do pedido, preferindo antes lançar mãos dos dados oficiais relativos ao índice de preços.

VI – Decisão
Termos em que:
-  se declara a nulidade da sentença recorrida;
- na procedência da apelação, se decreta a anulabilidade dos contratos promessa celebrados entre a Autora e a Ré em 30MAR2006, referentes aos lotes 4 e 5 do loteamento da Capela de ..., constantes de fls 20-23 e 25-28 dos autos e se condena a Ré a restituir à Autora as quantias pagas a título de sinal (€ 194.529,00 + 126.443,85 em 30MAR2006 e € 194.529,00 + 126.443,85 em 25MAI2006), actualizadas, desde a data do pagamento até à data da trânsito desta decisão, de acordo com o índice de preços ao consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística (mas que não exceda o valor resultante da aplicação de uma taxa anual de 4%), bem como a pagar-lhe juros moratórios sobre a correspondente quantia, à taxa legal, desde a data do trânsito até integral pagamento.
Custas, em ambas as instâncias, pela Ré.

Lisboa, 17 de Abril de 2012

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga
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[1] - a que, ao abrigo do disposto no artº 712º do CPC, se acrescentou a caracterização da urbanização  (“urbanização com plano de pormenor praticamente aprovado, designado por Estudo Urbanístico da Capela de ... em ..., elaborado pela Câmara Municipal de ..., e pronto para reunião de Câmara de MAR/BRr2006, o qual deu origem a cinco lotes para habitação, um lote para comércio e serviços e um outro para silo de automóveis”) expressamente constante do texto da cláusula primeira dos contratos que se encontram juntos aos autos e que não foram impugnados.
[2] - idem.
[3] - Castro Mendes, Direito Civil (Teoria Geral), Lisboa, 1973, Vol. III, pg. 125.
[4] - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, pg. 386.
[5] - Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte I, Tomo II, Coimbra, 2ª ed.,2000, pg. 597.
[6] - Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed. rev., Coimbra, 1987, pg. 235.
[7] - Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed., Coimbra, 2002, pg. 83.
[8] - idem, ibidem, pg. 95.
[9] - Galvão Telles, op. cit., pg. 98 (“a pressuposição reportada ao futuro prende-se com outro problema, o da alteração das circunstâncias”), Castro Mendes, op. cit., pg. 126 (“se o caso consiste na falsa representação de uma realidade futura, que se não chega a verificar, (…) este caso (…) não é de erro mas de outra figura jurídica, que chamaremos (…) presuposição”), Mota Pinto, op. cit., pg 387 (“Segundo o ensinamento tradicional a pressuposição refere-se ao futuro (…) e o erro refere-se ao presente ou ao passado”).
[10] - nesse sentido cf. Menezes Cordeiro, op. cit., Parte II, Tomo IV, Coimbra, 2010, pg.291; Galvão Telles, op. cit, pg. 101-103.
[11] - Menezes Cordeiro, op. cit., Parte I, Tomo I, Coimbra, 2ª ed., 2000, pg. 622.
[12] - idem, ibidem, pg. 623.
[13] - Castro Mendes, op. cit.,  Vol. III, pg. 170; Mota Pinto, op. cit., pg. 395.
[14] - Menezes Cordeiro; op.cit. Parte I, Tomo I, Coimbra, 2ª ed., 2000, pg. 622
[15] - cf. Galvão Telles, op. cit., pg. 100; Castro Mendes, op.cit., pg.170-171; Menezes Cordeiro, op. cit., pg. 624.
Decisão Texto Integral: