Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7968/2004-9
Relator: GOES PINHEIRO
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


Nos autos de inquérito n° 291/04.8JELSB que correm termos pelo DIAP de Lisboa, o Magistrado do Ministério Público, inconformado com o despacho neles proferido pelo Senhor Juiz do 4° Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que indeferiu promoção que apresentara no sentido de ser autorizada a intercepção das comunicações de dois telefones, alegadamente utilizados por (A) e o acesso às facturações detalhadas, registo de "trace back”, localizações celulares e identificação do IMEI, interpôs recurso do mesmo.

(…)

Corridos os vistos, cumpre decidir.

Como dos autos se vê, o inquérito referido iniciou-se com uma "informação de serviço" dirigido por um Inspector da Polícia Judiciária ao respectivo superior hierárquico,

(...)

Nos termos do artigo 187°, n° 1, do Código de Processo Penal, "a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só pode ser ordenada ou autorizada, por despacho do juiz", quanto aos crimes ali enlencados e "se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Ressalta desta norma que a realização das vulgarmente designadas "escutas telefónicas" está sujeita a dois requisitos, a saber: 1° - que esteja em causa crime constante do catálogo nela estabelecido; 2° - que existam razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Entre os crimes elencados no preceito contam-se os relativos a tráfico de estupefacientes - cfr.a respectiva alínea b). E sendo crime desse tipo que a Polícia Judiciária se propõe investigar com base nas pretendidas intercepções, não sofre dúvidas que o primeiro daqueles requisitos se mostra, no caso cumprido.
A controvérsia gerada tem a ver com o segundo requisito: entendeu e entende o Ministério Público que o mesmo se encontra preenchido, o que não mereceu a concordância do Senhor Juiz e levou ao indeferimento da diligência promovida.
E parece-nos que decidiu bem o Senhor Juiz.
Na verdade, as escutas telefónicas são susceptíveis de atentar contra a reserva da vida privada e familiar, que é um valor fundamental, como tal reconhecido pela Constituição - artigo 26°, n° 1.
E, para salvaguarda desse valor preceitua o n° 4 do artigo 34° do mesmo Diploma, que "é proibida toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal".
Neste quadro, a citada norma do processo penal tem que ser vista à luz do disposto no artigo 18°, n° 3, da Constituição, segundo o qual "a lei só pode restringir os direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos"
O teor da norma revela, alias, preocupação por parte do legislador ordinário em dar cumprimento a esse comando constitucional: restringe-se a possibilidade de realização das intercepções telefónicas à investigação de determinados crimes, em princípio considerados mais graves, ou em que tais diligências se revelam de maior eficácia, ou cometidos, eles próprios, através do telefone; exige-se, para a efectivação das intercepções, que haja razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova; e defere-se ao juiz a competência para, em cada caso, verificar a existência desses requisitos e autorizar — ou denegar - a realização de escutas.
Ora, no que respeita ao falado segundo requisito, o que a lei impõe, para uma decisão positiva, é que "haja razões para crer ...". Como ressalta dos termos da norma, não basta uma convicção subjectiva e porventura infundada, do juiz, acerca da grande relevância da diligência, antes se exige uma convicção baseada em "razões" que não podem deixar de ser objectivas, consistentes e compreensíveis pelo cidadão médio.
O que o juiz tem que fazer é um juízo acerca das probabilidades da eficácia da diligência e autorizar a sua realização apenas quando essa probabilidade se mostrar muito elevada pois que quando assim não for não se justifica a intromissão na vida privada e familiar que as escutas telefónicas sempre acarretam. Mas esse juízo tem que assentar em elementos concretos e consistentes, já existentes no processo quando a questão é submetida a apreciação judicial.
Acerca desses elementos, escreve Costa Andrade (Sobre as proibições de prova em processo penal, pag. 290) que, para o efeito, é de exigir "uma forma relativamente qualificada da suspeita da prática do crime" e que, se não é de reclamar "o limiar dos fortes indícios da prática do crime (de que o artigo 202° faz depender a prisão preventiva)" já não serão suficientes "as meras suposições ou boatos infundados", pois que a suspeita tem de "atingir um determinado nível de concretização a partir de dados do acontecer exterior ou da vida psíquica".
Ora, tudo o que foi trazido ao conhecimento do Senhor Juiz "a quo", com eventual relevo para a questão, foi que uma "fonte que se reputa fidedigna" denunciou à Polícia Judiciária que Alberto Teixeira estaria envolvido no tráfico de estupefaciente, exercendo essa actividade no estabelecimento de snack- bar de que é proprietário e efectuando para o efeito deslocações regulares a Espanha.
Terá, por certo, a Polícia Judiciária razões válidas para ocultar a identidade da sua fonte. Mas, como assinala o Senhor Juiz no despacho recorrido, a denúncia, ocultada a identidade de quem a fez, só pode, do ponto de vista do processo, qualificar-se de anónima, sendo como tal desprovida de valor e insusceptível de servir de sustentáculo ao uso de um meio de obtenção de prova tão delicado como são as escutas telefónicas.
E não é a circunstância de a Polícia Judiciária considerar a sua fonte "fidedigna" que modifica as coisas. O Tribunal, para formular, fundadamente, o falado juízo positivo de probabilidade, precisava, no mínimo, de também ele, considerar essa fonte "fidedigna" e merecedora de crédito nos factos que narrou, sendo certo que lhe não foram facultados quaisquer elementos que permitam concluir nesse sentido.
O que o Ministério Público defende, a final, é que o Tribunal devia aceitar acriticamente os fundamentos invocados e deferir de modo automático a pretensão que formulou e que lhe foi sugerida pela Polícia Judiciária. A necessidade de combater o tráfico de estupefacientes justificaria esse procedimento e a eventual devassa da vida privada do visado que daí resultasse esbater-se-ia posteriormente pela efectivação dos meios de controle judicial do resultado das escutas previstos na lei. Ora, tal posição acha-se construída à revelia da lei, como decorre do que acima se expôs e, a vingar, transformaria a autorização judicial consagrada no preceito em análise em mera formalidade burocrática e, como tal, inútil.
Termos em que se decide negar provimento ao recurso, confirmando o douto despacho recorrido.

Sem custas.

Lisboa, 28 de Outubro 2004

Goes Pinheiro

Silveira Ventura

Margarida Vieira de Almeida