Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18479/16.7T8LSB-B.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DEFERIR
Sumário: I) O endereço de alguém é um dado pessoal e pode ser dado a conhecer para prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.
II) O segredo profissional em geral é estabelecido em função de vários interesses, a saber o das próprias instituições, em cuja atividade releva de forma especial o princípio da confiança, o das pessoas, “clientes” diretos das entidades que prestam os serviços ou exercem uma atividade, estando em causa a salvaguarda da vida privada, e o dos terceiros (“clientes” indiretos) que se relacionam com tais instituições através daqueles.
III) No âmbito das relações jurídico-privadas, a quebra do sigilo profissional assume características de excecionalidade, devendo ser aferida numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao mínimo imprescindível à concretização dos valores pretendidos alcançar.
IV) O conflito entre o dever de cooperação com a administração da justiça e o dever de sigilo profissional deve ser resolvido, caso a caso, com base no princípio da proporcionalidade.
V) Justifica-se a medida excecional da quebra do sigilo profissional quando a informação pretendida como objeto do dever de colaboração e que se encontra coberta por sigilo profissional, é fundamental para a concretização da finalidade judicialmente determinada, constituindo o único meio expetável de realização de um direito da requerente, judicialmente reconhecido há longo tempo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
BMW RENTING (PORTUGAL), LDA., identificada nos autos, requereu providência cautelar não especificada contra INOVATRÓNICA – SOLUÇÕES PARA SISTEMAS ELECTRÓNICOS E INFORMÁTICOS, LDA., pedindo que fosse ordenada a apreensão e entrega à requerente de duas viaturas automóveis, pertencentes à requerente, que esta havia cedido à requerida em cumprimento de um contrato de aluguer operacional, que fora resolvido, por falta de pagamento de rendas pela locatária. Mais requereu que lhe fosse concedida a inversão do contencioso.
Em 18-08-2016 foi proferida decisão que deferiu a providência e ordenou a apreensão e entrega à requerente dos veículos ligeiros de passageiros marca BMW, com as matrículas …-OI-… e …-OI-…, a solicitar à autoridade policial competente, dispensando-se a requerente do ónus de propositura da ação principal.
Requerida a apreensão das viaturas às autoridades policiais, com referência à sede da requerida, estas não foram encontradas, tendo sido efetuadas, desde então, diversas diligências com vista a descortinar onde as viaturas se encontrariam, sem êxito.
Na sequência de requerimento da requerente nesse sentido, em 17-09-2019, foi proferido despacho a solicitar a todas as Companhias de Seguros identificadas pela requerente para virem prestar as informações relativas aos tomadores de seguros dos veículos objeto do procedimento cautelar, nos exatos termos requeridos.
Em 25-09-2019, a empresa VIA DIRECTA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. comunicou no processo o seguinte: “(…) em resposta à notificação de V. Exas. de 20-09-2019 com a referência 390120468, comunicar que, estando esta Companhia e os seus colaboradores, por força do estabelecido no artigo 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, sujeitos a dever de sigilo, não pode disponibilizar a informação solicitada, requerendo, pois, em conformidade com o expressamente previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do Código do Processo Civil, escusa na prestação da mesma”.
Na sequência, a requerente pediu que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 417.º, n.ºs 1, 2 e 3 alínea c) e 4 do CPC e 135.º n.º 3 do CPP, se solicitasse a esta Relação que, tendo em vista a prossecução do direito de acesso à justiça, autorizasse a quebra do segredo profissional da VIA DIRECTA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. ao abrigo do disposto no artigo 119.º do Decreto-Lei 72/2008 de 16 de Abril, com vista à obtenção da identificação e morada dos tomadores de seguros das Apólices respeitantes ao veículo com matrícula …-OI-….
O tribunal a quo, por despacho proferido em 12-12-2019, considerou legítimo o pedido de escusa formulado pela VIA DIRECTA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e, dando seguimento ao incidente solicitado pela requerente, remeteu o pertinente expediente a esta Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
A única questão a decidir neste incidente é saber se deve ser deferido o requerido levantamento de segredo profissional relativamente à seguradora que o invocou.
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3. Fundamentação de facto:
São elementos processuais relevantes para a apreciação do presente incidente, os enunciados no Relatório.
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4. Fundamentação de Direito:
A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 1 do art.º 20.º da CRP), a obter em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.º 4 do art.º 20.º da CRP, art.º 2.º do CPC).
Nessa tarefa, todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que lhes for requisitado e praticando os atos que forem determinados (n.º 1 do art.º 417.º do CPC).
Interesses relevantes poderão justificar a recusa da dita colaboração. Assim, a recusa é legítima se a obediência importar “intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” (al. b) do n.º 3 do art.º 417.º) ou “a violação do sigilo profissional (…)” (n.º 3, alínea c) do art.º 417.º do CPC).
Nos termos do n.º 4 do art.º 417.º do CPC, ”deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Remete-se para o regime previsto no processo penal a fim de solucionar o conflito que surja entre uma determinada pretensão probatória e a invocação de dever de sigilo.
Haverá que ver, então, o que a este respeito se prevê no Código de Processo Penal.
Disciplina sobre a matéria o artigo 135.º (com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto) – com a epigrafe “Segredo profissional” - , dispondo o seguinte:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs. 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs. 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
Tendo o tribunal perante o qual foi suscitado o incidente de invocação do segredo profissional concluído pela legitimidade da recusa, caberá ao tribunal superior apreciar se deve ou não ser quebrado o segredo profissional.
Ou seja: “Só após se considerar legítima a escusa invocada é que o presente incidente deve ser suscitado e depois remetido a este Tribunal da Relação, que apenas se pronuncia sobre a dispensa/quebra do sigilo profissional (como resulta das disposições conjugadas dos art. 417.º/4 do CPC e 135.º/2 e 3 do CPP)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-06-2018, Processo n.º 768/16.2T8CBR-C.C1, relator BARATEIRO MARTINS).
Para tal, o tribunal que conhece do incidente deve considerar que a quebra é justificada “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante”, nomeadamente tendo em conta a “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, a “gravidade do crime” e a “necessidade de proteção de bens jurídicos”.
“Tudo em consonância com os princípios a observar em caso de colisão de direitos (art.º 335.º do Código Civil), segundo os quais, se forem da mesma espécie, os respetivos titulares deverão ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes, devendo prevalecer, no caso de direitos desiguais ou de espécie diferente, o que for considerado superior. Sendo certo que as restrições aos direitos, liberdades e garantias, quando admitidas, deverão “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 2 do art.º 18.º da CRP)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-04-2018, Processo 18479/16.7T8LSB-A.L1-2, rel. JORGE LEAL).
No caso pretende-se que uma seguradora informe o tribunal sobre a morada de um seu cliente – enquanto tomador de seguro de apólice respeitante ao veículo dos autos - por se considerar que o mesmo veículo, cuja apreensão se pretende, se encontrará nas suas proximidades.
A seguradora invocou não poder disponibilizar a informação solicitada, invocando a existência de sigilo profissional.
Vejamos:
A Constituição Portuguesa consagra, desde a sua versão inicial, um direito à autodeterminação informativa, previsto no art.º 35.º. Tal proteção arranca da constatação dos riscos que o crescente tratamento informatizado de informações pessoais acarreta para a liberdade, autonomia e dignidade de cada um dos cidadãos alvo do mesmo. Nessa medida, consagra-se o direito de acesso de todos os cidadãos aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo os mesmos exigir a sua retificação e atualização e, bem assim, conhecer a finalidade a que se destinam (n.º 1 do art.º 35.º). Do mesmo passo, proíbe-se a utilização da informática para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica – ressalvando-se o consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou o mero processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis (n.º 3). Proíbe-se, igualmente, o acesso a dados pessoais de terceiros, sem prejuízo de casos excecionais previstos na lei (n.º 4), cominando-se ao legislador a definição do conceito de dados pessoais, bem como das condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização e garante-se a sua proteção, designadamente através de entidade administrativa independente (n.º 2); estendendo-se aos dados pessoais constantes de ficheiros manuais, a proteção prevista no aludido artigo 35.º da CRP (n.º 7).
Nos termos do art.º 18.º n.º 1 da CRP, a proteção constitucional dos dados pessoais vincula também as entidades privadas.
A proteção das pessoas singulares, no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais está regulada, no plano do direito ordinário, fundamentalmente pelo Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (e que revogou a Diretiva 95/46/CE) – o denominado Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e, bem assim, pela Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto (que revogou a pretérita Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, Lei da Proteção de Dados Pessoais).
Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RGPD são «Dados pessoais», a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
Considera-se “tratamento de dados pessoais”, “uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição” (cfr. artigo 4.º, n.º 2, do RGPD).
O n.º 1 do artigo 5.º do RGPD estabelece os princípios fundamentais em matéria de proteção de dados, dispondo que os dados pessoais são:
“a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);
b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1 («limitação das finalidades»);
c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);
d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»);
e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);
f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»)”.
Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD, o tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações:
a) O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas;
b) O tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados;
c) O tratamento for necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito;
d) O tratamento for necessário para a defesa de interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular;
e) O tratamento for necessário ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento;
f) O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança (muito embora não se aplicando esta situação ao tratamento de dados efetuado por autoridades públicas na prossecução das suas atribuições por via eletrónica).
Certas categorias de dados pessoais – cfr. artigo 9.º e ss. do RGPD – ficam, todavia, sujeitas a um regime mais apertado relativamente ao respetivo tratamento.
O artigo 119.º da Lei do Contrato de Seguro (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril) estabelece o seguinte dever de sigilo:
“1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado.
2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respectivas funções”.
Ora, como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-01-2018 (Processo 13930/16.9T8PRT-A.L1-7, relator LUÍS ESPÍRITO SANTO):
“Poderá dispensar-se a confidencialidade das informações, protegidas, desde que se conclua pela sua imprescindibilidade para a efectivação da actividade probatória.
De salientar, contudo, que a dispensa de confidencialidade deverá ser analisada com particular ponderação e rigor de forma a evitar excessos que se verificam sempre que tal devassa não se mostre essencial e indispensável para a dilucidação dos factos em discussão em juízo Vide, sobre este ponto, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Fevereiro de 2012 ( relator Pimental Marcos ), publicitado in www.dgsi.pt..
Trata-se da aplicação do denominado princípio da proporcionalidade. Neste tocante vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2006 (relatora Ana Luísa Geraldes), publicado in www.dgsi.pt.; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Outubro de 2009 (relator Mário Serrano), publicado in “Contratos Comerciais, Direito Bancário e CIRE “, Colectânea de Jurisprudência Edições, pags. 554 a 556. que encontra tradução prática, por exemplo, no artigo 335º do Código Civil Conforme se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Julho de 2012 (relatora Graça Amaral), publicitado in www.jusnet.pt : “Verificando-se uma colisão destes deveres a solução a encontrar terá que resultar de um juízo de ponderação e coordenação entre os mesmos, tendo em conta a situação em concreto, de forma a encontrar e justificar a solução mais conforme com as finalidades que, nessa situação, se pretende atingir, encarando eventuais limitações de cada um deles tão só enquanto necessárias para a salvaguarda dos interesses ou direitos preponderantes em jogo, com respeito aos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade – princípio da ponderação de bens e interesses relevantes no caso concreto de modo a poder-se encontrar um sentido unívoco na ordem jurídica“.
A problemática da divulgação de informações confidenciais relativas aos utilizadores dos serviços de telecomunicações, que se encontrassem na posse dos fornecedores de rede e dos prestadores de serviços de telecomunicações acessíveis ao público, quando tais elementos fossem requisitados pelo juiz do processo para efeito de instrução no âmbito de ações cíveis, ponderou-se, no Parecer n.º 21/2000, de 16-06-2000, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no DR II Série, de 28-08-2000, como Directiva n.º 5/2000, que tais dados estavam abrangidos pelo sigilo profissional por efeito das disposições dos artigos 17.º, n.º 3, da então vigente Lei de Bases de Telecomunicações (Lei n.º 91/97, de 1 de Agosto), e art.º 5.º da então vigente Lei de Protecção de Dados Pessoais no Sector das Telecomunicações (Lei n.º 69/98, de 28 de Outubro). Aí se incluindo os elementos de informação gerados por uma ligação telefónica, como são os designados dados de tráfego e dados de conteúdo.
Segundo o Parecer, a obtenção desse tipo de informação por parte dos tribunais, no âmbito de processos de natureza civil para efeitos instrutórios ou para assegurar o bom andamento dos processos, deparava com a legitimidade de recusa por parte dos operadores de telecomunicações, em conformidade com o disposto no artigo 519.º, n.º 3, alínea b), do CPC (correspondente ao art.º 417.º, n.º 3, al. b) do atual CPC), encontrando-se, por isso, claramente excecionada do dever de cooperação.
Em relação, no entanto, aos dados de conexão à rede, chamados dados de base (número de acesso, identidade e morada do utilizador), “o carácter sigiloso dos dados deriva, nessa hipótese, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação (que poderia ocorrer, designadamente por via da inclusão em listagens de assinantes), relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima. A divulgação dessas informações, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.
Nesse caso, deve prevalecer o interesse público fundamental subjacente ao dever de cooperação com a administração da justiça.
E se as entidades requisitadas, na ponderação dos valores em presença, vierem a invocar escusa, com base no disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 519.º, funciona então o mecanismo previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, por força da remissão operada pelo n.º 4 daquele artigo.”
Assim, os chamados dados de base, tais como o endereço do assinante, exteriores ao acionamento de comunicações em concreto, não se integram na previsão do n.º 4 do art.º 34.º da CRP, nem da alínea b) do n.º 3 do art.º 417.º do CPC. Pelo que a eventual escusa por parte dos operadores de telecomunicações na prestação de informações atinentes a esses dados deverá ter o tratamento previsto nos artigos 417.º n.º 4 do CPC e 135.º do CPP.
Tal entendimento tem tido acolhimento no Tribunal Constitucional (vide acórdão n.º 486/2009, de 28-09-2009 e acórdão n.º 403/2015, de 27-08-2015, publicado no D.R., I série, de 17-09-2015) e, também, na doutrina (vide Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, 2011, p. 548, nota 21), tendo sido admitido o fornecimento desse dado quando estão em questão finalidades de prossecução da justiça (cfr., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-04-2018, Processo 2112/16.0T8EVR-A.E1, relatora ELISABETE VALENTE).
Em síntese: O endereço de alguém é um dado pessoal e pode ser dado a conhecer para prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.
“Como se afirma no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 2/2008, in DR l.ª série, de 31 de Março de 2008, a propósito do segredo bancário, e vale, mutatis mutandis, para o caso, o dever de segredo tem em vista a salvaguarda de duas ordens de interesses: por um lado, o regular funcionamento da atividade em causa (seguradora) e, por outro, a reserva da intimidade da vida privada de cada um dos clientes das seguradoras” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-06-2018, Processo 768/16.2T8CBR-C.C1, relator BARATEIRO MARTINS).
O segredo bancário – e de forma mais lata, qualquer segredo profissional em geral - é estabelecido em função de vários interesses, a saber o das próprias instituições, em cuja atividade releva de forma especial o princípio da confiança, o das pessoas, “clientes” diretos das entidades que prestam os serviços financeiros ou exercem determinada atividade sujeita a sigilo profissional, estando em causa a salvaguarda da vida privada, e o dos terceiros (“clientes” indirectos) que se relacionam com tais instituições através daqueles.
“É ponderando estes interesses, o interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material que está subjacente ao pedido de informação, e a natureza civilística dos mesmos, que se há-de aquilatar, de forma criteriosa, moderada e casuística, qual o interesse preponderante, dando-lhe prevalência. Quando se está perante um elemento de prova indispensável ou fundamental para a descoberta da verdade, deve o sigilo bancário ceder perante o dever de cooperação na descoberta da verdade material, no âmbito da administração da justiça” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25-03-2014, Processo 129/13.5TJLSB-A.L1-7, relatora CRISTINA COELHO).
Sintetizando, de forma magistral, os termos deste conflito, no âmbito de uma relação jurídico-privada, concluiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-03-2011 (Processo 1499/08.2TVLSB.L2-1, relator RUI VOUGA) o seguinte:
“1. No âmbito das relações jurídico-privadas, a quebra do sigilo bancário assume características de excepcionalidade, devendo ser aferida com base na estricta necessidade, numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao mínimo imprescindível à concretização dos valores pretendidos alcançar;
2. O conflito entre o dever de cooperação com a administração da justiça e o dever de sigilo profissional deve ser resolvido, caso a caso, com base no princípio da proporcionalidade;
3. Justifica-se a medida excepcional da quebra do segredo bancário, por prevalência do interesse na cooperação para a descoberta da verdade, quando a prova dos factos, sem tal quebra, possa ficar seriamente comprometida e, com isso, eventualmente, a justa decisão da causa”.
Diremos que tal justificação se mantém plenamente válida, igualmente, quando a informação pretendida como objeto do dever de colaboração e que se encontra coberta por sigilo profissional, é fundamental para a concretização da finalidade judicialmente determinada, constituindo o único meio expetável de realização de um direito da requerente, judicialmente reconhecido há longo tempo.
No caso, pretende-se, com a informação tentar descobrir a localização de uma viatura, cuja apreensão foi ordenada pelo tribunal, a fim de ser restituída à requerente, sua proprietária.
Há mais de três anos que a requerente obteve o reconhecimento do seu direito e todas as – diversas - diligências tentadas para encontrar a viatura se frustraram, estando em contraponto, de um lado, o direito da requerente de pretender efetivar o seu direito de propriedade sobre a viatura, judicialmente reconhecido e, de outro, a manutenção em segredo de um aspeto da privacidade de uma pessoa, que é o seu endereço, constante nos registos de uma seguradora.
Ora, conforme se afirmou, no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-04-2018, Processo 18479/16.7T8LSB-A.L1-2, rel. JORGE LEAL, “numa sociedade como a nossa, a indicação do seu endereço pelo cidadão é, frequentemente, requisito necessário para desfrutar dos benefícios dessa mesma sociedade, além de ser obrigatória para o cumprimento das fundamentais obrigações de cidadania (identificação civil, fiscal, etc). Assim, não estando em causa o acesso a uma pessoa singular tendo em vista proporcionar interpelações de natureza comercial ou de diminuta relevância comunitária, mas sim para tentar a efetivação de um direito legal e constitucionalmente consagrado, que é o da efetivação da justiça”.
Assim, sopesados os interesses em confronto, afigura-se que a pretensão da requerente é claramente prevalente sobre o que decorreria da manutenção do segredo, pelo que, o presente incidente deverá proceder, sendo determinada a quebra do sigilo em conformidade.
A responsabilidade tributária inerente ao presente incidente incorrerá pela requerida, que nele decaiu integralmente – cfr. art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
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5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2.ª Secção Cível, em deferir o requerido incidente e, consequentemente, decretar o levantamento do sigilo profissional a que a VIA DIRECTA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. estava obrigada, determinando-se que a mesma preste a informação requerida.
Custas pela requerida.
Notifique e registe.
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Lisboa, 06 de fevereiro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes