Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
107/08.6GACCH.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Sumário: I – Em caso de suspensão provisória do processo, terminado o prazo dessa suspensão e concluindo o Ministério Público que o arguido não cumpriu integralmente as obrigações impostas, cumpre-lhe deduzir acusação para que aquele seja julgado pelo crime tido como indiciado.
II – A “revogação” da suspensão não decore automaticamente do incumprimento muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo sobre a culpa ou a vontade de não cumprir por parte do arguido, podendo haver lugar, nomeadamente, à revisão das injunções, regras de conduta decretadas ou prorrogação do prazo até ao limite legalmente admissível.
III - Porém, optando o Ministério Público pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao Ministério Público. O juiz de julgamento não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo e, com esse fundamento rejeitar a acusação.
IV - Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. Considerando existirem fortes indícios da prática, pelo arguido João , de um crime de condução sem carta p. p. pelo art. 3.º n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3/01, o MP, findo o inquérito, propôs a suspensão do processo pelo prazo de três meses, com a imposição da seguinte regra de conduta: “inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória dos presentes autos”.
Proposta que recebeu a concordância do arguido e da Mm.ª Juiz de Instrução e da qual foi aquele notificado por carta depositada no seu receptáculo postal em 5/01/2009.
O arguido juntou comprovativo de se ter inscrito na escola de condução e de que foi emitida licença de aprendizagem.
Decorrido o prazo de suspensão provisória do processo, o MP realizou pesquisa na base de dados “para conhecimento de eventual carta de condução de que o arguido seja entretanto titular”, tendo o resultado da pesquisa sido negativo.
Deduziu então o MP, em processo comum, acusação contra o mesmo arguido, imputando-lhe o aludido crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Remetido o processo para julgamento, foi proferido no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Benavente o seguinte despacho:
“O Tribunal é competente.
Nos presentes autos o Ministério Público procedeu à suspensão provisória do processo com a imposição da seguinte regra de conduta ao arguido: inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória dos autos, que se iniciou em 10 de Janeiro de 2009.
Em 16 de Janeiro de 2009 o arguido veio juntar aos autos a declaração que consta de fls. 33, emitida pela Escola de Condução ..., na qual se pode ler que o arguido estava, àquela data, inscrito na citada Escola, a fim de se habilitar à carta de condução para a categoria B, sendo detentor de licença de aprendizagem válida até 16.12.2010.
Não obstante, findo o prazo de suspensão do processo e pese embora o cumprimento, pelo arguido, da regra de conduta que lhe havia sido imposta, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento do arguido em processo comum.
Ora, a nosso ver, tal não é possível e coloca o Tribunal numa situação de repetição de um juízo de censura penal dos factos imputados ao arguido, que colide com o princípio ne bis in idem, podendo inclusivamente constituir nulidade, pois que determinou o emprego da forma comum quando no processo deveria, outrossim, ter sido determinado o arquivamento dos autos nos termos do disposto no art.° 282.º, n.° 3 do Código de Processo Penal, sendo que o processo não poderia nem pode ser reaberto. Tal basta, aliás, para se entender que o Ministério Público, tendo optado pela suspensão provisória do processo e não tendo ocorrido qualquer das situações previstas no art.° 282.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, viu precludida a possibilidade de fazer prosseguir a acção penal contra o arguido - motivo pelo qual a acusação deduzida nos autos não poderá ser recebida.
Por tal motivo, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público e determino o arquivamento dos presentes autos.
Notifique.”

2. Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o MP, concluindo do seguinte modo:
“1 - Não existe prova nos autos de que o arguido, no decurso da suspensão provisória do inquérito, tenha cumprido plenamente a regra de conduta acordada;
2 - Assim sendo, foi correctamente deduzida acusação contra o arguido ao abrigo do disposto no art.°282.°, n.°4, al. a) do C.P.P.;
3 - Ao rejeitar a acusação deduzida e ao determinar o arquivamento dos autos, a Mm.ª Juiz a quo violou o disposto no art.° 312.º, n.º 1 do C.P.P.
         Atento o exposto, sou do parecer que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá ser proferido despacho admissão acusação deduzida e consequentemente designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, assim se fazendo Justiça.”

3. Não houve resposta do arguido.
4. Admitido o recurso, subiram os autos ao Tribunal da Relação, tendo a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer, ao abrigo do art. 416.º, do CPP, no sentido da improcedência do mesmo, defendendo que não existiu incumprimento da regra de conduta e em consequência não existiam condições legais para o recebimento da acusação.
*
5. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada disse o arguido.
6. Após exame preliminar foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.
***

II. Fundamentação:
1.
Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
No caso sub-judice, o recurso está limitado, pela sua natureza, a uma única questão: se podia ou não ter lugar a rejeição da acusação, nos termos em que o fez o despacho recorrido.
*
2.
Conforme referido supra, foi determinada a suspensão provisória do processo, por três meses, tendo sido imposta ao arguido a obrigação de:
inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória …

Foi feita prova nos autos de que o arguido se inscreveu na escola de condução.
Não há, porém, qualquer prova de que tenha frequentado qualquer aula, muito menos que tenha frequentado as aulas durante o período da suspensão (três meses).
No pressuposto de que o arguido não havia cumprido integralmente as obrigações impostas, o MP determinou o prosseguimento do processo, deduzindo acusação contra o arguido.
Acusação que foi rejeitada por despacho judicial, com o fundamento de que o arguido cumpriu a regra de conduta imposta, colidindo a acusação com o princípio ne bis in idem, entendendo o magistrado judicial recorrido que, em vez de deduzir acusação, devia o MP ter determinado o arquivamento do processo.
Determina o actual art. 281.º, do CPP[1] (Suspensão provisória do processo):
1 — Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 — São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou actividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 — Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
4 — Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
5 — A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
6 — Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
7 — Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.

Por sua vez, prevê o art. 282.º, do mesmo Código, sob o título “duração e efeitos da suspensão”:
1 — A suspensão do processo pode ir até dois anos, com excepção do disposto no n.º 5.
2 — A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo.
3 — Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 — O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
5 — Nos casos previstos nos n.os 6 e 7 do artigo anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos.

Conforme se extrai do n.º 4 deste último normativo, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas, … se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta.
Terminado o prazo da suspensão, o MP apreciou a situação e concluindo que o arguido não cumprira integralmente as obrigações impostas, deduziu acusação.
Solução perfeitamente legal, porque expressamente prevista naquele normativo. Tal opção em nada colide com o invocado princípio ne bis in idem, não sofrendo aquele n.º 4 do art. 282.º, de qualquer inconstitucionalidade. Incumprindo o arguido as injunções que anteriormente aceitara, não tem outro remédio senão responder pelo crime que cometera. Por isso é que a suspensão tem carácter provisório, não é uma suspensão definitiva. A suspensão provisória do processo não implica impunidade.
É certo que, decorrido o respectivo prazo, a “revogação” da suspensão do processo – melhor dizendo, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento – não decorre automaticamente de qualquer incumprimento, muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido. Podendo, nomeadamente, haver lugar à revisão das injunções e regras de conduta decretadas, optando-se pela imposição de outras, ou pela prorrogação do prazo das anteriores até ao limite legalmente admissível, obviamente após prévio acordo do arguido assistente e juiz de instrução.
Porém, optando o MP pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao MP. O juiz de julgamento, ao receber a acusação, não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo.
Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via.
Em contrapartida, se o arguido, notificado da acusação, nada diz, é porque aceita ser submetido a julgamento, logo, aceita que incumpriu culposamente as obrigações impostas no âmbito da suspensão do processo.

Pelo que, quando o processo é remetido para julgamento, não pode o juiz rejeitar a acusação com o fundamento de que não houve incumprimento do arguido, pois este fundamento não vem previsto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, do CPP, como causa de rejeição.
Inexistindo nulidades insanáveis - que, pelo despacho recorrido, não foram declaradas - ou outras questões prévias susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito, só restará ao juiz receber a acusação e designar data para julgamento.

No caso dos presentes autos, o MP acusou por entender que havia incumprimento do arguido. Bem ou mal, isso não interessa para o caso, sendo certo que tal incumprimento, a existir, é meramente parcial - o arguido inscreveu-se na escola, não tendo, porém, demonstrado no processo que frequentou as aulas durante o período da suspensão, nem sequer que frequentou uma só aula -, não sendo aquela decisão isenta de críticas na medida em que, de forma algo precipitada, não se procurou confirmar, junto do arguido ou da escola de condução, qual a real situação relativamente à imposta frequência das aulas, antes se limitando a confirmar que o arguido ainda não obtivera carta de condução, facto que é irrelevante pois não faz parte das condições impostas.
Labora também o Sr. Juiz de julgamento em erro, de sinal contrário, ao ter partido do pressuposto - até ao momento, não confirmado - de que o arguido havia cumprido as obrigações impostas.

Com ou sem razão quanto a tal incumprimento, o certo é que não podia, com tal fundamento, rejeitar a acusação nesta fase processual.
O arguido tem de ser submetido a julgamento, onde será feita a prova dos factos, inclusive dos que eventualmente tenham a potencialidade de afastar a responsabilidade criminal daquele, caso venham a ser oportunamente alegados ou deles tome o tribunal conhecimento oficioso.
Concluindo-se, pois, pela procedência do recurso.

III. Decisão:
Nos termos expostos, julga-se procedente o presente recurso do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que permita o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 18 de Maio de 2010

José Adriano
Vieira Lamim
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[1]  Na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29/08.