Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ ADRIANO | ||
Descritores: | SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/18/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | UNANIMIDADE | ||
Sumário: | I – Em caso de suspensão provisória do processo, terminado o prazo dessa suspensão e concluindo o Ministério Público que o arguido não cumpriu integralmente as obrigações impostas, cumpre-lhe deduzir acusação para que aquele seja julgado pelo crime tido como indiciado. II – A “revogação” da suspensão não decore automaticamente do incumprimento muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo sobre a culpa ou a vontade de não cumprir por parte do arguido, podendo haver lugar, nomeadamente, à revisão das injunções, regras de conduta decretadas ou prorrogação do prazo até ao limite legalmente admissível. III - Porém, optando o Ministério Público pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao Ministério Público. O juiz de julgamento não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo e, com esse fundamento rejeitar a acusação. IV - Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | I. Relatório: 1. Considerando existirem fortes indícios da prática, pelo arguido João , de um crime de condução sem carta p. p. pelo art. 3.º n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3/01, o MP, findo o inquérito, propôs a suspensão do processo pelo prazo de três meses, com a imposição da seguinte regra de conduta: “inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória dos presentes autos”. Proposta que recebeu a concordância do arguido e da Mm.ª Juiz de Instrução e da qual foi aquele notificado por carta depositada no seu receptáculo postal em 5/01/2009. O arguido juntou comprovativo de se ter inscrito na escola de condução e de que foi emitida licença de aprendizagem. Decorrido o prazo de suspensão provisória do processo, o MP realizou pesquisa na base de dados “para conhecimento de eventual carta de condução de que o arguido seja entretanto titular”, tendo o resultado da pesquisa sido negativo. Deduziu então o MP, em processo comum, acusação contra o mesmo arguido, imputando-lhe o aludido crime de condução de veículo sem habilitação legal. Remetido o processo para julgamento, foi proferido no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Benavente o seguinte despacho: “O Tribunal é competente. Nos presentes autos o Ministério Público procedeu à suspensão provisória do processo com a imposição da seguinte regra de conduta ao arguido: inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória dos autos, que se iniciou em 10 de Janeiro de 2009. Em 16 de Janeiro de 2009 o arguido veio juntar aos autos a declaração que consta de fls. 33, emitida pela Escola de Condução ..., na qual se pode ler que o arguido estava, àquela data, inscrito na citada Escola, a fim de se habilitar à carta de condução para a categoria B, sendo detentor de licença de aprendizagem válida até 16.12.2010. Não obstante, findo o prazo de suspensão do processo e pese embora o cumprimento, pelo arguido, da regra de conduta que lhe havia sido imposta, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento do arguido em processo comum. Ora, a nosso ver, tal não é possível e coloca o Tribunal numa situação de repetição de um juízo de censura penal dos factos imputados ao arguido, que colide com o princípio ne bis in idem, podendo inclusivamente constituir nulidade, pois que determinou o emprego da forma comum quando no processo deveria, outrossim, ter sido determinado o arquivamento dos autos nos termos do disposto no art.° 282.º, n.° 3 do Código de Processo Penal, sendo que o processo não poderia nem pode ser reaberto. Tal basta, aliás, para se entender que o Ministério Público, tendo optado pela suspensão provisória do processo e não tendo ocorrido qualquer das situações previstas no art.° 282.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, viu precludida a possibilidade de fazer prosseguir a acção penal contra o arguido - motivo pelo qual a acusação deduzida nos autos não poderá ser recebida. Por tal motivo, rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público e determino o arquivamento dos presentes autos. Notifique.” 2. Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o MP, concluindo do seguinte modo: “1 - Não existe prova nos autos de que o arguido, no decurso da suspensão provisória do inquérito, tenha cumprido plenamente a regra de conduta acordada; 2 - Assim sendo, foi correctamente deduzida acusação contra o arguido ao abrigo do disposto no art.°282.°, n.°4, al. a) do C.P.P.; 3 - Ao rejeitar a acusação deduzida e ao determinar o arquivamento dos autos, a Mm.ª Juiz a quo violou o disposto no art.° 312.º, n.º 1 do C.P.P. Atento o exposto, sou do parecer que deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá ser proferido despacho admissão acusação deduzida e consequentemente designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, assim se fazendo Justiça.” 3. Não houve resposta do arguido. 4. Admitido o recurso, subiram os autos ao Tribunal da Relação, tendo a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer, ao abrigo do art. 416.º, do CPP, no sentido da improcedência do mesmo, defendendo que não existiu incumprimento da regra de conduta e em consequência não existiam condições legais para o recebimento da acusação. * 5. Cumprido o art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada disse o arguido. 6. Após exame preliminar foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência. *** II. Fundamentação: 1. Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer. No caso sub-judice, o recurso está limitado, pela sua natureza, a uma única questão: se podia ou não ter lugar a rejeição da acusação, nos termos em que o fez o despacho recorrido. * 2. Conforme referido supra, foi determinada a suspensão provisória do processo, por três meses, tendo sido imposta ao arguido a obrigação de: “inscrever-se e frequentar aulas em escola de condução, durante o prazo da suspensão provisória …” Foi feita prova nos autos de que o arguido se inscreveu na escola de condução. Não há, porém, qualquer prova de que tenha frequentado qualquer aula, muito menos que tenha frequentado as aulas durante o período da suspensão (três meses). No pressuposto de que o arguido não havia cumprido integralmente as obrigações impostas, o MP determinou o prosseguimento do processo, deduzindo acusação contra o arguido. Acusação que foi rejeitada por despacho judicial, com o fundamento de que o arguido cumpriu a regra de conduta imposta, colidindo a acusação com o princípio ne bis in idem, entendendo o magistrado judicial recorrido que, em vez de deduzir acusação, devia o MP ter determinado o arquivamento do processo. Determina o actual art. 281.º, do CPP[1] (Suspensão provisória do processo): 1 — Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos: a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza; d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; e) Ausência de um grau de culpa elevado; e f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir. 2 — São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta: a) Indemnizar o lesado; b) Dar ao lesado satisfação moral adequada; c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público; d) Residir em determinado lugar; e) Frequentar certos programas ou actividades; f) Não exercer determinadas profissões; g) Não frequentar certos meios ou lugares; h) Não residir em certos lugares ou regiões; i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões; l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime; m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso. 3 — Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido. 4 — Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas. 5 — A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação. 6 — Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1. 7 — Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1. Por sua vez, prevê o art. 282.º, do mesmo Código, sob o título “duração e efeitos da suspensão”: 1 — A suspensão do processo pode ir até dois anos, com excepção do disposto no n.º 5. 2 — A prescrição não corre no decurso do prazo de suspensão do processo. 3 — Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto. 4 — O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado. 5 — Nos casos previstos nos n.os 6 e 7 do artigo anterior, a duração da suspensão pode ir até cinco anos. Conforme se extrai do n.º 4 deste último normativo, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas, … se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta. Terminado o prazo da suspensão, o MP apreciou a situação e concluindo que o arguido não cumprira integralmente as obrigações impostas, deduziu acusação. Solução perfeitamente legal, porque expressamente prevista naquele normativo. Tal opção em nada colide com o invocado princípio ne bis in idem, não sofrendo aquele n.º 4 do art. 282.º, de qualquer inconstitucionalidade. Incumprindo o arguido as injunções que anteriormente aceitara, não tem outro remédio senão responder pelo crime que cometera. Por isso é que a suspensão tem carácter provisório, não é uma suspensão definitiva. A suspensão provisória do processo não implica impunidade. É certo que, decorrido o respectivo prazo, a “revogação” da suspensão do processo – melhor dizendo, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento – não decorre automaticamente de qualquer incumprimento, muito menos quando ele é parcial, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido. Podendo, nomeadamente, haver lugar à revisão das injunções e regras de conduta decretadas, optando-se pela imposição de outras, ou pela prorrogação do prazo das anteriores até ao limite legalmente admissível, obviamente após prévio acordo do arguido assistente e juiz de instrução. Porém, optando o MP pelo prosseguimento do processo, deduzindo acusação, com base no invocado incumprimento, ainda que parcial, do arguido, esse juízo cabe exclusivamente ao MP. O juiz de julgamento, ao receber a acusação, não pode sindicar as razões da opção do MP, quando no final do prazo da suspensão este decide pelo prosseguimento do processo. Nesse caso, só o arguido se pode opor à opção do MP, requerendo, depois de notificado da acusação, a competente instrução, nela demonstrando que não houve incumprimento da sua parte ou, havendo-o, ele não ocorreu por culpa sua. Conseguindo, a final - comprovando-se a inexistência de incumprimento -, obter decisão de não pronúncia. Os seus direitos estarão sempre garantidos por essa via. Em contrapartida, se o arguido, notificado da acusação, nada diz, é porque aceita ser submetido a julgamento, logo, aceita que incumpriu culposamente as obrigações impostas no âmbito da suspensão do processo. Pelo que, quando o processo é remetido para julgamento, não pode o juiz rejeitar a acusação com o fundamento de que não houve incumprimento do arguido, pois este fundamento não vem previsto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, do CPP, como causa de rejeição. Inexistindo nulidades insanáveis - que, pelo despacho recorrido, não foram declaradas - ou outras questões prévias susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito, só restará ao juiz receber a acusação e designar data para julgamento. No caso dos presentes autos, o MP acusou por entender que havia incumprimento do arguido. Bem ou mal, isso não interessa para o caso, sendo certo que tal incumprimento, a existir, é meramente parcial - o arguido inscreveu-se na escola, não tendo, porém, demonstrado no processo que frequentou as aulas durante o período da suspensão, nem sequer que frequentou uma só aula -, não sendo aquela decisão isenta de críticas na medida em que, de forma algo precipitada, não se procurou confirmar, junto do arguido ou da escola de condução, qual a real situação relativamente à imposta frequência das aulas, antes se limitando a confirmar que o arguido ainda não obtivera carta de condução, facto que é irrelevante pois não faz parte das condições impostas. Labora também o Sr. Juiz de julgamento em erro, de sinal contrário, ao ter partido do pressuposto - até ao momento, não confirmado - de que o arguido havia cumprido as obrigações impostas. Com ou sem razão quanto a tal incumprimento, o certo é que não podia, com tal fundamento, rejeitar a acusação nesta fase processual. O arguido tem de ser submetido a julgamento, onde será feita a prova dos factos, inclusive dos que eventualmente tenham a potencialidade de afastar a responsabilidade criminal daquele, caso venham a ser oportunamente alegados ou deles tome o tribunal conhecimento oficioso. Concluindo-se, pois, pela procedência do recurso. III. Decisão: Nos termos expostos, julga-se procedente o presente recurso do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que permita o prosseguimento dos autos. Sem custas. Notifique. Lisboa, 18 de Maio de 2010 José Adriano Vieira Lamim ----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29/08. |