Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7166/2004-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – O estabelecimento de um sistema de catálogo no regime das escutas telefónicas tem ínsita a necessidade de que, antes de se poder ordenar a realização de um escuta telefónica, existam nos autos elementos que tornem verosímil a prática de um concreto crime incluído nesse elenco, não bastando a mera invocação da suspeita da sua prática por qualquer órgão de polícia criminal.
II – Tais elementos, embora não precisem de ter a consistência necessária para a dedução de acusação ou para a imposição das medidas de coacção mais graves, devem permitir «configurar uma séria e concreta hipótese criminosa» cuja verosimilhança só pode assentar em meios de prova identificáveis e utilizáveis no processo.
III – Esta séria e concreta hipótese criminosa não pode assentar em fontes anónimas ou meros informadores policiais.
IV – Não é legalmente possível ordenar a realização de uma escuta telefónica sem que primeiro tenham sido realizadas diligências de prova, de natureza diversa das intercepções, que permitam asseverar o necessário grau de verosimilhança da suspeita.
V – A falta de fundamentação de um despacho que autorize a realização de escutas telefónicas não gera a sua nulidade, mas a mera irregularidade (artigo 118º do Código de Processo Penal), irregularidade essa que deve ser arguida nos termos e nos prazos estabelecidos no artigo 123º do Código de Processo Penal.
VI – Todo o regime das escutas telefónicas estabelecido na lei processual penal visa propiciar um efectivo controlo por parte do juiz da execução deste meio de obtenção da prova.
VII – «Só um terceiro (institucionalmente assumindo funções diversas das de investigação) pode controlar a condução das investigações nos seus momentos críticos, quando se manifesta o conflito entre liberdades invioláveis e exigências da investigação, ali onde a procura da prova inevitavelmente lesa o segredo das comunicações».
VIII - A audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório, o que implica que as provas nela produzidas, para poderem ser utilizadas, têm que ter a participação (ou a possibilidade de participação) dos sujeitos processuais interessados.
Decisão Texto Integral: Texto integral:
(......)
3 – Esses recursos foram admitidos pelo despacho de fls. 1960.
4 – O Ministério Público respondeu às motivações apresentadas (fls. 1968 a 1977).

5 – Antes de ter sido proferido o referido acórdão, quando decorria a 1ª sessão da audiência de julgamento realizada em 18 de Junho de 2004 (acta de fls. 1559 a 1563), na altura em que o arguido  C. prestava declarações, o mandatário do arguido  P.  ditou para a acta o seguinte requerimento:
«No princípio do depoimento o arguido disse que não respondia às perguntas feitas pelo Exmº mandatário do arguido P., tendo respondido depois às perguntas do Exmº mandatário do arguido  V.. Assim, o arguido P., na pessoa do seu Exmº mandatário, solicita a V.Exª que pergunte novamente ao arguido C. quer ou não responder às perguntas feitas pelo Exmº mandatário do arguido Miguel Inácio.
É um direito que lhe assiste não responder a qualquer pergunta, contudo só veio mostrar que o arguido não quer ser confrontar com outros elementos constantes dos autos (interrogatórios, transcrições das cassetes que contradizem e põem em causa todo o seu interrogatório».
A srª juíza presidente, depois de garantir o contraditório, proferiu o seguinte despacho (fls. 1563):
«Atento o disposto no artigo 345º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal, e tendo sido já cumprido o dever de informação previsto no artigo 343º, nº 1, do Código de Processo Penal, indefiro o requerido.
Custas do incidente a cargo do requerente em meia UC».

6 – O arguido P. interpôs recurso desse despacho.

(....)
7 – Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 1686.

8 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada (fls. 1750 a 1755).

9 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.

(....)

II – FUNDAMENTAÇÃO
A impugnação da decisão de facto
11 – O recurso interposto pelo arguido P. incide, quase exclusivamente, sobre a decisão de facto, impugnando-a porque, em seu entender, para esse efeito, o tribunal valorou meios de prova a que não podia atender (escutas telefónicas, declarações do arguido  C. e declarações dos arguidos N. e O), porque apreciou incorrectamente as declarações prestadas pelos co-arguidos V. e D. quanto à responsabilidade criminal do recorrente e porque, sem qualquer fundamento, considerou provados diversos factos que fundam a sua responsabilização criminal e a decisão de perda de uma quantia monetária apreendida durante a busca efectuada à casa em que o recorrente residia.
Uma vez que se trata do único recurso interposto sobre a matéria de facto e porque da sua decisão pode resultar a necessidade de anulação do julgamento efectuado, o tribunal iniciará por aí a apreciação dos recursos interpostos.

A valoração da prova resultante da intercepção das conversações telefónicas efectuadas através dos telemóveis nºs 969 223 413 e 968 506 567
12 – O arguido P. considera nula a prova resultante da intercepção das conversações telefónicas efectuadas através dos telemóveis referidos[1] por quatro ordens de razões, a saber:
o porque, quando foi proferido o despacho que autorizou estas intercepções, não tinha ainda sido efectuada qualquer diligência de investigação que comprovasse a consistência da informação constante da informação de serviço junta a fls. 106;
o porque, naquela mesma altura, não estava demonstrado que para realizar a investigação do caso fosse necessário recorrer a escutas telefónicas;
o porque os despachos judiciais proferidos não se encontram fundamentados;
o porque não existiu um efectivo controlo judicial destas escutas realizadas.

13 – Para apreciar as questões enunciadas importa, antes do mais, descrever a tramitação imprimida ao processo, na parte em que respeita às escutas telefónicas efectuadas aos telemóveis referidos.
O processo nº 248/02.3PCSCR, que veio a ser incorporado no processo aberto em resultado da detenção dos arguidos N. e º, iniciou-se com uma comunicação efectuada pela Polícia de Segurança Pública ao Ministério Público, em 14 de Outubro de 2002, na qual se dava conta de existirem suspeitas de que o arguido C., que tinha sido baleado e conduzido com ferimentos a um estabelecimento hospitalar, se dedicava ao tráfico de droga (fls. 2 a 4 desses autos).
Remetido o processo à Polícia Judiciária, veio a ser junta, em 22 de Novembro seguinte, a já referida informação de serviço elaborada por um inspector da Polícia Judiciária em que, pela primeira vez, foi mencionado o nome de um P. (fls. 13). Quem subscreveu essa informação não mencionou qualquer fonte das suspeitas que deixou registadas, nem denotou que os factos que referiu fossem do seu conhecimento pessoal e directo. Desde logo sugeriu, no entanto, que fosse solicitada autorização para a interceptação das comunicações efectuadas através de 4 telemóveis, dois alegadamente utilizados pelo suspeito C. e dois outros alegadamente utilizados pelo referido P. (estes com os nºs ..... e ....), sugestão que foi aceite pelo inspector que redigiu a exposição de fls. 14 e pelo seu superior hierárquico, que a encaminhou para o Ministério Público.
A magistrada do Ministério Público requereu então ao sr. juiz a intercepção, por um período não inferior a 2 meses, daqueles quatro números telefónicos, a identificação dos aparelhos em que os cartões correspondentes fossem utilizados, a intercepção dos outros cartões utilizados nos mesmos aparelhos, o acesso às facturações detalhadas, aos registos de trace back, a localização celular e a intercepção de faxes e e-mails.
O sr. juiz proferiu então o seguinte despacho:
«Em face do alegado, autorizam-se as intercepções requeridas por 3 meses.
Solicite os demais elementos, como se promove – artigo 187º/1 a) e b) e 188º do C.P.P.»
Uma vez que os cartões a que correspondiam os nºs de telefone .... e ..... estavam a ser utilizados nos aparelhos com os IMEI ...... e ...... e que nesses mesmos aparelhos foram utilizados os cartões a que correspondiam os nºs ....... e ..... (fls. 139 e 144), esses mesmos cartões passaram a ser interceptados a partir de 11 de Dezembro de 2002 (fls. 118 e 120).
Como se vê de fls. 123 a 126, o sr. juiz tomou conhecimento, em 17 de Dezembro, do início das escutas telefónicas entretanto iniciadas.
Em informação datada de 9 de Janeiro de 2003 (fls. 153 a 156), a Polícia Judiciária indicou as conversações efectuadas através dos nºs ....... (Alvo 18 782-A) e ....... (Alvo 18 783-A) que considerava relevantes para a prova, juntando, em 3 CDs[2], as gravações de todas as sessões efectuadas através desses números de telefone.
Na sequência de requerimento do Ministério Público (fls. 158/9), o sr. juiz proferiu, em 13 de Janeiro de 2003, data em que o processo foi apresentado no tribunal, o despacho que, na parte relevante, se transcreve (fls. 161):
«Autorizo a transcrição das sessões gravadas em suporte digital (envelope anexo)».
A fls. 205 surge uma folha impressa com um rol de comunicações efectuadas através do nº .... (sessões 941 a 1286).
Em 4 de Fevereiro a Polícia Judiciária sugere que seja pedida autorização para a transcrição de várias sessões de comunicações telefónicas interceptadas, entre as quais as indicadas no rol de fls. 205, e para a intercepção (sem sugerir qualquer duração) do cartão de telemóvel com o nº ..... (já anteriormente sob escuta por via da autorização concedida para interceptar as comunicações efectuadas através dos cartões utilizados nos aparelhos em que estivesse a ser usado o cartão nº .......), bem como de todos os cartões utilizados no aparelho em que ele fosse usado e outras informações e registos relativos a esse mesmo cartão (fls. 218 a 220).
Na sequência de requerimento do Ministério Público (fls. 222/3, antigas fls. 129 e 130), em que também não constava qualquer referência à duração da intercepção requerida, o sr. juiz proferiu, em 5 de Fevereiro de 2003, data em que o processo foi apresentado no tribunal, o despacho que, na parte relevante, se transcreve (fls. 225 e verso):
«Fls. 129 e 130:
- ordeno a transcrição das sessões a fls. 111 a 113, referentes aos alvos 17 958, 18 782-A e 18 782-B, respectivamente».
...
- ordeno a intercepção das comunicações efectuadas através do telemóvel nº........, bem como do seu IMEI, mantendo a intercepção dos cartões neles utilizados, acesso às facturações detalhadas, registos de “trace back”, localização celular e intercepção de faxes e e-mails.
- ordeno que se solicite à TMN a identificação do respectivo titular do telemóvel supra referido ou os códigos de carregamento MB que conduzam à sua identificação».

14 – Narrado o procedimento adoptado nos presentes autos quanto às escutas telefónicas mencionadas, apreciemos então as questões colocadas pelo recorrente.
A intercepção de comunicações é «um instrumento que se caracteriza pela surpresa e pela sua natureza oculta que tem enorme eficácia para a investigação. Simultaneamente é também um instrumento particularmente intrusivo para as pessoas que a ela estão sujeitas porque, inevitavelmente, atinge no coração os direitos fundamentais da liberdade, da reserva da vida privada e do segredo próprios de todas as formas de comunicação entre os indivíduos[3]», direitos fundamentais esses que não pertencem apenas ao escutado mas a todos aqueles que com ele contactam, o que incrementa enormemente a danosidade social deste meio de obtenção de prova.
Daí que os legisladores constitucional e ordinário tenham um particular cuidado na regulamentação do seu âmbito de aplicação e das condições da sua realização para que assim se possa alcançar um equilíbrio entre, por um lado, as necessidades comunitárias de perseguir eficazmente os criminosos e, por outro, a tutela dos direitos dos visados.
Por isso, o nosso legislador apenas admitiu a realização de escutas telefónicas quanto a certos crimes taxativamente enunciados no nº 1 do artigo 187º do Código de Processo Penal e «se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova».
Ora, o estabelecimento de um sistema de catálogo tem ínsita a necessidade de que, antes de se poder ordenar a realização de um escuta telefónica, existam nos autos elementos que tornem verosímil a prática de um concreto crime incluído nesse elenco, não bastando a mera invocação da suspeita da sua prática por qualquer órgão de polícia criminal. Se assim não fosse estar-se-ia a permitir esvaziar completamente a garantia que a consagração de um tal sistema pretende instituir.
Tais elementos, embora não precisem de ter a consistência necessária para a dedução de acusação ou para a imposição das medidas de coacção mais graves[4], devem permitir «configurar uma séria e concreta hipótese criminosa[5]» cuja verosimilhança só pode assentar em meios de prova identificáveis e utilizáveis no processo. Quer isto dizer que esse juízo não pode assentar em fontes anónimas ou meros informadores policiais.
Por isso, não é legalmente possível ordenar a realização de uma escuta telefónica sem que primeiro tenham sido realizadas diligências de prova, de natureza diversa das intercepções, que permitam asseverar o necessário grau de verosimilhança da suspeita.
Ora, o procedimento adoptado nestes autos, infringe, de forma clara, esta exigência legal.
De facto, no que respeita ao arguido Miguel Inácio, a investigação começou precisamente pela realização de duas escutas a telefones que, de acordo com uma informação anónima, seriam por ele utilizados, não tendo sido antes realizada qualquer diligência para confirmar essa informação.
Não se pode, por isso, deixar de considerar nulas as escutas efectuadas nestas circunstâncias.

15 – Porque se actuou da forma descrita também não se comprovou se a realização das intercepções telefónicas eram um meio de obtenção de prova necessário para o desenvolvimento da investigação e se o mesmo podia ser substituído por outro menos lesivo para os direitos individuais, tal como exige a parte final do nº 1 do referido artigo 187º do Código de Processo Penal. É o que resulta do princípio da subsidiariedade das escutas telefónicas.
Note-se ainda que as autorizações conferidas judicialmente revestiam praticamente a maior extensão possível. Não só foi ordenada a intercepção de dois cartões correspondentes aos indicados números de telemóvel, como também a de todos os cartões utilizados nesses mesmos telemóveis, o que alarga enormemente os limites da autorização concedida e dificulta o seu controle. Para além disso, foi permitido o acesso às facturações detalhadas, aos registos de trace back, à localização celular e a intercepção de faxes e de e-mails.
Também por esse motivo deveriam ser declaradas nulas aquelas duas escutas efectuadas.

16 – Considera o recorrente que os despachos que autorizaram as escutas não se encontram fundamentados, o que se comprova, sem necessidade de qualquer outra observação, pela transcrição que deles se fez.
Porém, no nosso sistema processual, a falta de fundamentação de um despacho não gera a sua nulidade, mas a mera irregularidade (artigo 118º do Código de Processo Penal), irregularidade essa que deveria ter sido arguida nos termos e nos prazos estabelecidos no artigo 123º do Código de Processo Penal.
Uma vez que o recorrente não arguiu tempestivamente essa irregularidade, deve considerar-se a mesma sanada.

17 – Fundamenta ainda o recorrente a sua pretensão na falta de controlo judicial das escutas telefónicas realizadas.
Como já sustentámos no acórdão proferido no processo nº 7140/03, de 14 de Dezembro de 2003, todo o regime estabelecido na lei processual penal visa propiciar um efectivo controlo por parte do juiz da execução deste meio de obtenção da prova, controlo este que, entre outras coisas, não pode deixar de passar:
- pelo estabelecimento de um prazo relativamente apertado para a realização das intercepções e gravações ou, caso isso não aconteça, pelo acompanhamento das operações com uma proximidade que permita o tempestivo conhecimento dos seus resultados, para as fazer cessar logo que deixem de ser imprescindíveis;
- pelo acompanhamento próximo das diligências autorizadas que, no mínimo, se deve traduzir no imediato conhecimento, no fim do prazo estabelecido, do resultado das gravações efectuadas[6];
- pela selecção, feita pessoalmente pelo juiz, das sessões a transcrever uma vez que, dado o sistema por que o nosso Código optou[7], só o juiz pode aqui garantir a imparcialidade da selecção dos elementos de prova, à charge et à décharge, e que ela não reflicta apenas a perspectiva da acusação[8].
Ora, o procedimento descrito demonstra à saciedade que o sr. juiz não exerceu nenhum dos poderes que a lei especialmente lhe confiou, apesar de os elementos lhe terem sido tempestivamente fornecidos pela autoridade policial competente. Limitou-se a assumir um papel de legitimação formal, convalidando tudo quanto lhe foi sugerido pela Polícia Judiciária e requerido pelo Ministério Público, sem ouvir as gravações efectuadas, sem proceder pessoalmente à selecção do que, quer na perspectiva da acusação, quer na da defesa, considerava relevante para a descoberta da verdade ou para a prova e sem mesmo, no último caso, ter estabelecido prazo para a intercepção que autorizou.
Com o devido respeito por todos os sujeitos e intervenientes processuais é oportuno recordar, como o faz Paola Balducci, que «a clara dicotomia entre as funções de garantia (do juiz) e a de investigação (do órgão de acusação), ultimamente reforçada pelas normas sobre o “processo justo”, é uma premissa indispensável. Só um terceiro (institucionalmente assumindo funções diversas das de investigação) pode controlar a condução das investigações nos seus momentos críticos, quando se manifesta o conflito entre liberdades invioláveis e exigências da investigação, ali onde a procura da prova inevitavelmente lesa o segredo das comunicações»[9].
Ora, foi precisamente essa função[10] que o sr. juiz não desempenhou, quanto a estas escutas, enquanto elas decorreram.
Daí que, também, por esse motivo, houvesse que declarar nulas as escutas efectuadas aos telefones nºs .... e ....., com a consequente proibição de valoração da prova através delas obtida[11].

A valoração das declarações prestadas em audiência pelo arguido  C. quanto à responsabilidade criminal do recorrente
18 – Resolvido o problema das escutas telefónicas, encaremos agora a questão da possibilidade de serem valoradas as declarações prestadas em audiência pelo arguido C. na parte em que elas se referem à responsabilidade criminal do recorrente.
Tal matéria é objecto (embora indirecto e antecipado) do recurso interposto pelo arguido P. de um despacho proferido em audiência pela srª juíza presidente e do recurso interposto por esse mesmo arguido do acórdão que veio a ser proferido a final.
É inquestionável que o arguido  C., como qualquer outro arguido, tem direito ao silêncio (nº 1 do artigo 343º do Código de Processo Penal) e que não pode ser desfavorecido de qualquer forma se exercer esse seu direito. Pode, portanto, não responder a qualquer pergunta formulada pelo tribunal sobre o objecto do processo ou pode recusar-se a responder, por iniciativa própria ou por recomendação do seu defensor, apenas a alguma ou algumas das perguntas formuladas (artigo 345º, nº 1).
Porém, a questão que aqui se coloca é outra. É a da possibilidade de as declarações prestadas por um arguido, quando ele se recusou a responder às perguntas sugeridas pelo defensor de um outro arguido, poderem servir para fundamentar a responsabilidade criminal deste último.
Não se trata de um problema novo, julgando nós até que as eventuais dúvidas sobre essa questão se encontrassem já há muito ultrapassadas.
É que a resposta ao problema enunciado, para além de resultar directamente da aplicação do disposto no artigo 327º, nº 2, do Código de Processo Penal, extrai-se dos princípios constitucionais  que regulam o processo penal, em especial do nº 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, disposição em que se consagra que a audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório, o que implica que as provas nela produzidas, para poderem ser utilizadas, têm que ter a participação (ou a possibilidade de participação) dos sujeitos processuais interessados, participação essa realizada nos termos e formas previstos na lei. Ora, uma das formas de exercer o contraditório quanto às declarações prestadas por um arguido consiste precisamente na possibilidade conferida ao defensor de sugerir ao presidente do tribunal a formulação de perguntas (nº 2 do artigo 345º).
Esta mesma questão foi até já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (Acórdão nº 524/97, in DR II Série de 27/11/1997, p. 14 621 a 14 633) que teve o ensejo de «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, a norma extraída com referência aos artigos 133º, 343º e 345º do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do seu direito ao silêncio» (p. 14 631).
Por tudo isto, as declarações prestadas pelo arguido  C. não podiam ter sido utilizadas para fundamentar a responsabilização criminal do recorrente, sendo perfeitamente legítimo o requerimento formulado pelo seu mandatário na audiência, através do qual pretendia deixar clara a limitação que para ele derivava da atitude, em si perfeitamente legítima, assumida pelo co-arguido  C..
Por isso mesmo foi infundamentado o seu indeferimento e a condenação em custas do requerente, condenação essa que não pode deixar agora de ser revogada.

A valoração das declarações prestadas pelos arguidos Neusa e Pina quanto à responsabilidade criminal do recorrente
19 – Por fim, o arguido P. considera que o tribunal não podia ter valorado as declarações prestadas a seu respeito pelos arguidos N. e Q. a uma vez que se tratariam de declarações indirectas que apenas transmitiam aquilo que lhes havia sido relatado pelo arguido  C. não relatando qualquer conhecimento directo e pessoal dos arguidos.
Não sofre contestação que, de acordo com o artigo 129º do Código de Processo Penal, disposição que deve, por maioria de razão, ser aplicada às declarações de co-arguidos, «se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova ...».
Ora, ouvidas as gravações das declarações prestadas pelos arguidos N. e Q. na audiência de julgamento constata-se que, efectivamente, a primeira arguida declarou ao tribunal que não conheceu nem contactou pessoalmente com o recorrente, só conhecendo o seu nome porque ele lhe foi referido pelos arguidos Q. e  C.
Uma vez que a arguida N. não revelou qualquer conhecimento directo relativo ao recorrente e o que sobre ele disse não extravasa aquilo que foi revelado pelas suas fontes, quando foram ouvidas em tribunal, do seu depoimento não se extrai qualquer elemento de prova que assuma relevância autónoma.
O mesmo não acontece quanto ao arguido Q., se bem que durante as declarações que prestou em audiência ele tenha declarado duas coisas distintas e, pelo menos aparentemente, contraditórias. Num primeiro momento disse que tinha estado, julga-se que por duas vezes, com o recorrente em Santa Cruz durante a 1ª deslocação à Madeira, vindo depois a afirmar o contrário, dizendo que o que sabia quanto à actividade do Inácio lhe tinha sido transmitido pelo arguido C., única pessoa com quem contactava. Independentemente da credibilidade de cada uma destas versões[12], o certo é que, na parte em que elas constituírem declarações indirectas, o por ele relatado não pode constituir fonte autónoma de prova a considerar pelo tribunal.

As consequências da apreciação até aqui efectuada
20 – Chegados a este ponto, importaria agora analisar a prova que se considerou poder ser valorada pelo tribunal para assim decidir se os pontos da matéria de facto impugnada pelo arguido Miguel Inácio deveriam ser considerados provados ou se, pelo contrário, deveriam ser julgados como não provados.
Acontece, porém, que se assim se procedesse, estar-se-ia a desconsiderar que o Ministério Público, em face da prova produzida e analisada até um determinado momento da audiência, prescindiu da inquirição da restante prova pessoal arrolada, atitude que, possivelmente, não tomaria se soubesse que a prova susceptível de valoração era substancialmente diferente.
Por isso, a decisão da matéria de facto apenas com base numa parte da prova que poderia ter sido produzida na audiência de julgamento defraudaria as expectativas da acusação quando decidiu prescindir da restante prova arrolada.
Quer isto dizer que a declaração de nulidade das escutas telefónicas efectuadas àqueles dois telemóveis e as restantes declarações de proibição de valoração de prova têm de implicar a anulação da audiência de julgamento realizada porque o seu decurso pode por elas ter sido afectado (nº 1 do artigo 122º do Código de Processo Penal), o que, por sua vez, obsta a que se apreciem as restantes questões colocadas neste e nos demais recursos interpostos pelos arguidos.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido  P. do despacho proferido a fls. 1563, revogando-o, com a consequente revogação da condenação em custas nele estabelecida.
b) conceder provimento ao recurso interposto pelo mesmo arguido do acórdão proferido, considerando nulas as escutas realizadas aos telefones com os nºs .... e ..., o que acarreta a proibição de valoração da prova por esta forma obtida, proibição esta que se estende às declarações prestadas pelo arguido  C., na parte em que elas incidiam sobre o comportamento do recorrente, e às declarações prestadas pelos arguidos N. e Q., na medida em que elas traduzam um conhecimento indirecto dos factos a que se reportam.
c) anular a audiência de julgamento realizada.
d) não conhecer, por terem ficado prejudicadas, as demais questões suscitadas no recurso do arguido  P. e nos restantes recursos interpostos pelos outros arguidos.
²

Lisboa, 24. de  Novembro. de 2004


(Carlos Rodrigues de Almeida)

(Horácio Telo Lucas)

 (António Rodrigues Simão)

____________________________________________________________
[1] Embora o recorrente não identifique, em concreto, os telemóveis a que se refere, dizendo apenas que são nulas «as intercepções referenciadas como sendo dos telemóveis do arguido Miguel Inácio», considera-se que ele se refere a estes telemóveis uma vez que são eles que, no apenso I, estão atribuídos ao recorrente.
[2] Dois CDs do Alvo 18 782-A (sessões nºs 1 a 662 e 663 a 834, correspondentes aos períodos que medeiam 11/12/02 e 30/12/02 e 30/12/02 e 6/1/03) e um CD do Alvo 18 783-A (sessões 1 a 104, relativas ao período de 11 a 16/12/02).
[3] BALDUCCI, Paola, in «Le Garanzie nelle Intercettazioni tra Costituzione e Legge Ordinaria», Giuffrè, Milano, 2002, p. 26.
[4] Por isso o legislador se terá afastado, em parte, da redacção do artigo 258º do “Progetto Preliminare del Códice di Procedura Penale» de 1978 e, ainda mais, do artigo 267º do Código de Processo Penal italiano de 1988, que exige «gravi indizi di reato».
[5] Exigência que, se bem que fundada num texto legal diferente, faz a jurisprudência italiana (BALDUCCI, ob. cit. p. 101).
[6] Pelo menos logo que termine o prazo estabelecido pelo juiz para a intercepção e gravação, o OPC deve, em cumprimento do nº 1 do artigo 188º do Código de Processo Penal, apresentar imediatamente ao magistrado judicial que for, na altura, competente o auto referido nesse número, a que devem ser juntos a carta da operadora comprovativa da data do início das operações e os suportes em que todas as gravações efectuadas a esse número de telefone se encontrem registadas para que o juiz as ouça e proceda à selecção das que considerar relevantes.
[7] Note-se que, por exemplo, o Código de Processo Penal italiano atribui a selecção à acusação e à defesa, desempenhando o juiz apenas um papel de filtro a quem compete suprimir os registos cuja utilização seja proibida e aqueles que, não tendo interesse para a prova, violarem a privacidade dos interessados (artigos 268º e 269º). Sobre este regime veja-se, por exemplo, TONINI, Paolo, in «Manuale di procedura penale», 4ª edizione, Giuffrè, Milano, p. 179 e segs.
[8] Não afecta esta exigência o facto de, através do Decreto-Lei nº 320-C/2000, de 15 de Dezembro, ter sido alterada a redacção do nº 1 do artigo 188º do Código de Processo Penal, tendo-se aditado ao texto original a frase «com indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova» uma vez que a manifestação da perspectiva da acusação não afasta o dever de imparcialidade do juiz. Não se pode, no entanto, deixar de assinalar que a postura que levou a esse acrescento é essencialmente a mesma que levou à inversão da doutrina do Parecer nº 92/91, traduzida no Parecer Complementar mencionado. Ambas parecem reflectir uma tendência para algum desequilíbrio entre a acusação e a defesa, desequilíbrio esse que torna ainda mais relevante a intervenção do juiz.
[9] In BALDUCCI, ob. cit. p. 100. No original italiano fazia-se referência ao artigo 15º da Constituição desse Estado, que assegura a liberdade e a inviolabilidade da correspondência e de outras formas de comunicação.
[10] Que Mireille Delmas-Marty (in «Procedures Pénales d’Europe», PUF, Paris, 1995, p. 457) caracteriza dizendo que «o juiz exerce um papel regulador do comportamento da polícia e, se for caso disso, do Ministério Público, na condução das investigações. Ele aparece aqui no seu papel constitucional clássico de garante das liberdades a partir do momento em que o desenrolar do processo comporte um ataque significativo aos direitos individuais». Enzo Zappalà fala do juiz da fase preparatória do processo como «um momento de garantia para as partes» (in «Liberta Personale e Ricerca della Prova», Giuffrè, Milano, 1995, p. 56.
[11] Neste sentido ver, por último, CUNHA, José Manuel Damião da, in «A Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria de Escutas Telefónicas», in «Jurisprudência Constitucional», nº 1, Janeiro-Março de 2004, p. 50 a 56.
[12] Faz-se apenas notar que os nºs de telefone do arguido Pina, por ele indicados a fls. 46 e 83, constam da lista dos contactos do recorrente constantes do papel apreendido ao recorrente junto a fls. 454