Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9198/2006-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I. A habilitação incidente distingue-se da habilitação acção e com ela visa-se substituir uma das partes, colocando-se o seu sucessor no lugar que o falecido, extinto ou transmitente, ocupava no processo pendente a fim que a causa prossiga com aquele ou contra aquele.
II. Assim, o habilitado apenas vai ocupar a posição do falecido, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este competiam, estando sujeito à sua anterior actuação processual, devendo aceitar a tramitação no estado em que a encontrar e apenas impulsionando para o futuro e dentro destes limites, o processo.
III. Consequentemente, tendo, numa acção de despejo, com litisconsórcio necessário passivo, os primitivos réus sido citados por carta de 04.05.2000, quando um réu já havia falecido, não tendo o sobrevivo contestado, tendo sido suspensa a instância e os sucessores do defunto declarados habilitados por sentença de 15.07.2004 que logo a estes notificada, e proferida decisão final em 17.02.2006, não pode o habilitado recorrer desta invocando a nulidade da sua falta de citação para contestar a acção, uma vez que a mesma já tinha sido operada e porque, no largo lapso de tempo que mediou entre estas duas últimas datas, ele nada disse nos autos, ao arrepio do princípio da auto-responsabilização dos intervenientes processuais.
(CM)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1.
J e I, instauraram contra M e L acção declarativa de condenação com processo sumário e pedido de despejo.

Alegaram, em síntese, que são donos da fracção autónoma que melhor identificam.
Que tal fracção foi dada de arrendamento aos réus pela anterior proprietária.
Que pelo menos desde 1991 os réus deixaram de ter a sua residência permanente no locado.
Pedem seja decretada a resolução do contrato e a condenação dos réus a entregarem-lhe, livre e devoluto, o arrendado e, ainda, a condenação destes a pagarem-lhe uma indemnização correspondente ao valor presumível que lhes seria possível cobrarem desde 1996, caso os réus lhe tivessem restituído o mesmo, o que, à data da propositura da acção (Março de 2000), ascendia a 2.880.000$00, acrescida das verbas mensais vincendas à razão de 60.000$00 cada.

Foram citados os réus, por carta de 04.05.2000, sendo que os dois avisos de recepção se mostram assinados pela ré.
Em 24.05.2000 M, na qualidade de hóspede do réu, informou nos autos que este havia falecido em 10.03.1998.
Em 21.02.2001, foi proferido despacho a declarar suspensa a instância.
Em 04.05.2001 os autores requereram a habilitação de herdeiros do falecido.
Em 15-07.2004 foi proferida sentença que julgou habilitados Maria e P, respectivamente esposa e filho do falecido.
Estes foram notificados desta decisão por carta datada de 08.10.2004.
A primitiva ré, L juntou aos autos em 28.10.2004, procuração por si outorgada a ilustre advogada que de imediato revogou.
Em 17.02.2006 foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato em causa e condenou os réus a devolverem aos autores, livre e devoluto, o locado.
Para tanto deram-se como provados os factos articulados pelos autores, com base na falta de contestação dos réus, depois de regularmente citados, considerando-se, outrossim, que os habilitados nada requereram nos autos.

2.
Inconformado recorreu o habilitado Paulo Santos.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida enferma de nulidade por violação dos arts.3º nº3, 194º alínea a), 202º, 204º nº2 e 206º nº1, todos do C.P.C..
2. Foi preterida uma formalidade essencial do processo civil que é a citação de um sujeito processual com interesse em contradizer a acção.
3. Em virtude da morte do seu pai, foi o recorrente, num incidente de habilitação, habilitado na acção principal.
4. Contudo após ter sido julgada a habilitação, não foi o recorrente citado para contestar a acção.
5. Tendo o Mmº. Juiz proferido sentença sem que tenha sido dada a possibilidade ao recorrente de exercer o seu direito ao contraditório.
6. Consequentemente, é nulo todo o processado posterior à sentença que considerou o recorrente habilitado para a acção principal, tudo nos termos do disposto no art.194º, alínea a) do C.P.C..
7. Esta nulidade é de conhecimento oficioso atento o disposto nos arts. 202º e 206º do C.P.C., logo deveria ter sido julgada pelo Mmº. Juiz, que ao nada ter feito violou também o disposto no art.668º alínea d) do C.P.C..
8. Acresce ainda que a falta de citação do recorrente não lhe deu a possibilidade de contestar a acção, e exercer o seu contraditório, o que viola também o disposto no art.3º nº3 do C.P.C.
9. A sentença violou os artigos 3º., nº. 3, 194º., - alínea a), 195º., nº. 1 – alínea a), 202º., 204º., nº. 2, 206º., nº. 1 e 668º., - alínea d) todos do C.P.C.

3.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não constitui excepção – o teor das conclusos define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
Nulidade da sentença por falta de citação do habilitado e por preterição do princípio do contraditório.

4.
Os factos a considerar são os resultantes do relatório supra.

5.
Apreciando.
Desde logo o recorrente incorre nalguma confusão no que concerne ao que devem ser consideradas nulidades do processo e nulidades da sentença.
Pois que a nulidade que o recorrente assaca à sentença, não se fundamenta em vícios que a afectem, na medida em que não integram os constantes do elenco taxativamente estatuído no artº 668º do CPC, como inquinadores da decisão final.
Apresentando-se elas como nulidades do processo, previstas e arguíveis nos termos do artº 193º e segs do CPC.

Todavia sempre se dirá que…
A habilitação a que se refere o artº 371º e sgs. Do CPC é a chamada habilitação incidente da causa a qual se distingue da chamada habilitação-acção ou habilitação principal.
Nesta a habilitação é o objecto próprio e único de processo com esse exacto fito instaurado e com ela pretende justificar-se que se tem a qualidade de herdeiro do falecido para fins patrimoniais gerais, isto é, sem atinência a uma certa causa em que o falecido fosse parte e podendo a sentença de habilitação ser oposta a qualquer pessoa, tendo um alcance geral e eficácia erga omnes.
Aquela surge apenas na pendência de processo já em curso e destina-se a habilitar uma pessoa para determinado fim especial. A sentença de habilitação tem os seus efeitos limitados ao processo em que o incidente foi despoletado e apenas pode ser oposta às respectivas partes.
Pode verificar-se apenas em certos casos, vg. quando uma parte falece. Constitui uma forma de modificação subjectiva da instância. E com ela visa-se substituir uma das partes, colocando-se o seu sucessor no lugar que o falecido, extinto ou transmitente, ocupava no processo pendente a fim que a causa prossiga com aquele ou contra aquele.
Ou seja o habilitado, pelo menos fundamentalmente e por via de regra, apenas vai ocupar a posição do falecido, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este competiam, estando sujeito à sua anterior actuação processual, devendo aceitar a tramitação no estado em que a encontrar e apenas impulsionando para o futuro e dentro destes limites, o processo.
Assim e no rigor dos princípios, apenas deve habilitar-se não todo e qualquer sucessor do defunto, mas sim e somente aquele que, em relação à causa, tal como ela é configurada pelas partes (vista a causa petendi invocada e o pedido formulado), maxime o autor, tenha um interesse juridicamente relevante e atendível, por o direito ou obrigação do falecido lhe ser transmissível e que ele possa condicionar.
Não fazendo sentido que seja admitido a intervir nos autos, por habilitação, os sucessores do de cujus quando os direitos ou obrigações que este pretendia exercer ou cumprir têm carácter pessoal ou quando a causa, em vez de prosseguir, tem necessariamente de findarCfr. Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, 3ª ed. P.576.

Assim, in casu e no rigor dos princípios, é pelo menos duvidoso que os sucessores do primitivo réu devessem ser julgados habilitados.
Pois que a causa de pedir dos autos que funda o pedido de resolução do contrato de arrendamento com o consequente despejo é a falta de residência permanente dos réus, facto este que é pessoalmente a estes imputado pelos autores.
Sendo que, uma vez apurado tal facto, nada o habilitado poderá fazer para obstar ao deferimento do pedido.
Mesmo que o habilitado pretendesse invocar a transmissão do arrendamento para si, tal pretensão nunca poderia proceder se se decretasse a resolução do contrato por falta de residência permanente, já que aquela pressupõe a existência de um contrato válido e eficaz.
Por outro lado, o pedido de indemnização é uma mera questão de direito que será sempre apreciada pelo tribunal com a liberdade que a lei lhe confere, independentemente das posições assumidas pelas partes.
Note-se que se não se suspender a instância e a sentença transitar a favor de autor ou contra réu falecido ela será válida e vinculará os respectivos sucessores, salvo caso de impossibilidade “ex rerum natura”, designadamente quando existe condenação em prestação infungível – Cfr. Prof. João de Castro Mendes, in Lições de Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 2º vol. p. 244.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, há que atentar que os primitivos réus foram citados para contestar a acção por carta de 04.05.2000, tendo a ré assinados os dois avisos de recepção e sem que tivesse informado o tribunal do decesso do companheiro, sendo que este facto foi dado a conhecer ao processo por um terceiro, auto-intitulado hóspede do falecido.
E o certo é que, até à data em que foi declarada a suspensão da instância, quase um ano depois – em 21.02.2001 – a ré não contestou.
Ora se tivesse contestado ou, por qualquer outro modo, intervindo nos autos e até porque nos encontramos perante um caso de litisconsórcio necessário, visto que é alegado o arrendamento aos dois, tal contestação aproveitaria ao outro réu – artºs 26 º e 485º al.a) do CPC - e, consequentemente, aos futuros sucessores, habilitados ou não.
Mas o certo é que não houve contestação. E, pelo que se viu, não podem agora os habilitados suprir as faltas dos primitivos réus, pois que lhes sucedem na sua posição processual, a qual tem a configuração resultante da sua anterior actuação.

Nem eles deviam ser citados, como pretendem, para os termos da acção.
Em primeiro lugar por a citação já tinha sido efectivada nas pessoas dos inicialmente demandados.
Por outro lado há que considerar que o presente incidente de habilitação, deveria, no rigor do princípios, tramitar no próprio processo, nos termos do artº 373ºnº1 do CPC, pois que estando os sucessores já habilitados por escritura notarial, a sua legitimidade estava já reconhecida por documento.
O que, naturalmente, impediria a citação, na medida em que os habilitados já estavam no processo e não eram a ele chamados pela primeira vez.
Mas nem o facto de o incidente ter sido processado por apenso afasta este entendimento, pois que nem por isso os habilitados deixaram de ter conhecimento da tramitação dos autos principais. Assim e quando muito seria defensável que eles poderiam ser notificados para os termos destes autos.

O elemento histórico da interpretação tem, outrossim, aqui a sua relevância.
Como expende o Prof. Alberto dos Reis, ob. Cit. p.588:
«Na vigência do CPC de 1876 foi objecto de controvérsia saber se, falecido o réu depois de citado para a causa, os habilitados como seus sucessores tinham, ou não, de ser citados, por sua vez».
Tendo o STJ em Assento de 19.02.1932 entendido que não.
E o artº 377º do CPC de 1939, correspondente, grosso modo, ao actual artº 373º, estatuía que quando fossem julgados habilitados os representantes da parte falecida, se «ordenasse a sua notificação, para, com eles, prosseguirem os termos da causa, salvo se a habilitação tiver sido requerida por eles».
Só que no código de 1963 e na actual redacção dos artigos atinentes à figura da habilitação, tal exigência deixou de constar.
O que se compreende, pois que, como se disse, o habilitado, ao longo do incidente, teve naturalmente contacto com os autos principais e tomou conhecimento do seu estado e tramitação.
E sendo que, nos termos do artº 284, nº1 al. A) do CPC a suspensão cessa quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida ou extinta, naturalmente que é em função dessa notificação e a partir dela que o habilitado, se assim o entender, deve intervir no processo, dentro dos supra referidos parâmetros.
Certo é que se tal notificação for feita com essa advertência, mais vincado fica esse direito do habilitado. Mas se o não for, cometer-se-á, quando muito, uma mera irregularidade que não influi na decisão da causa.
Sendo que, em processo de cariz meramente privatístico, como o presente, no qual apenas ou essencialmente estão em causa interesses de natureza patrimonial, emerge plenamente o princípio do dispositivo no qual se inclui o sub-princípio da auto-responsabilização das partes, as quais devem, diligentemente, agir por forma zelosa dos seus direitos e interesses.
Ora no caso sub júdice, os habilitados - o recorrente e a sua mãe - foram notificados da sentença de habilitação por carta de 08.10.2004 – fls.66 e 67 do apenso - e até que foi prolactada a sentença final, em 17.02.2006, quase um ano e meio depois, nada disseram nem vieram ao processo, não obstante terem conhecimento da sua tramitação.
Assim sendo sibi imputet.
Não havendo – desde logo porque inexigível – falta de citação do recorrente e não se podendo concluir, da análise de todo o processo que tenha sido praticado acto ou omissão que, cerceando-lhe ou escamoteando-lhe qualquer direito processual, o tivesse impedido de intervir nos autos para neles exercer os seus direitos operando cabalmente o exercício do princípio do contraditório.
Não se mostrando, destarte, violadas as normas indicadas pelo recorrente.
Aliás o que resulta de todo o processo é que todos os sujeitos do lado passivo primaram pela inacção, e se desinteressaram da sorte do mesmo, o que mais relevante se torna quando se verifica que tal aconteceu por larguíssimos períodos de tempo que medearam entre cerca de ano e meio e dois anos, nem sequer se dando ao trabalho, ao que parece, de, neste interim, consultarem os autos e requererem o que tivessem por conveniente.

6.
Decisão.
Termos em que se acorda julgar improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 2007.02.06.
(Carlos Moreira)
(Isoleta Almeida Costa)
(Rosário Gonçalves)