Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
766/13.8TTALM.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O auto de conciliação exarado nos Serviços do Ministério Público, sob a égide do respectivo magistrado, e subscrito por este, pelo trabalhador e pela entidade empregadora, do qual decorre a assunção de uma dívida, não constitui documento autêntico ou autenticado e, portanto, por essa via, não constitui título executivo.
II - A interpretação das normas do art. 703º do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança.
III – Em consequência, deve prosseguir seus termos a execução instaurada após a entrada em vigor do novo CPC, com base em documento particular emitido em data anterior e então exequível.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório

AA, residente  (…), em Almada, em 09 de Outubro de 2013, instaurou a presente acção executiva para pagamento de quantia certa contra BB, Lda, com sede na (…), Charneca da Caparica, dando à execução um acordo extrajudicial de cessação do contrato de trabalho com confissão de dívida, celebrado na presença do Procurador da República, junto do Tribunal de Almada, em 28 de Maio de 2013, e nos termos do qual a executada se comprometeu a pagar ao exequente a quantia de 2.255 €, a titulo de compensação global pela cessação do contrato, em seis prestações mensais, no valor de 375,83€ cada uma, vencendo-se a primeira no dia 1 de Junho de 2013 e as seguintes em datas iguais dos meses imediatamente subsequentes, mediante transferência bancária.
Nos termos da cláusula 5º desse acordo “Pelo requerente e pela requerida foi dito que ficaram cientes que o presente acordo tem validade de título executivo”
O acordo foi assinado pelo trabalhador, pelo empregador e pelo Procurador da República.
Alega o exequente que não lhe foi paga qualquer quantia.
A Secção de Processos concluiu os autos à Mma Juíza, reportando dúvidas sobre se o auto de tentativa de conciliação, de onde resulta o acordo, é de considerar título executivo, nos termos do art. 703º do CPC.
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A Mma Juíza a quo proferiu decisão nos seguintes termos
Todas as execuções têm por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva – artigo 45.º, n.º 1, do Código de Processo Civil1 (Actual artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil com a redacção da Lei 41/2013, de 26/06).
De harmonia com o disposto no artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha posição de devedor.
Os títulos executivos mostram-se enumerados no artigo 703.º do Código de Processo Civil –
1 — À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 — Consideram -se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.
Anteriormente o artigo 46.º do Código de Processo Civil 2 (2 Na versão anterior à entrada em vigor da Lei 41/2013, de 26/06.) dispunha que eram títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto.
De harmonia com o disposto no artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013 será de aplicação às execuções iniciadas o disposto no Código de Processo Civil, aprovado por anexo à mesma, relativamente aos títulos executivos, após a entrada em vigor desta lei.
A presente execução iniciou-se em Outubro de 2013.
Assim, e tendo em atenção que o processo executivo se iniciou em data posterior à entrada em vigor da Lei 41/2013, não se poderá deixar de entender que acordo extrajudicial apresentado não integra qualquer das categorias supra enunciadas no artigo 703.º do Código de Processo Civil, já que não existe qualquer disposição especial que lhe atribua força executiva e por outro lado não se trata de um documento autêntico ou autenticado por notário ou por outra entidade ou com competência para tal.
Assim, e de harmonia com o disposto no artigo 726.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, e por manifesta falta de título executivo indefiro liminarmente o requerimento executivo.
Custas pelo exequente – artigo 535.º do Código de Processo Civil.”(sic)
Inconformado, o exequente, representado pelo Ministério Público, interpôs recurso, concluindo que:
(…)
Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto do Recurso
Nos termos do disposto nos art 635º nº 4 e 639º nº1 e 3 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013 de 26-06, aplicáveis ex vi do art. 1º, nº 2, alínea a) e 87º nº 1 do Código de Processo do Trabalho, é pelas conclusões que se afere o objecto do recurso, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
As conclusões, como afirmou Alberto dos Reis, “devem emergir logicamente do arrazoado feito das alegações. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (sic Código de Processo Civil  Anotado, reimpressão, vol. V, 1984, pág 359).
Tal significa que não pode conhecer-se de questões constantes das conclusões que não tenham sido explanadas nas alegações (motivações) e vice-versa, não pode conhecer-se de questões que, embora abordadas nas alegações, não constem das conclusões.
Assim, a única questão que cumpre decidir é se o documento dado à execução constitui ou não título executivo.
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III – Fundamentação de Facto
        Os factos relevantes para a questão que nos ocupa são os que constam do antecedente Relatório.
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IV – Fundamentação de Direito
Cumpre decidir se o Autor está ou não munido de título executivo para prosseguir a presente execução.
Desde já se diga que, quanto a nós, a solução abraçada no despacho recorrido não se coaduna com as disposições legais e constitucionais ao caso aplicáveis.
Vejamos
A presente acção executiva deu entrada em juízo em 9 de Outubro de 2013.
Tem assim aplicação ao caso o Código de Processo do Trabalho (CPT) vigente e o Código de Processo Civil (CPC) aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho (cfr. art. 8º da Lei Preambular).
Nos termos do disposto no art. 88º do CPT “Podem servir de base à execução:
a) Todos os títulos a que o Código de Processo Civil ou lei especial atribuam força executiva;
b) Os autos de conciliação.” (sic)
Os autos de conciliação a que se reporta a alínea b) deste preceito legal são os específicos do foro laboral, aos quais a lei, expressamente, confere força executiva, pois são obtidos em audiência e não carecem de homologação judicial (cfr. artº 52º do CPT). É, aliás, isso que resulta do Preâmbulo do Dec. Lei 480/99 de 9 de Novembro, que aprovou o CPT “ … à semelhança do sucedido no Código de Processo Civil, o leque de títulos executivos é ampliado, precisamente através de remissão para aquele Código e para lei especial em que sejam previstos, sem esquecer, como específicos do foro laboral, os autos de conciliação, quando obtidos em audiência, visto nesse caso não carecerem de homologação judicial. Para este particular título, aliás, define-se tramitação idêntica à da execução baseada em sentença de condenação em quantia certa, quando esse seja o seu objecto, assim se assimilando o regime da lei processual civil …” (sic)
Não é porém destes autos que trata o presente processo, pois os autos de conciliação em causa, elaborados sob a égide do Ministério Público, não integram um processo judicial, antes de um processo administrativo. O que está em causa é um acordo extrajudicial entre um trabalhador e a sua entidade patronal, obtido pelo Ministério Público no âmbito dos seus poderes de patrocínio dos trabalhadores e num processo administrativo.
Até à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho, vinha sendo entendimento jurisprudencial que estes acordos integravam, como documentos particulares, o elenco dos títulos executivos previstos no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, na redacção do Dec.Lei 226/2008 de 20-11.
De facto, nos termos deste preceito legal, podiam servir de base à execução, “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”. Era o caso dos acordos obtidos pelo Ministério Público e supra referidos, com as características daquele que foi dado à execução nos presentes autos.
Na presente acção, o Autor, representado pelo Ministério Público, alega, em primeira linha, que o acordo firmado sob a égide do magistrado do Ministério Público, no âmbito do processo administrativo, constitui, e já constituía, título executivo, por força do disposto no art. 46º nº1 b) do CPC de 1961, por integrar a categoria dos “documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação” (sic)
Argumenta que
- o Ministério Público é uma entidade com competência, conferida pelo seu Estatuto, para o reconhecimento de uma obrigação, para exarar, redigir, presidir ao acto que deu origem ao documento, conferindo-lhe a segurança necessária sobre a existência da dívida, pois defende os interesses que a lei determina, entre eles os dos trabalhadores (art. 3º nº1 d) do Estatuto – Lei 47/86 de 15-10, alterado pela Lei 23/92 de 20-08 e 60/98 de 27-08), para além de defender a legalidade democrática (art. 1º do Estatuto), e de ser uma Magistratura autónoma;
- o patrocínio dos trabalhadores equivale, em determinadas circunstâncias, ao mandato forense do advogado, sendo certo que estes têm competência para reconhecer assinaturas e autenticar documentos, conferindo-lhes a mesma força probatória que teriam se tais direitos tivessem sido realizados com intervenção notarial. E acrescenta que este exarar e reconhecimento de assinaturas constantes de documento já era feito pelo Ministério Público quando patrocinava os trabalhadores, no âmbito da tentativa de conciliação, seguida de assinatura do auto.
Discordamos, neste ponto, do alegado pelo Autor, por entendermos que o auto de conciliação exarado nos Serviços do Ministério Público, sob a égide do respectivo magistrado, e subscrito por este, pelo trabalhador e pela entidade empregadora, e do qual decorre a assunção de uma dívida, não constitui documento autêntico ou autenticado e, portanto, por essa via, não constitui título executivo. De facto, a lei processual laboral – art. 8º do CPT – previu como título executivo específico do foro laboral o auto de conciliação que, como já referimos, se refere à que é obtida em sede de audiência, sob a presidência do juiz.
A previsão deste título executivo específico significa que os autos de conciliação realizados pelo Tribunal, e, portanto, sob a presidência do juiz, não são considerados pelo legislador como documentos autênticos ou autenticados, como previsto na alínea b) do nº1 do art. 46º do CPC de 1961 (actual art. 703º nº1 b) do actual CPC), ou aquele teria, pura e simplesmente, remetido para o elenco dos títulos previstos no CPC, como fez na alínea a) do mesmo art. 88º. Portanto, se as próprias conciliações obtidas pelo juiz, que assume uma posição supra partes na tentativa conciliatória, não têm cabimento legal como documentos autênticos ou autenticados, não se vê que tal possa ocorrer com os autos de conciliação emanados do Ministério Público, quando este assume a posição de “parte” no processo, enquanto patrocina o trabalhador, nos termos do art. 3º nº1 d) do seu Estatuto (Lei 47/86 de 15 de Outubro), sendo certo que a parte contrária não deixará de ver nele um adversário.
Note-se ainda que, no âmbito do CPT de 1963, a tentativa de conciliação feita em juízo era sempre presidida pelo Ministério Público, quer nos casos em que era obrigatória, quer nos casos em que era facultativa (cfr. art. 50º nº2 e 51º nº2), sendo que, quando as partes se conciliavam, o resultado dessa conciliação ficava consignado em auto, que tinha a força de título executivo, nos termos do art. 86º b) desse diploma legal.
Este regime foi alterado pelo CPT, aprovado pelo Dec.Lei 272-A/81 de 30 de Setembro, e o actual CPT não consagrou essa solução legislativa.
Portanto, não foi intenção do legislador conferir aos autos de conciliação emanados do Ministério Público e sob a presidência do competente magistrado, foros de documento autêntico, nem sequer autenticado. Na verdade, não estamos também na presença de um documento autenticado, nos termos do disposto no art. 150º nº1 do Código do Notariado, pois ao Ministério Público não foram atribuídos quaisquer poderes de autenticação, ao contrário do que aconteceu com os Advogados, por força da norma excepcional do art. 38º do Dec.Lei 76-A/2006 de 29 de Março. O facto de o Ministério Público patrocinar os trabalhadores e ter competências para defender a legalidade democrática, não significa que possa autenticar documentos particulares. Temos presente que é clara a similitude de funções que ao Ministério Público e aos Advogados cabe em representação dos trabalhadores, mas, ao contrário do que parece pretender o Autor, não vislumbramos qualquer lacuna na lei, a fazer despoletar a aplicação do disposto no art. 10º nº1 do C.Civil, nos termos do qual “Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos” (sic).
Por um lado, caso o legislador pretendesse que os autos lavrados pelo Ministério Público e de onde resulta a assunção de uma dívida, fossem títulos executivos, teria ressalvado tal situação, como fez com os autos de conciliação a que se refere a alínea a) do art. 88º do CPT; por outro lado, a norma do art. 38º do Dec.Lei 76-A/2006 de 29 de Março, é excepcional, estendendo as competências cometidas aos Notários, nomeadamente aos Advogados, para facilitar a vida aos cidadãos, como resulta do preâmbulo deste diploma “Com efeito, o Programa do XVII Governo Constitucional
dispõe que «os cidadãos e as empresas não podem ser onerados com imposições burocráticas que nada acrescentem à qualidade do serviço», determinando ainda que «no interesse conjunto dos cidadãos e das empresas, serão simplificados os controlos de natureza administrativa, eliminando-se actos e práticas registrais e notariais que não importem um valor acrescentado e dificultem a vida do cidadão e da empresa (como sucede com a sistemática duplicação de controlos notariais e registrais)
 …
Em 5.º lugar, actua-se no domínio da autenticação e do reconhecimento presencial de assinaturas em documentos, permitindo que tanto os notários como os advogados,
os solicitadores, as câmaras de comércio e indústria e as conservatórias passem a poder fazê-las. Trata-se de facilitar aos cidadãos e às empresas a prática destes actos junto de entidades que se encontram especialmente aptas para o fazer, tanto por serem entidades de natureza pública ou com especiais deveres de prossecução de fins de utilidade pública como por já hoje poderem fazer reconhecimentos com menções especiais por semelhança e certificar ou fazer e certificar traduções de documentos.” (sic). E as normas excepcionais não comportam aplicação analógica (cfr. art. 11º, 1ª parte, do C.Civil), embora se entenda que existe uma lacuna na lei pois o caso não está contemplado, pelo que também não há lugar a interpretação extensiva (cfr. art. 11º, 2ª parte do C.Civ).
Não faz parte das funções do Ministério Público a autenticação de documentos, não tendo, portanto, aplicação o disposto na 1º parte do nº1 do art. 38º do Dec.Lei 76-A/2006 de 29-03.
Tudo visto, improcede o argumento de que o acordo extra judicial de cessação do contrato de trabalho, com confissão de dívida pela entidade empregadora, celebrado na presença do Magistrado do Ministério Público, é um título executivo dos referidos no art. 46º nº1 b) do CPC de 1961 e 703º nº1 b) do actual CPC, o que nos remete para a natureza de documento particular.
Vejamos agora se esse documento particular, subscrito em data anterior à da entrada em vigor do actual CPC, mantém a qualidade de título executivo.
O novo Código de Processo Civil deixou de contemplar como títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias (cfr. art. 703º do CPC), tal como explicado pelo legislador na exposição de motivos que resulta da Proposta de Lei nº 113/XII/2º, subjacente à Lei 41/2013: “ … é revisto o elenco dos títulos executivos …”, por se entender “ … que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura e subsequente a execução, instaurada com base no título executivo assim formado … relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respectivo credor poder aceder logo à via executiva.” (sic)
No presente caso, o acordo foi levado a efeito em Maio de 2013, sendo que a presente acção, como referimos, deu entrada em juízo em Outubro de 2013. Ou seja, estamos perante a situação em que o auto de conciliação, enquanto documento particular, em causa constituía título executivo, validamente constituído, na altura em que foi elaborado, por estar em vigor o CPC de 1961, mas na data da propositura da acção, os documentos particulares já não pertenciam ao elenco dos títulos executivos previstos.
Vejamos se a nova lei tem aplicação aos acordos extra judiciais celebrados antes da sua entrada em vigor.
Como se sabe, a irrectroactividade das normas é um princípio geral do Direito, com assento no art. 12º do C.Civil, e tendencialmente aplicável a toda a Ordem Jurídica.
No que respeita às leis processuais, o fundamento doutrinário genérico que explica este principio assenta na “… própria natureza das leis de processo e justifica-se … (por elas se referirem) … em última análise ao exercício duma das funções do Estado — a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial.  Tanto basta para que a lei nova deva aplicar-se imediatamente” (cfr. Alberto dos Reis, Processo Ordinário e Sumário, 1.º vol., 2.ª ed., 1928, p. 32), mas não se olvida que o legislador ordinário pode atribuir às leis eficácia retroactiva, o que não é constitucionalmente proibido.
Em matéria de disposições transitórias, o art. 6º da Lei 41/2013 consagra a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor (cfr nº1), com algumas ressalvas, dispondo o nº3 que “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.” (sic) Ou seja, as disposições transitórias não ressalvam a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 por referência a execuções posteriores a essa data, parecendo ser intenção do legislador a aplicação imediata do novo CPC, nomeadamente e para o que ao caso interessa, “aos documentos particulares constituídos antes da sua entrada em vigor. Outra tivesse sido a sua intenção e decerto tê-la-ia expressado.” (sic Maria João Galvão Teles, in A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos - Julgar on line” de Setembro de 2013). Esta é a linha de interpretação seguida pela decisão recorrida, quanto ao sentido das normas nos art. 703º do CPC e 6º nº3 do Decreto Preambular, afirmando a eficácia retroactiva da primeira relativamente às situações iniciadas em data anterior à sua entrada em vigor, com o entendimento de que a nova lei valora, não só os documentos particulares emitidos posteriormente à sua entrada em vigor, como os factos passados, com aplicação aos documentos particulares emitidos anteriormente, valorados diferentemente pela lei então vigente.
Ora, a ser assim, a nova lei atribui ao destinatário da norma uma consequência diversa e mais gravosa, qual seja a inexequibilidade do título. Ou, como afirma Maria João Telles, “a lei nova estará a ser aplicada a factos jurídicos pré-existentes ou, pelo menos, a efeitos jurídicos pendentes que resultam de tal facto jurídico: os títulos executivos.”, estando-se perante a chamada retroactividade inautêntica, referida no Acórdão do Tribunal Constitucional mencionado pela Autora (Acórdão 287/90, que se pronunciou sobre um caso de contornos semelhantes ao dos presentes autos, com aplicação de uma lei nova quando havia um contexto anterior à ocorrência da sua vigência que criava expectativas jurídicas), e nos seguintes termos: “Embora não haja retroactividade que afecte um direito, estamos perante um daqueles casos em que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes não terminadas.  Com esta delimitação tem o Tribunal Constitucional Federal alemão falado de «retroactividade inautêntica, retrospectiva», não obstante tivesse esclarecido no início desta jurisprudência, que então «não se levanta o problema da retroactividade» (BVerfGE 11, 139, 146).  Relevante é, porém, que aquele Tribunal tem entendido que também na chamada «retroactividade inautêntica» os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de direito, impõem limites que o legislador tem de respeitar, considerando-se ofendida a protecção da confiança, sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida.  Para determinação desses limites constitucionais haveria que ponderar a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, por um lado, e a importância do interesse visado pelo legislador para o bem comum, por outro ladoEm particular, tem o tribunal constitucional alemão entendido que esta doutrina é genericamente aplicável à situação jurídica processual, em que a parte se encontra.  Mais precisamente, a segurança jurídica e a protecção da confiança como critérios de avaliação de direito constitucional são também exigíveis quando o legislador produz efeitos numa situação jurídica processual, até então dada, em que o cidadão se encontra.  Também o direito processual pode fundamentar posições de confiança, nomeadamente em processos pendentes e em situações processuais concretas.  No domínio de processos civis ou administrativos, através de alterações do direito processual, com efeito nos processos pendentes, podem ser reduzidas ou eliminadas posições essenciais do cidadão para uma defesa dos seus direitos, com condições de sucesso.  Mesmo se em geral a constituição protege menos a confiança na manutenção de posições jurídicas processuais do que na de posições jurídicas materiais, podem aquelas no caso concreto ter um significado e um peso que as torna tão dignas de protecção como estas.  A «situação da vida» regulada pelo direito, relevante para a questão da retroactividade, seria aqui o próprio processo, e não a situação da vida que determina o objecto deste (BVerfGE 63, 356, 360).” (sic)
Volvendo ao presente caso, a interpretação das normas levada a efeito no despacho recorrido permite que o art. 703º do novo CPC aja sobre o passado, sobre factos passados, homologando assim a sua retroactividade. Ora, “no direito os factos provocam vicissitudes ou mutações das situações existentes, e se prolongam em efeitos jurídicos. Podemos mesmo dizer que a disciplina do facto se traduz para o direito na atribuição de relevância jurídica a certos efeitos ou consequências dos factos, que por isso justamente se designam efeitos jurídicos …. é necessário saber quais, dentre esses efeitos ou consequências, são regidos pela lei antiga, e quais pela lei nova.” (sic Prof Oliveira Ascensão – Direito – Introdução e Teoria Geral – 3ª edição, pág. 391)
Excluída que está a retroactividade extrema, que é aquela que não respeita o caso julgado, por inconstitucional, a cessação operada pela nova lei “não pode ser entendida como um completo apagamento, para o futuro, dos efeitos que nessa lei antiga se baseiam”(cfr. mesmo Autor e obra, pág. 383). No geral, o passado é respeitado, continuando a norma anterior a fundar a jurisdicidade de certas situações, mesmo após a entrada em vigor da nova lei.
Existe, ademais, uma reserva implícita à constitucionalidade da retroactividade permitida pela lei ordinária. Como bem assinala o insigne Professor, “nenhuma situação que o legislador ordinário esteja inibido de atingir directamente pode ser também atingida por via retroactiva” (sic ob citada, pág. 386), ou seja, “o que o legislador ordinário não pode fazer por via directa, menos o poderá fazer por via retroactiva.” (pág. 387), e isso significa que, caso a caso, cumpre ao julgador avaliar se a norma retroactiva viola ou não um qualquer princípio constitucional.
Nesta linha pronuncia-se também Maria João Galvão Telles, seguida no recente Acórdão da Relação de Évora de 27-02-2014 (Processo 374/13.3 TUEVR.E1), no sentido de que “uma aplicação retroactiva ou retrospectiva da nova lei que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos deve ser declarada inconstitucional com fundamento na violação do princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no artigo 2.º da Constituição (CRP).” (sic artigo citado)
Concordamos inteiramente com este entendimento.
De facto, o art. 2º da CRP consagra o Estado Português como um Estado de direito democrático, e este princípio, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “ … é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios constitucionais dispersos pelo texto constitucional” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º edição, 1º volume, pág. 74), abrangendo, entre o demais, limitações à admissibilidade de leis retroactivas.
Estando envolvida, como está, a protecção da confiança dos particulares relativamente ao Estado legislador, deparamo-nos com um confronto entre dois valores igualmente acolhidos na Constituição: por um lado, a protecção da confiança dos particulares em não verem frustradas expectativas legítimas quanto à manutenção de um determinado quadro legislativo; e, por outro, a exigência de que o legislador, democraticamente eleito, disponha de uma ampla margem de conformação (e revisibilidade) da ordem jurídica infraconstitucional, com vista à prossecução do interesse público a que está vinculado (neste sentido, v. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 263-264).
Sobre estas importantes questões, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, nos seguintes moldes: “Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que «apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio de protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático …. A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:
           a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
          b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).
 Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa.  Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.  Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança.  Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.
Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados … Cabe saber se se justifica ou não na hipótese da parte dos sujeitos de direito ou dos agentes, um «investimento na confiança» na manutenção do regime legal — para usar uma expressão da jurisprudência constitucional alemã atrás referida. ” – cfr Ac. Tribunal Constitucional 287/90 e jurisprudência ai citada.
Sobre a jurisprudência deste acórdão, referiu-se no Acórdão do TC 128/2009, de contornos e decisão semelhante, que “Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas  ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.” (sic).
Ou seja, o princípio da confiança traduz-se na protecção da confiança dos cidadãos na actuação do Estado, que não pode legislar alterando, para além de direitos adquiridos, expectativas legitimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas (cfr- Ac TC 786/96).
Não temos dúvidas de que a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do novo CPC - que elimina do elenco dos títulos executivos, os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – e 6º nº3 do diploma preambular - que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 - no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, acompanhando-se aquela que é a posição do citado Acórdão da Relação de Évora e de Maria João Galvão Telles, no estudo citado. Estamos com efeito, perante uma alteração legislativa com que, razoavelmente, os destinatários da norma não podiam contar, na medida em que essa alteração implica ter em consideração factos já realizados antes da entrada em vigor da nova lei. Note-se, aliás, que o projecto inicial de reforma do CPC, não eliminava os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, apenas exigindo que o reconhecimento da obrigação exequenda resultasse de forma expressa e inequívoca do documento particular assinado pelo devedor (cfr. art. 46º nº1 d) in www.portugal.gov.pt/pt/os.ministerios/ministeriodajustica/documentos-oficiais/20111218-revisao-codigo-processo-civil.aspx).
Os credores que viram reconhecido o seu crédito mediante documentos particulares, constituídos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, e que eram então dotados de exequibilidade, ganharam a legítima expectativa da tutela desses créditos, tutela essa conferida pelo CPC de 1961, daí que a aplicação retroactiva do disposto no art. 703º do CPC “constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas (cfr citado Ac Rel. Évora).
Prossegue Maria João Galvão Telles, que se cita, dispensando-nos de considerações, “Se, à data da celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo.
Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da
data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de Agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respectiva acção executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data de entrada em vigor da nova lei.
Pode ainda dar-se o caso de, mesmo já tendo havido incumprimento do devedor, o credor não estar, por motivos de ordem pessoal, em condições de intentar imediatamente a respectiva acção executiva. Também nestes casos, a imposição da imediata propositura da acção executiva não é compatível com imperativos de ordem constitucional.
Do exposto resulta claro que as expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.” (sic)
De facto, o princípio da protecção da confiança, retirado do artigo 2º da CRP, censura normas dotadas de eficácia retroactiva, autêntica e inautêntica, que, sacrificando interesses legalmente protegidos (e direitos fundamentais), não sejam previsíveis e sejam portadoras de uma oneração excessiva que frustre legítimas expectativas dos seus titulares na continuidade dos regimes onde se sustentou a constituição desses direitos e interesses. E a finalidade do legislador ao abolir os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor, como títulos executivos, não teve como causa a salvaguarda de qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado. Senão vejamos. Lê-se na Proposta de Lei nº 113/XII, na Exposição de Motivos, no que respeita à acção executiva, o seguinte:
«Relativamente à ação executiva, mantendo-se o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, a intervenção legislativa é feita em diversos planos.
Desde logo, é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.
Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado. Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa ação declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respetivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.” (sic)
Ou seja, o objectivo prosseguido foi
- proteger os executados de “execuções injustas”, potenciadas pelo facto de “a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório” e pelo “funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo”;
- diminuir o número de acções executivas.
E, mais uma vez em linha com Maria João Galvão Telles e com o referido acórdão da Relação de Évora, entendemos que tais interesses não prevalecem sobre as legítimas expectativas dos credores, que confiaram nos documentos de que eram detentores, subscritos em data anterior à data entrada em vigor do novo CPC, a tal é assim, não só porque os executados não ficam desprovidos dos meios de defesa, já que podem opor-se à execução e à penhora, como “obrigar um credor que já detinha um título executivo a recorrer à propositura de um requerimento de injunção ou de uma acção declarativa para que volte a ficar munido de um título executivo (que já detinha) implica não só uma injustificada e onerosa dificuldade de acesso aos tribunais como uma verdadeira medida de descongestionamento dos tribunais” (sic citada Julgar on line, pág. 8)
Do exposto resulta que estamos perante uma situação de confiança legítima, cuja afectação por uma alteração legislativa provoca consequências gravosas na esfera do cidadão confiante, sendo certo que a análise dos interesses em confronto, por um lado, o interesse particular, desfavoravelmente afectado pela alteração do quadro normativo que o regula e, por outro, o interesse público que justifica essa alteração, leva-nos a concluir que bastaria a emissão de uma disposição transitória, quiçá ínsita no art. 6º do diploma preambular, que ressalvasse da aplicação da lei nova os documentos particulares já emitidos ao abrigo da lei antiga, para vermos que a tutela do investimento de confiança não comprometeria significativamente o propósito prosseguido pela mudança do regime dos títulos executivos, e que não nos cabe avaliar.
Só uma premência absoluta do interesse público, que não se descortina neste caso, poderia justificar a aplicação imediata e universal do regime resultante do art. 703º do CPC. Ou como se afirma no Acórdão da Relação de Évora “Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões de maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do colectivo.
Ora, os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum colectivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua atuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.
Tudo ponderado, é de concluir que o interesse geral subjacente à alteração legislativa questionada deve ceder nos casos e na medida acima delimitados, sob pena de se frustrarem, em violação do princípio da segurança e da protecção da confiança, expectativas legitimamente fundadas.
Em conclusão, entendemos que a interpretação das normas do art. 703º do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança, e, nessa medida, entendemos ser o mesmo inaplicável ao presente caso, o que equivale a dizer que se mantém o regime anteriormente previsto, mantendo o auto de conciliação em causa a sua natureza de título executivo, pelo que deve ser aceite, prosseguindo a execução os seus termos.
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V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em não aplicar o art. 703º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/3013 de 26 de Junho, na parte em que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor, do elenco dos títulos executivos, quando conjugado com o art. 6º nº3 da referida Lei, quando interpretados no sentido de aquele artigo 703º se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da vigência do novo Código de Processo Civil, exequíveis no momento da emissão, face ao disposto no art. 46º nº1 c) do Código de Processo Civil de 1961, por essa interpretação ser inconstitucional, dado que violadora dos sub princípios da segurança e protecção da confiança, que resultam do principio do Estado de direito democrático, plasmado no art. 2º da Constituição da República Portuguesa.
Em consequência, julga-se o recurso interposto pelo Autor, AA procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção executiva.
Sem custas
Registe.
Notifique.
Lisboa, 26 de Março de 2014
 Paula Santos
 Ferreira Marques
 Maria João Romba
Decisão Texto Integral: