Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6354/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: FORO CONVENCIONAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
II. A Comarca de Lisboa é territorialmente competente para o procedimento cautelar previsto no art.º 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, quando também é competente para a respectiva acção, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: O recurso é o próprio e com o efeito devido.
Nada obsta ao conhecimento do seu objecto.
Dada a simplicidade que o mesmo revela, profere-se, desde já, ao abrigo do disposto no art.º 705.º do CPC, decisão liminar:
I. RELATÓRIO
S, S.A., com sede em Lisboa, instaurou, em 12 de Março de 2007, na 15.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra D, residente na Ericeira, procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo, nos termos do art.º 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, pedindo a entrega imediata do veículo automóvel, de matrícula 63-11-UA, e o cancelamento do registo de locação financeira que sobre ele impende, alegando, para o efeito, a resolução, por incumprimento da locatária, do contrato de locação financeira mobiliária, celebrado no dia 23 de Dezembro de 2002, que teve por objecto o referido veículo automóvel e no qual também se acordou estabelecer, como foro competente, o da Comarca de Lisboa.
Citada a Requerida, não foi deduzida qualquer oposição.
Conclusos os autos, foi proferido, então, o despacho de fls. 43 a 46, a declarar o Tribunal territorialmente incompetente para conhecer do procedimento cautelar, face ao disposto nos art.º s 74.º, n.º 1, e 83.º, n.º 1, alínea c), do CPC, e a determinar a sua remessa para o Tribunal Judicial da Comarca de Mafra.

Inconformada com tal decisão, agravou a Requerente, que alegando formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) A decisão recorrida ignorou o pacto de aforamento constante dos autos, validamente celebrado antes da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, ter entrado em vigor.
b) Também nos termos do art.º 74.º do CPC, é territorialmente competente o Tribunal Cível de Lisboa, em virtude do réu da acção principal residir na área metropolitana de Lisboa.

Pretende, com o seu provimento, a revogação da decisão recorrida, com todas as consequências legais.

Não houve contra-alegação.
O despacho recorrido foi, tabelarmente, sustentado.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa agora conhecer do objecto do recurso, emergindo como uma única questão jurídica a determinação do tribunal competente, em razão do território, para conhecer do procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento do registo previsto no art.º 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, decorrente da resolução, por incumprimento da locatária, de um contrato de locação financeira mobiliária.

A controvérsia decorre da circunstância da introdução da regra de competência territorial da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações e do conhecimento oficioso da infracção a essa regra, operada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, ao alterar os art.º s 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), quando as partes haviam antes convencionado o foro territorialmente competente.
Na verdade, as partes convencionaram, em 23 de Dezembro de 2002, o foro da Comarca de Lisboa, para todas as questões emergentes do contrato de locação financeira celebrado, baseando-se o procedimento cautelar na resolução, por incumprimento da locatária, e tendo sido proposto em 12 de Março de 2007, depois da referida Lei n.º 14/2006 ter entrado em vigor no dia 1 de Maio de 2006.
Assim, a problemática que ressalta dos autos respeita à aplicação das leis processuais no tempo.
Embora sem formulação expressa na lei processual, o princípio geral que se defende, nesta matéria, é o da aplicação imediata da nova lei processual (ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 47).
Para o efeito, invoca-se, sobretudo, o facto do direito processual ser um ramo do direito público, em que o interesse público do sistema de justiça prevalece sobre o interesse particular dos litigantes, e a circunstância do direito processual corresponder a um ramo de direito adjectivo ou instrumental, que se limita a regular o modo como as pessoas podem fazer valer o direito que, substantivamente, lhes está atribuído.
Assim, por efeito do referido princípio geral e com a adaptação da doutrina estabelecida no art.º 12.º do Código Civil, a nova lei processual aplica-se às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes (ibidem, pág. 49).
Todavia, a aplicação no tempo da nova lei processual poderá ser submetida a um regime especial, definido em normas transitórias inseridas na lei nova.
Foi o que sucedeu com a Lei n.º 14/2006, ao estatuir no seu art.º 6.º, sob a epígrafe “aplicação no tempo”, que a mesma se aplica apenas às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.
Relativamente à lei reguladora da competência, importa ainda convocar o art.º 22.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), onde se estabelece a regra geral segundo a qual a competência se fixa no momento em que a acção é proposta.

No caso vertente, quando o procedimento cautelar foi proposto, em 12 de Março de 2007, já a Lei n.º 14/2006 estava em vigor, sendo, por isso, aplicável a nova regra de competência territorial introduzida pela mesma, nomeadamente a prevista no art.º 74.º, n.º 1, do CPC, por efeito do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 83.º do mesmo diploma legal.
A essa aplicação não obsta a circunstância de, antes da entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, as partes terem celebrado um pacto de aforamento, estipulando a Comarca de Lisboa como foro competente, que ao tempo era permitido, nos termos do art.º 100.º, n.º 1, do CPC.
Se a competência convencional é tão obrigatória como a que deriva da lei (art.º 100.º, n.º 3, do CPC), também não é menos certo que o efeito da convenção seja diferente do da lei. Tanto esta como o pacto têm a finalidade de definir o tribunal territorialmente competente para a acção.
Sendo assim, e fixando-se a competência no momento em que a acção é proposta, a validade do pacto de aforamento deve ser aferida no confronto com as regras de competência territorial vigentes naquele momento.
Ora, por efeito da Lei n.º 14/2006, a infracção à regra da competência territorial estabelecida no n.º 1 do art.º 74.º do CPC, aplicável por efeito do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 83.º do CPC, passou a ser de conhecimento oficioso, nos termos da nova redacção da alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, afastando, por via disso, a possibilidade legal de convencionar a competência, como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 100.º do CPC.
Desta sorte, no momento da proposição do procedimento cautelar, o pacto de aforamento celebrado não era válido, estando excluída a sua aplicação.
Neste contexto, não há aplicação retroactiva da lei e, por isso, se afasta qualquer violação ao consignado no art.º 12.º do Código Civil.
Neste sentido, tem sido a corrente dominante nesta Relação, citando-se, entre muitos, os acórdãos de 16 de Novembro de 2006 (Rec. n.º 9.244/06-8), 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9.885/06-8), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9.884/06-6) e 15 de Fevereiro de 2007 (Rec. n.º s 370/07-6 e 726/07-8).

Todavia, e nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, a acção respectiva, da qual o procedimento cautelar é preliminar, pode ser instaurada no lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, na medida em que tanto a sede da recorrente como o domicílio da recorrida se situam na mesma área metropolitana.
Efectivamente, a obrigação devia ser cumprida em Lisboa, sendo certo ainda que a recorrente tem a sua sede em Lisboa e a recorrida tem o seu domicílio na Ericeira, concelho de Mafra, que integra a área metropolitana de Lisboa (Lei n.º 44/91, de 2 de Agosto).
Em face deste circunstancialismo, a acção principal pode ser instaurada na Comarca de Lisboa, precisamente onde o procedimento cautelar foi apresentado.
Assim sendo, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, e da alínea c) do n.º 1 do art.º 83.º do CPC, o tribunal territorialmente competente para o procedimento cautelar requerido é o da Comarca de Lisboa, ao contrário do que foi decidido.

2.2. Perante o exposto, pode extrair-se de mais relevante a síntese:

1) A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
2) A Comarca de Lisboa é territorialmente competente para o procedimento cautelar previsto no art.º 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, quando também é competente para a respectiva acção, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006.

Assim sendo, o recurso merece obter provimento, com a consequente revogação da decisão recorrida.

2.3. Não obstante tenha ficado vencida no recurso por decaimento, a agravada está subjectivamente isenta do pagamento das custas, em conformidade com o disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 2.º do Código das Custas Judiciais.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
Conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida.
Lisboa, 5 de Julho de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)