Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4687/2006-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O credor hipotecário que não tenha intervido na acção onde foi reconhecido o direito de retenção a favor de promitente comprador do imóvel hipotecado não está vinculado à referida decisão judicial.
II – O promitente comprador que pretenda obter a condenação do promitente vendedor no reconhecimento do seu direito de retenção sobre a coisa prometida tem interesse em demandar não só o promitente vendedor mas também o credor hipotecário, a fim de o vincular à pretendida solução final do pleito.
III – A situação adjectiva em causa pode ser processualmente equiparada a um litisconsórcio voluntário, pelo que o credor hipotecário que não tiver sido demandado poderá intervir na acção como parte principal, ao abrigo do disposto no art.º 320º, alínea a), do Código de Processo Civil, ou ser chamado a intervir por qualquer uma das partes, ao abrigo do art.º 325º do Código de Processo Civil.
IV – A intervenção principal espontânea pode ocorrer enquanto não estiver definitivamente julgada a causa, ou seja mesmo depois de ter sido proferida a sentença da primeira instância, contanto que não tenha transitado em julgado.
V – Porém, se for efectuada após ser proferida a sentença, a intervenção deve ser deduzida em simples requerimento, no qual o interveniente fará seus os articulados do autor ou do réu e deve aceitar a causa no estado em que se encontrar, embora goze de todos os direitos da parte principal a partir do momento da sua intervenção.
VI – Viola as referidas regras aquele que intervém nos autos após ser proferida a sentença, apresentando um articulado próprio em que impugna parte da petição inicial, arrola testemunhas e requer a reapreciação do pleito pelo juiz da primeira instância.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, intentada por AA… contra R…, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Montijo, sob o nº 2073/04, a Caixa Económica Montepio Geral requereu, invocando o disposto nos artigos 320º e seguintes do Código de Processo Civil, a sua intervenção principal espontânea.
Tal requerimento foi liminarmente rejeitado, por ter sido considerado extemporâneo.
A Caixa agravou desse despacho, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. A ora Recorrente, no âmbito do processo de Insolvência, que corre seus termos pelo 1° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, Processo n° 1424/04.0 TYLSB, [tomou conhecimento] que havia sido proferida sentença no tribunal "a quo" a reconhecer a diversos promitentes compradores, que haviam celebrado com a sociedade Insolvente diversos contratos de promessa de compra e venda, direito de retenção sobre as fracções prometidas comprar e vender, além de indemnizações correspondentes ao dobro do sinal por aqueles entregues a titulo de sinal;
2. A Agravante detém sobre os mencionados imóveis hipoteca registada, para garantia de empréstimo oportunamente concedido à sociedade Insolvente;
3. Não tendo sido chamada a intervir nos autos e uma vez que a decisão ainda não tinha transitado em julgado, socorreu-se a ora Recorrente do comando previsto no artigo 320°, alínea a) do CPC requerendo, em requerimento autónomo, a sua intervenção principal espontânea;
4. Dispõe o n° 1 do artigo 322° do CPC que a intervenção principal espontânea prevista na alínea a) do artigo 320° do CPC é admissível enquanto a causa não estiver definitivamente julgada, o que "in casu" ainda não acontecera;
5. A intervenção requerida pela Caixa Económica Montepio Geral, ora Agravante, é uma intervenção principal litisconsorcial necessária, integra a previsão prevista no artigo 28° do CPC, o que objectivamente legitima o direito da ora Agravante a requerer a sua intervenção principal espontânea, ao abrigo do disposto no artigo 320°, alínea a) do CPC;
6. A ora Recorrente interveio nos autos antes do trânsito em julgado da sentença, inexiste qualquer razão de facto ou de direito que leva a que tal decisão constitua caso julgado em relação a si interveniente, até porque existe uma relação de prejudicialidade entre o pedido formulado pela Interveniente, ora Recorrente e o fundamento da decisão transitada em julgado;
7. O caso julgado só produz efeitos "inter partes", pelo que não pode prejudicar terceiros, "in casu" a ora Recorrente;
8. Pese o facto do interveniente ter de aceitar a causa no estado em que se encontrar, tal não significa que a decisão constitua em relação à Interveniente, ora Agravante, caso julgado, pois que a sentença enquanto não estiver transitada em julgado, não é acto ou termo processado, distinguindo-se assim o momento anterior do posterior ao trânsito em julgado;
9. A ora Agravante, não tendo sido parte na acção em que foram declarados e conferidos direitos de retenção a vários promitentes compradores, só poderia ser abrangida pelo caso julgado caso o prejuízo dele decorrente fosse estritamente económico;
10. A sentença veio a declarar a existência de um direito que, em si, entra em conflito com o direito de um terceiro, neste caso o da ora Recorrente;
11. O que significa que, de uma relação estritamente bilateral emerge um efeito que interfere directamente com outra situação jurídica, anteriormente constituída - (hipoteca constituída a favor da ora Recorrente) - e cujo titular não interveio na acção;
12. A parte da sentença que declarou os promitentes compradores credores de vários montantes sobre R… e reconheceu direito de retenção sobre várias fracções autónomas faria caso julgado, por efeito reflexo sobre a ora Agravante, podendo vir a limitar-se o alcance da garantia hipotecária anteriormente constituída a favor da Recorrente, limitação essa que se centra no facto do direito de retenção prevalecer sobre hipoteca constituída anteriormente - artigo 759°, n° 2 do Código Civil;
13. A ora Recorrente veria assim o seu direito - garantia hipotecária - fortemente limitado ou até neutralizado por força de uma sentença proferida em acção na qual não foi parte nem teve qualquer interferência, uma vez que não teve qualquer meio de defesa;
14. Pelo que a sentença que reconheceu aos promitentes compradores direitos de retenção sobre várias fracções oneradas com hipoteca a favor da Agravante, não pode, pelos limites do caso julgado, ser oponível ao direito da ora Recorrente;
15. Face à posição assumida pela ora Agravante, deveria, o Mm°. Juíz "a quo", ter proferido no uso do seu poder discricionário despacho a suspender a instância, atenta a mais que justificada intervenção da ora Agravante, consubstanciada no facto de não ter tido oportunidade para exercer o seu legítimo direito ao contraditório, em acção em que tinha legitimo interesse em contradizer;
16. O trânsito da decisão teria ocorrido, isso sim, se não tivesse sido deduzido incidente que nos seus fundamentos não justificassem a suspensão da instância, logo o não trânsito em julgado da mesma;
17. Contrariamente ao expendido pelo Mmo. Juiz "a quo" a ora Agravante não tinha legitimidade para interpor recurso da referida sentença;
18. A ora Recorrente é um terceiro na relação jurídica controvertida, tendo sido entendido pela doutrina que os terceiros só poderiam interpor recurso desde que, a qualquer título, tivessem tido intervenção no processo;
19. Nem se pode afirmar que a ora Recorrente com a sentença, tenha sido directa e efectivamente prejudicada, afectada directamente;
20. O seu direito (garantia hipotecária) só seria directamente ameaçado se verificadas as seguintes condições:
-Invocação do direito de retenção por parte dos ora Autores em diferente sede;
- Graduação que por força do privilégio do direito de retenção impeça o credor hipotecário de receber o integral valor garantido pela hipoteca;
21. Neste momento não se pode, pois, afirmar com certeza de ciência e de facto que o direito da Requerente esteja directa e efectivamente prejudicado pela decisão proferida;
22. Assim sendo e não sendo possível recorrer da decisão, só pela via da intervenção principal espontânea poderia a ora Recorrente opor-se a que a sentença pudesse produzir quanto a si caso julgado;
23. Ao indeferir o pedido de intervenção principal espontânea formulado pela ora agravante, o Mmo Juiz "a quo" fez uma errada interpretação e aplicação das disposições legais, nomeadamente das normas contidas nos artigos 320°, 321°, 322°, 323°, 680° e 869°, todos do Código de Processo Civil;
24. Pelo que é ilegal a douta decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O tribunal a quo sustentou o despacho recorrido.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se o tribunal a quo deveria ter dado seguimento ao incidente de intervenção principal espontâneo deduzido pela recorrente, em vez de o rejeitar liminarmente.
Colhe-se dos autos a seguinte
Matéria de Facto
1. Em 15.11.2004 A… e outros intentaram, no Tribunal Judicial de Montijo, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra R…, pedindo o seguinte:
a) Seja reconhecido o incumprimento definitivo e culposo, por parte da Ré, dos contratos – promessa de compra e venda sobre as fracções autónomas de um determinado prédio, que identificam, celebrados com os AA.;
b) Seja a Ré condenada no pagamento, a cada um dos AA., de uma indemnização correspondente ao valor em dobro dos montantes que lhe foram entregues a título de sinal, nos termos que discriminam;
c) Ser a Ré condenada a pagar a cada um dos AA., a título de benfeitorias realizadas, quantias que discriminam;
d) Ser a Ré condenada a pagar aos AA. juros de mora sobre as quantias supra referidas, à taxa legal, a partir da citação;
e) Ser reconhecido o direito de retenção dos AA. sobre as fracções prometidas em compra e venda, até lhes ser pago o valor do crédito que cada um reclama por via da presente acção.
2. Para tal os AA. alegaram, em síntese, que celebraram com a Ré contratos promessa relativamente às fracções identificadas; os AA. pagaram os pertinentes sinais e passaram a usar as mesmas; a Ré nunca chegou a finalizar os arranjos exteriores do prédio e alguns acabamentos interiores; a Ré não procedeu ao distrate de duas hipotecas que incidem sobre o prédio em causa; deste modo pretendem os AA. a restituição do que pagaram a título de sinal, em dobro e a indemnização por benfeitorias.
3. Citada, a Ré não contestou, pelo que foram julgados confessados os factos articulados pelos AA.
4. Em 18.7.2005 foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e condenou a R. nos termos peticionados.
5. As partes foram notificadas da sentença em 19.9.2005.
6. Em 26.9.2005 a ora recorrente requereu a sua intervenção principal espontânea no processo, alegando, em síntese, o seguinte:
a) Ter tomado naquela ocasião conhecimento da aludida sentença, na qual é reconhecido o direito de retenção dos AA. sobre várias fracções autónomas do prédio urbano sito no Largo do Troino, nº 18, em Alcochete, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o nº 1940 da freguesia de Alcochete;
b) Por escrituras públicas outorgadas, respectivamente, em 16.4.1999 e em 29.11.2000, a requerente mutuou determinadas quantias à Ré, para garantia das quais foram constituídas duas hipotecas, sobre o supra aludido prédio, a favor da requerente, as quais foram inscritas no registo predial respectivamente em 26.3.1999 e em 27.10.2000;
c) Os alegados contratos – promessa foram todos celebrados em data posterior à constituição das hipotecas;
d) Como credora hipotecária, cujo crédito pode falecer em futura graduação de créditos face ao direito de retenção dos AA., a requerente tinha interesse directo em intervir nos autos, sendo parte legítima, tendo sido violada a norma contida no art.º 28º do Código de Processo Civil, pelo que pode requerer a sua intervenção principal espontânea ao abrigo do disposto no art.º 320º e seguintes do Código de Processo Civil;
e) Os alegados contratos promessa são nulos, pois as assinaturas neles constantes não foram reconhecidas e feitas na presença do notário e não se encontra certificada, pelo notário, a existência da respectiva licença de utilização ou de construção da “coisa” objecto desses escritos particulares;
f) Os AA. não juntaram nenhum documento comprovativo de terem entregue à R. quantias a título de sinal e princípio de pagamento, pelo que a requerente impugna toda a matéria referida nos articulados onde se referem os montantes que foram entregues a título de sinal e princípio de pagamento;
g) Os AA. não alegaram nem provaram que interpelaram a Ré para cumprir, pelo que não existe incumprimento definitivo dos contratos promessa e, assim, não há lugar a válido direito de retenção;
h) A posse sobre as fracções, a existir, o que não se concede, é uma posse meramente condicional e exercida em nome de outrem;
i) Os diplomas legislativos que vieram conceder o direito de retenção do promitente comprador de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma, no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato promessa, são materialmente inconstitucionais, por sacrificarem os interesses patrimoniais de terceiros (titulares de direito real de garantia – hipoteca) não intervenientes no aludido negócio jurídico e a que são completamente alheios;
j) Os referidos diplomas (Dec.-Lei nº 236/80, de 18.7 e Dec.-Lei nº 379/86, de 11.11) também padecem de inconstitucionalidade orgânica, pois versam matéria respeitante a direitos e garantias patrimoniais, que como tal é da competência exclusiva da Assembleia da República.
7. No seu requerimento a ora recorrente arrolou testemunhas e terminou pedindo:
a) Que seja deferido o pedido de intervenção principal espontâneo suscitado pela requerente;
b) Que seja julgado improcedente, por não provado, o pedido de reconhecimento do direito de retenção, invocado pelos AA., com todas a consequências legais daí advenientes.
O Direito
O recurso reporta-se à pretensão de intervenção principal espontânea, por parte de um credor hipotecário, numa acção em que vários promitentes compradores demandaram, em coligação activa (art.º 30º nº 2 do Código de Processo Civil), a promitente vendedora de diversas fracções autónomas, pedindo a condenação desta no pagamento, a cada um dos autores, de uma indemnização por incumprimento definitivo e culposo dos contratos promessa e do valor das benfeitorias por aqueles efectuadas nas fracções, e bem assim que a Ré seja condenada a reconhecer o direito de retenção dos AA. sobre as fracções prometidas em compra e venda, até lhes ser pago o valor do crédito que cada um reclama por via da presente acção.
É sabido que o direito de retenção cujo reconhecimento os AA. pedem constitui um direito real de garantia, previsto pelos artigos 754º e 755º nº 1 alínea f) do Código Civil. Tal direito confere-lhes a faculdade de não largarem mão da fracção que lhes fora entregue, enquanto não forem pagos do crédito emergente do não cumprimento do contrato promessa. Enquanto não entregar o imóvel retido, o titular do direito de retenção tem a faculdade de o executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor. Neste caso o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada anteriormente (art.º 759º nºs 1 e 2 do Código Civil).
Parte da jurisprudência tem entendido que o reconhecimento do direito de retenção sobre um imóvel sobre o qual incida igualmente uma hipoteca não abala o crédito hipotecário do ponto de vista jurídico, pois o direito continua o mesmo, com o mesmo conteúdo e a mesma garantia. O facto de numa execução o crédito hipotecário sofrer uma descida na respectiva graduação de créditos, passando a ficar a seguir ao crédito do titular do direito de retenção sobre o imóvel hipotecado, constituirá tão só um prejuízo económico, concretizado no caso do património do devedor não chegar para o pagamento do crédito hipotecário. Daí que, na esteira do entendimento de que a sentença, pese embora o princípio fundamental da eficácia meramente relativa do caso julgado (artigos 497º e 671º nº 1 do Código de Processo Civil), se impõe aos chamados terceiros juridicamente indiferentes (Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, edição de 1963, páginas 289 e 289; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 706 e seguintes), tal jurisprudência defende que a sentença que reconheça ao promitente comprador o direito de retenção sobre a coisa imóvel tem eficácia de caso julgado relativamente ao credor hipotecário, mesmo que este não tenha tido intervenção na acção declarativa (neste sentido cfr. acórdãos do STJ, de 12.01.1993, in CJ STJ ano I, t. I, pág. 30 e ss; também na Internet, dgsi, processo 082928; STJ, 29.9.1993, CJ STJ, ano I, t. III, pág. 31 e ss; STJ, 16.3.1999, BMJ 485, pág. 356; Rel. Lisboa, 12.11.2002, Internet, proc. 0040357; Rel. Coimbra, 22.11.2005, Internet dgsi, processo 3050/05).
Porém, noutro sentido se tem manifestado boa parte da jurisprudência. Assim, o STJ em acórdão datado de 10.10.1989, ponderou que “ainda que a aludida sentença não ponha em questão a existência ou validade do direito da recorrente (direito de crédito hipotecário), não se fica pela afectação da sua consistência prática, por limitação ou redução do património do devedor, bem diferentemente, confronta-se com o direito de um terceiro juridicamente interessado, de certo modo incompatível com o direito reconhecido aos exequentes (direito de retenção), afectando-lhe a consistência jurídica que decorre do artigo 759º nº 2 do Código Civil” (BMJ 390, pág. 363 e ss). Também no acórdão do STJ de 01.02.1995, publicado na Col. de Jur., acórdãos do STJ, ano III, tomo I, pág. 55 e seguintes, se expende que “não há aqui apenas um prejuízo económico. Afectado é também o próprio direito hipotecário, na medida em que vê colocar-se-lhe à sua frente um outro crédito, que assim terá prioridade de pagamento. Se não houvesse o direito de retenção, a hipoteca conferia ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo – nº 1 do art.º 686º do Código Civil; mas o direito de retenção em causa prevalece “sobre” a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente – art.º 759º nº 2 do C.C. Não é só mais um qualquer crédito que fica reconhecido; é, sim, um novo crédito que vai preferir ao crédito hipotecário”. “Antes do possível prejuízo económico já existe verdadeira e efectivamente um prejuízo jurídico, na medida em que o valor potencial da hipoteca foi desde logo diminuído com a declaração da existência do direito de retenção, o qual ficou situado numa ordem de pagamento preferente em relação ao crédito hipotecário”. No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos do STJ, de 10.11.1992, na Internet, dgsi, processo 081297; STJ 11.5.1995, in CJ STJ, III, t. II, pág. 81 e ss; STJ 08.7.2003, Internet, dgsi, processo 83A1808; ac. da Rel. Coimbra, 02.3.2004, CJ, 2004, t. II, pág. 8; ac. da Rel. Porto, 09.02.2006 Internet, dgsi, processo 0630165.
Segundo esta jurisprudência, que sufragamos, o credor hipotecário que não tenha intervindo na acção onde foi reconhecido o direito de retenção a favor do promitente comprador do imóvel hipotecado não está vinculado à referida decisão judicial. Daí que o promitente comprador, que pretenda obter a condenação do promitente vendedor em termos idênticos aos supra descritos, tenha interesse em demandar não só o promitente vendedor mas também o credor hipotecário, a fim de o vincular à pretendida solução final do pleito, ou seja, ao reconhecimento do direito de retenção (assim procederam os autores na acção a que se reporta o acórdão da Relação de Évora, de 25.11.2004, in Col. de Jur., ano XXIX, tomo V, pág. 247 e seguintes, sem que nos autos se tenha suscitado qualquer oposição a essa opção). No que concerne ao reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio objecto do contrato promessa e simultaneamente hipotecado, haverá um único pedido, deduzido contra o promitente vendedor e o credor hipotecário; por outro lado, o credor hipotecário terá interesse em contradizer esse pedido, pugnando pela sua improcedência, interesse esse que nesta perspectiva é igual ao do promitente vendedor. Daí que a situação adjectiva em causa possa ser processualmente equiparada a um litisconsórcio voluntário, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 26º e 27º, 29º, 2ª parte, do Código de Processo Civil. Equiparação essa que serve a principal finalidade subjacente ao litisconsórcio inicial e aos incidentes de intervenção de terceiros: a da economia de meios, que exige que cada processo resolva o maior número possível de litígios (“economia de processos”), com simultânea economia de actos e formalidades (José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra Editora, 1996, pág. 163). Assim sendo, o credor hipotecário que não tiver sido demandado poderá intervir na acção como parte principal, ao abrigo do disposto no art.º 320º alínea a) do Código de Processo Civil, ou ser chamado a intervir por qualquer uma das partes, ao abrigo do art.º 325º do Código de Processo Civil (neste sentido, quanto à intervenção provocada do credor hipotecário, cfr. acórdãos da Relação de Coimbra, de 09.11.2005, Internet, dgsi, processo 3007/05 e de 07.02.2006, Internet, dgsi, processo 3002/05; contra, cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 22.11.2005, Internet, dgsi, processo 3050/05, já supra citado enquanto decisão que aceita a eficácia de caso julgado da sentença relativamente ao credor hipotecário não demandado na acção declarativa do direito de retenção).
A intervenção principal espontânea pode ocorrer enquanto não estiver definitivamente julgada a causa (art.º 322º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, mesmo depois de ter sido proferida a sentença da primeira instância, contanto que não tenha transitado em julgado (expressamente neste sentido, cfr. acórdão da Rel. do Porto, de 28.7.1981, CJ, ano VI, tomo IV, pág. 190). Porém, se for efectuada após ser proferida a sentença, como ocorreu no caso sub judice, a intervenção deve ser deduzida em simples requerimento, no qual o interveniente fará seus os articulados do autor ou do réu (art.º 323º nº 3 do Código de Processo Civil). Por outro lado, o interveniente deve aceitar a causa no estado em que se encontrar, sendo considerado revel quanto aos actos e termos anteriores; mas goza de todos os direitos de parte principal a partir do momento da sua intervenção (art.º 322º do Código de Processo Civil).
Uma vez que a recorrente deduziu a sua intervenção nos autos após ter sido proferida a sentença em primeira instância, não podia pôr em questão o decurso da tramitação inerente à fase dos articulados, ao saneamento, instrução e prolação de sentença, e os efeitos daí decorrentes, de que o principal é o esgotamento do poder jurisdicional do juiz da primeira instância quanto à matéria da causa.
Ora, conforme resulta do ponto 6 da matéria de facto supra, a recorrente interveio nos autos fazendo tábua rasa da fase em que o processo se encontrava, apresentando um articulado próprio em que impugna boa parte da petição inicial, arrola testemunhas e requer a reapreciação, pelo juiz da primeira instância, do pleito. Tal intervenção viola as já referidas regras que regem o incidente de intervenção principal espontânea, em termos que o tornam inaproveitável – pelo que bem andou o tribunal a quo em a rejeitar liminarmente, ao abrigo do disposto no art.º 324º nº 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e consequentemente confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Lisboa, 21.9.2006

Jorge Leal
Américo Marcelino
Francisco Magueijo