Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13584/21.0T8SNT-A.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
INÍCIO DA CONTAGEM DO PRAZO
DESCONFORMIDADE ENTRE CONTEÚDO DO FORMULÁRIO
ELECTRÓNICO E OS ANEXOS COM ELE JUNTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O prazo de 30 dias para a propositura da ação a que se refere o artigo 59.º. n.º 2 do CSC é um prazo de caducidade, de natureza substantiva e civil, como decorre da interligação entre os artigos 279.º, als. b) e e), 296.º e 298.º, n.º 2, do Código Civil.
II- Por ser assim, na contagem de tal prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr, no caso dos autos, a assembleia geral extraordinária onde foram tomadas as deliberações impugnadas.
III- A apresentação a juízo dos atos processuais é realizada por via eletrónica, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição, nenhum ato sendo admitido à distribuição se não contiver todos os requisitos externos exigidos por lei, verificação que é efetuada através de meios eletrónicos (artigo 207.º do CPC).
IV- Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos, tal como decorre dos n.ºs 1 e 10 do artigo 144.º do CPC e artigo 7.º n.º 2 da Portaria 280/13 de 26/08.
V- Se existindo essa desconformidade, que determinou a recusa da p.i. por parte da secretaria à luz do artigo 558.º do CPC, em momento prévio à distribuição, o juiz de turno à mesma, em face da posição entretanto assumida pela ilustre mandataria do autor nos autos, considerou que havia sido pedida a respetiva correção do formulário nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08 (despacho que não foi objeto de qualquer impugnação ou reparo), determinando que o expediente apresentado fosse distribuído, assim obstando à recusa da p.i., terá de se considerar a mesma intentada na data da sua apresentação inicial a juízo.
VI- Pois que apenas se poderia considerar recusada a petição inicial, dando-se baixa na distribuição, decorrido que fosse o prazo para reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirmasse o seu não recebimento, tal como decorre do n.º 3 do artigo 17.º da mencionada Portaria, o que não foi, de todo, o caso dos autos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
Nos presentes autos de acção de anulação de deliberações sociais, movida por J (…), (…), contra C (…), LDA., com sede na Rua (…) Amadora, foi formulado o seguinte pedido «Que julgada procedente, por provada, a presente ação, seja decretada a nulidade das deliberações tomadas de destituição de Gerente do Autor, bem como a destituição de Diretor Clinico do Autor da Ré, na Assembleia Extraordinária realizada em 16/08/2021; e, consequentemente, seja a Ré condenada a pagar ao Autor as quantias a titulo de: a) Danos patrimoniais no valor de €7400.00 (sete mil e quatrocentos euros), acrescidos do valor de €300.000,00 (trezentos mil) de honorários vencidos; b) Danos não patrimoniais no valor de €100.000.00 (cem mil euros) e c) valores que se venham apurar a serem devidos ao Autor a partir do mês de setembro de 2021».

Para tanto, alegou o autor, em síntese, que a convocatória para a Assembleia Geral Extraordinária de dia 16/08/2021 padece de irregularidades, dado que foi assinada apenas por um dos gerentes da ré, e que a documentação de suporte àquela convocatória apenas foi entregue no dia da realização da referida Assembleia.
Do sistema Citius consta que a ação foi apresentada no dia 23/09/2021, tendo desde logo o autor juntado com a petição inicial os documentos 4, 5 e 6, referentes a comprovativo de entrega de peça processual no dia 15/09/2021, formulário Citius da petição de 15/09/2021 e despacho de juiz de turno de 21/09/2021.

Citada a ré, a mesma defendeu-se por exceção e por impugnação, alegando, desde logo, inexistir qualquer causa geradora de nulidade das deliberações sociais em causa nos autos, invocando ainda, em caso de eventual anulabilidade, e ao que ao presente recurso agora interessa, a caducidade da presente acção por ter sido intentada fora do prazo estabelecido no artigo 59.º, n.º 2, do C.S.C., dado que foi intentada em 23/09/2021.

O autor foi convidado a tomar posição sobre as exceções invocadas, o que fez, dizendo, quanto à questão da caducidade, que «A Assembleia realizou-se no dia 16 de Agosto de 2021, o primeiro dia de prazo para impugnação sempre será o dia 17 de Agosto de 2021 e o trigésimo dia sempre será o dia 15 de Setembro de 2021, data em que a presente acção foi apresentada neste Douto Tribunal».

Por despacho de 28/01/2022 foi o autor convidado, nos termos do artigo 590.º, n.º 1, al. b), do CPC, a caracterizar os serviços prestados que são fonte do pedido de pagamento de honorários no valor de €300.000,00 e a fundamentar a alegação de que a presente acção foi instaurada em 15/09/2021.
Em resposta, alegou que a petição «.. foi entregue via Citius em 15.09.2021, cfr. doc. n.º 72, que ora se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido; Todavia, por erro informático, a mesma ficou retida para distribuição, facto que levou o ora Autor solicitar ajuda à Secretaria Geral do Tribunal de Sintra, vindo a ser ordenada a respetiva distribuição, cfr. doc. n.º 73, que ora se junta e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

Juntou novamente documento comprovativo da remessa da p.i. no sistema Citius no dia 15/09/2021 e do despacho proferido pela Exma. Juiz de Direito de turno à distribuição, em 21/09/2021, onde foi consignado que: «Considerando que a peça apresentada não contém a indicação da forma do processo e, consequentemente, da espécie e que nenhum ato processual é admitido à distribuição sem que contenha todos os requisitos externos exigidos por lei, ao recusar a petição, a secretaria mais não fez do que dar cumprimento ao disposto nos art.ºs 207º, e 558º, nº 3, do CPC.
Era, pois, à Ilustre mandatária, apresentante da petição, que cabia indicar corretamente, no formulário, uma das formas de processo previstas na lei (art.º 546º do CPC) e uma das espécies a que alude o art.º 212º do CPC.
E a verdade é que o formulário foi preenchido com uma forma de processo que não corresponde ao conteúdo e à finalidade da peça apresentada, o que determinou que faltasse a indicação da espécie e impediu, consequentemente, que a distribuição se tivesse efetuado de forma automática através do sistema informático.
Considerando, porém, que da análise que se faça do conteúdo material da peça se vê que está em causa uma ação comum, em face da desconformidade entre o formulário e o dito conteúdo e tendo sido pedida a respetiva correção nos termos do art.º 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, distribua o expediente apresentado na 1ª espécie, isto é, como ação comum, tendo em conta o objeto da ação como sendo comércio».

Em contraditório, a ré argumenta que, ao contrário do alegado pelo autor, não ocorreu qualquer erro informático, ocorreu sim a recusa da petição por parte da secretaria por esta não conter os requisitos legalmente exigidos e, solicitada a devida correção por parte da Ilustre Mandatária do Autor, a petição foi distribuída em 23/09/2021.
Considerando-se assim a ação proposta no referido dia 23/09/2021, na medida em que é inaplicável ao presente caso o benefício previsto no artigo 560.º do CPC, sendo, aliás, o referido dia 23/09/2021 que consta como data de distribuição da presente ação na plataforma Citius.

Por despacho de 30/03/2022, foi determinado que a secretaria informasse o que sucedera à petição inicial apresentada em 15/09/2021.
Por cota lavrada no processo foi consignado que a referida Petição Inicial “fora devolvida”, sendo junto o expediente do procedimento adotado.

Desse expediente resulta então que, com data de 16/09/2021, pela funcionária judicial foi devolvida a petição por «… a caracterização da espécie vem "a determinar". O CITIUS, assim como está o requerimento, não distribui. Ao abrigo do Art.º 558º do CPC, V. Exª não indica a espécie do processo pelo que deverá enviar nova Petição Inicial com o campo caracterização da espécie devidamente preenchida».
Em requerimento dirigido aos serviços informáticos, em 17/09/2021, a ilustre mandatária do autor dá conta do sucedido, ali terminando a solicitar que, «… com caráter urgente, procedam à devida correção de omissão de distribuição, verificado que se encontram preenchidos os requisitos exigidos para a distribuição processual, considerando-se a ação proposta na data em que foi apresentada a juízo – data do dia 15 de setembro – data do termino do prazo de caducidade para o autor exercer o seu direito».
E, em requerimento dirigido ao Chefe da Secretaria Geral, em 20/09/2021, a ilustre mandatária do autor argumentou que:
«I- Na qualidade de Advogada, subscrevi a Peça Processual “Petição Inicial”, remetendo a mesma via Citius no passado dia 15/09, tendo sido confirmado o envio para distribuição, e à qual foi atribuída a referência n.º 39849470- cfr. Doc. 1.
II- No Formulário informático de identificação da Peça Processual, no campo CARATERIZAÇÃO foi preenchida pela mandatária, o item FINALIDADE com a opção disponível “Outra forma de processo/outro procedimento”.
Certo é que,
Optando-se por esta Forma de Processo, automaticamente o Citius, preenche a ESPÉCIE com a menção: “a determinar”, não permitindo outra escolha, ou a escrita de qualquer outra espécie, uma vez que o campo de escolha fica bloqueado, atenta a escolha automática do Citius.
Podendo apenas intervir novamente a mandatária no preenchimento do formulário já no item OBJECTO DA ACÇÃO, e aí optado por selecionar a opção: Outro ou não especificado (Comércio)- cfr. referido Doc. 1.
III- Sucede que, no dia 16/09 recebeu a mandatária email remetido pela Secretaria Geral do Tribunal de Sintra, a notificar que a referida Petição Inicial não havia sido distribuída, invocando para o efeito: Conforme vossa petição (que enviamos em anexo) a caracterização da espécie vem "a determinar”. O CITIUS, assim como está o requerimento, não distribui. Ao abrigo do Art.º 558º do CPC, V. Exª não indica a espécie do processo pelo que deverá enviar nova Petição Inicial com o campo - Cfr.Doc 2.
IV- Porém e conforme supra ponto II) a espécie de processo é identificada, pelo que, se cumpriu os formalismos da identificação da aludida peça processual, e tanto assim o foi que o Citius, aceitou a entrega da peça processual gerando a referência mencionada, que à contrário não o fazia, por falta de preenchimento de elementos. Cfr. já referido Doc 1.
V- Confrontada com a não distribuição da acção, no dia 17 de Setembro de 2021, a ora Requerente solicitou, com carácter urgente, a intervenção dos técnicos informáticos da plataforma Citius, Cfr. Doc 3.
VI- No dia de hoje 20/09 - o serviço de apoio ao utilizador IGFEJ, através de email endereçado à mandatária, vem informar que “A caracterização da peça processual efetuada pelo utilizador está disponível no CITIUS para os casos em que, no elenco de caracterizações possíveis, não está disponível a caracterização entendida por este como adequada, podendo o utilizador sinalizar, no conteúdo material da peça esse facto, não impedindo assim a apresentação da peça processual, devendo nestas circunstâncias ser solicitada a intervenção da secretaria.
Desconhece-se qual a caracterização pretendida e a eventual insuficiência das opções disponíveis, não podendo estes serviços, enquanto entidade administrativa, intervir ou modificar a informação introduzida ou intervir na distribuição de processos judiciais. Cf. DOC 4.
Perante a informação transmitida, e conforme a Portaria 280/2013, de 26 de Agosto, que define as regras da tramitação eletrónica dos processos judiciais e o disposto no n.º 3 do art.º 7 da mesma, vem a signatária solicitar a V. Exa. com caracter de urgência, que se digne oficiar as diligências necessárias à correção de omissão de distribuição da aludida peça processual, oficiando em caso necessário a intervenção dos serviços de apoio à plataforma Citius para desbloqueio da distribuição: verificado que se encontram preenchidos os requisitos exigidos para a distribuição da peça processual, considerando-se a acção proposta na data em que foi apresentada a juízo data do dia 15 de setembro de 2021, data do término do prazo de caducidade».

Junta tal documentação aos autos, em requerimento agora dirigido ao Juiz do processo, a ilustre mandataria do autor, apelando ao despacho do Sra. Juiz de Turno, datado de 21/09/2021, em que determinou que o expediente então junto fosse distribuído, solicitou que se considerasse que os presentes autos foram apresentados a juízo na data do dia 15/09/2021.
Em contraditório, a ré opôs-se, argumentado que não se tratou de um problema da plataforma informática CITIUS, mas sim de uma opção/seleção da Ilustre Causídica, uma vez que deveria de ter selecionado como forma de processo a “Acção Declarativa Cível Comum” – “Impugnação de deliberações sociais”, sendo de preenchimento automático pelo sistema (perante a seleção supra identificada) – “Anulação de Deliberações sociais”, pelo que a ação deve considerar-se ter sido intentada em 23/09, ultrapassando assim o prazo de 30 dias de que dispunha para o efeito.

Depois de várias vicissitudes, foi proferido despacho a dispensar a realização de audiência prévia, exercido que se encontrava o contraditório quanto às questões suscitadas e, em apreciação imediata e parcial do mérito da causa, por considerar que o estado dos autos assim o permitia, foi logo julgada improcedente a exceção de caducidade invocada pela ré.

Inconformada com o despacho assim proferido, recorreu a ré finalizando o recurso com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«Em razão de todo o exposto, pretende a Apelante:
A) que seja o presente recurso admitido e regularmente processado, nos termos dos artigos 644, nº 1, b), 595, nº 1, b) e 638º e do C. P.C. como Apelação Autónoma, evitando-se, assim, que se opere caso julgado em relação ao Despacho Saneador, na parte respeitante à exceção de caducidade oportunamente invocada;
B) que seja reconhecido que a lei não contém palavras inúteis e sendo, ainda, o legislador hábil em indicar expressamente as situações em que deve ser considerado o início do cômputo do prazo no dia “seguinte” aos eventos a que digam respeito, a omissão dessa indicação no artigo 59º, nº 2, do C.S.C. não permite outra interpretação senão a mais restrita, e por via disso, seja reconhecido que o termo a quo do prazo de 30 dias coincide com o dia em que se iniciou, realizou e concluiu a assembleia que aprovou as deliberações objeto do pedido de anulação; o prazo para a apresentação da ação finalizou, assim, a 14/09/2021.
C) que na eventualidade de não se admitir, de imediato, os efeitos da caducidade acima referida pela aplicação subsidiária do artigo 279º, b), do C.C., espera seja admitido também, a aplicação subsidiária do previsto nos artigos 259º, nº 1, 207º e 558, nº 3, do C.P.C., razão pela qual a recusa da petição inicial pela Secretaria, legítima e por decisão confirmada, sem qualquer reclamação do Autor, tem o efeito de não considerar a ação proposta no termo final do prazo de caducidade, havendo exceção, nesse sentido, apenas em relação ao previsto no artigo 560º, do C.P.C., que nenhuma aplicação tem ao caso em concreto».

Não foram apresentadas contra-alegações.
Tudo visto, cumpre agora apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Ressalvas as questões do conhecimento oficioso, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, como decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), pelo que cumpre agora a este tribunal apreciar:
a) da invocada caducidade da ação, à luz do artigo 59.º, n.º 2, do C.S.C.;
b) na eventualidade de assim não se entender, se a recusa pela Secretaria da petição inicial enviada a 15/09/2021 impede que se considere que a ação distribuída a 23/09/2021 tenha sido apresentada naquela data de 15/09/2021.

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III/- Fundamentação:
Com interesse para a decisão da causa, encontram-se provados os factos plasmados no relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.

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IV-/ Do objeto do recurso:
(i) Da invocada caducidade
Decorre dos autos que o autor pretende reverter a deliberação tomada em assembleia extraordinária da ré que o destituiu da gerência e do cargo de diretor clínico.
Para tanto, e em síntese, argumenta que a deliberação tomada naquela assembleia de 16/08/2021 padece de irregularidades, por ter sido assinada apenas por um dos gerentes da ré, e por a documentação de suporte à convocatória para a realização da mesma apenas ter sido entregue no dia da realização da referida assembleia.
Sem concretizar nem enquadrar juridicamente ao longo do seu articulado o tipo de vício de que padecem as deliberações impugnadas, peticiona, contudo, a final, que seja decretada a nulidade das mesmas.
Entendeu a decisão recorrida, o que não foi objeto de censura em recurso, que atendendo ao carácter taxativo do artigo 56.º, n.º 1, do C.S.C., que comina de nulidade as deliberações ali consignadas, que a situação dos autos, em face das circunstâncias invocadas pelo autor (concretamente, a “irregularidade da convocatória” por conta da assinatura exclusiva por um dos gerente e a omissão do envio da documentação de suporte em momento prévio à realização da assembleia) apenas seria, em abstrato, passível de preencher a norma residual do artigo 58.º, n.º 1 do CSC, relativa às anulabilidades.
E, por ser assim, considerou que tal ação teria de ser intentada no prazo de 30 dias contados a partir da data em que foi encerrada a assembleia geral, à luz do artigo 59.º, n.º 2, al. a), do C.S.C., prazo que, sendo de caducidade de ação, por aplicação do artigo 279.º, al. b), do C.C., terminaria no dia 15/09/2021, data em que, considerou, a ação deu entrada no tribunal.
Julgou, por isso, a decisão recorrida, que a ação foi interposta em tempo.
Contra este entendimento, insurge-se a apelante, defendendo, como primeira frente de batalha do seu recurso, que para efeitos de início da contagem do prazo para impugnação da deliberação social, não seria de aplicar a regra geral estatuída no artigo 279.º al. a) do Código Civil, mas sim, e apenas, o artigo 59.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, o que implicaria que o prazo terminaria no dia 14/09/2022.

Vejamos então, desde já adiantando que se entende nenhuma razão assistir à recorrente.

Estando em causa a alegada irregularidade das deliberações tomadas em 16/08/2021 - por terem sido assinadas apenas por um dos gerentes da ré, e por a documentação de suporte à convocatória ter sido entregue no dia da realização da referida assembleia - por exclusão de partes, bastando para tanto ler o consagrado no texto do artigo 56.º do CSC, em causa na ação estaria apenas a eventual anulabilidade do ali deliberado, por assento no artigo 58.º do mesmo diploma legal.
Como refere António Menezes Cordeiro (na obra Direito das Sociedades, I, Parte Geral, 4ª edição, Almedina, pág. 704 e sgs.) sobre esta temática «O artigo 58.º n.º 1 al. a-) traduz, como tem sido focado de modo repetido, a cláusula geral da invalidade das deliberações sociais: havendo violação da lei – quando não caiba nulidade – as deliberações em falta são anuláveis».
A ser assim, como é, diz-nos então o artigo 59.º n.º 2, al. a) do Código das Sociedades Comerciais que «O prazo para a proposição da ação de anulação é de 30 dias contados a partir: a) Da data em que foi encerrada a assembleia geral (…)».
Nessa medida, estando em causa um prazo de propositura de uma ação, e consequente caducidade do direito do seu exercício, como exceção perentória que é, teria a mesma de ser, não só, alegada, mas também provada pela ré/recorrente, ao abrigo do disposto nos artigos 342.º n.º 2 e 343.º n.º 2, ambos do CC.
Quando, por força da lei, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição (artigo 298.º. n.º 2 do CC). As razões a tanto subjacentes assentam, naturalmente, em considerações de certeza e segurança jurídica, pois, como é evidente, o interesse público exige que certos direitos sejam exercidos durante um determinado prazo, e que, decorrido o mesmo, a situação jurídica fique assente e definida.
Ora, por determinação do artigo 329.º do CC, se a lei não fixar outra data, o prazo de caducidade começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido.
Considerando a norma específica do artigo 59.º n.º 2 al. a) do CSC, o prazo geral para impugnar a deliberação tomada é de 30 dias contados a partir da data em que foi encerrada a assembleia geral.
A questão colocada é então a de saber se o prazo para contar aqueles 30 dias se inicia no próprio dia da assembleia (no caso, no dia 16/08), ou no dia seguinte (17/08), o que, naturalmente nos remete para a compreensão da natureza do prazo estabelecido no normativo em apreciação, pois, como sabemos, o nosso ordenamento jurídico diferencia o tipo de prazos que reconhece entre substantivos e processuais.
Neste enquadramento, dúvidas não temos, sendo pacífico esse entendimento, que estamos perante um prazo de caducidade, que é, assim, de direito substantivo, por a sua contagem se processar fora da tramitação processual que o nosso sistema jurídico admite (e que difere do prazo adjetivo/processual legal, que se destina a disciplinar a prática de um ato no âmbito de um processo instaurado, prazos que se podem classificar como dilatórios, perentórios e meramente reguladores).
Neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12/07/2018, relatado por Tomé de Carvalho, disponível na dgsi, que afirma que «… a acção de anulação está sediada no artigo 59º do Código das Sociedades Comerciais e o prazo para a propositura da acção é de 30 dias contados nos termos do nº 2 do citado dispositivo. É um prazo de caducidade, de natureza substantiva e civil, como decorre da interligação entre os artigos 279º, als. b) e e), 296º e 298º, nº 2, do Código Civil.».
Na doutrina, Menezes Cordeiro (no seu Código das Sociedades Comerciais Anotado, página 231) diz-nos também que tal prazo é «… um prazo civil (corre em contínuo, transferindo-se para o primeiro dia útil seguinte, quando expire em dia não útil ou em férias judiciais – 279.º, e), do CC) e de caducidade (só se suspende ou interrompe quando a lei o disponha e só é impedido por deliberação anulatória da assembleia ou pelo intentar, em tempo, da ação, - 298.º/2, 328.º e 332.º/1, do CC)».
Por ser assim, a caracterização dos tipos de prazo que vigoram no nosso ordenamento jurídico, no seu todo, fazem naufragar a argumentação aduzida em recurso, pois que, antes de qualquer teorização sobre o texto da lei, temos que ter presente os tipos de prazo que nela existem.
Sem esquecer que as regras constantes do artigo 279.º são aplicáveis, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei (… artigo 296.º do CC), tendo a Assembleia Geral Extraordinária em causa nos autos tido lugar no dia 16/08/2021, considerando então a regra geral estatuída no artigo 279.º, al. b), do C.C., segundo a qual na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia (…) em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr, o primeiro dia relevante para a contagem do prazo de caducidade é o dia 17/08/2021.
Deste modo, e a ser assim, para impedir a caducidade do direito, a ação de anulação teria de dar entrada no tribunal até ao dia 15/09/2021, e não até ao dia 14/09/2021, como argumenta a recorrente, que decai assim nesta pretensão (ver, também neste sentido, e ainda, o acórdão mais recente, de 31/05/2023, do Supremo Tribunal de Justiça, relatado por Luís Espírito Santo, e disponível na dgsi, assim sumariado «I - O prazo de trinta dias previsto no art.º 59.º, n.º 2, do CSC destinado à arguição, pelo sócio interessado, da anulabilidade da deliberação social tomada em assembleia geral reveste a natureza de prazo de caducidade, encontrando-se sujeito ao regime estabelecido nos art.ºs 328.º e 331.º, n.º 1, do CC. II - A lei não prevê nem estabelece como circunstância impeditiva ou interruptiva do decurso desse mesmo prazo de caducidade a mera instauração do procedimento cautelar de suspensão de tal deliberação social, se o requerente não tiver, antes do seu terminus e até à audiência final da providência, apresentado pedido de inversão do contencioso, o qual tem os efeitos interruptivos previstos nos art.ºs 369.º, n.º 3, e 382.º, n.º 1, do CPC. (…)».
Donde, e sem mais, improcede nesta parte a apelação intentada.

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(ii) Da data da apresentação da Petição Inicial, invocada recusa e sua distribuição:
Em segunda frente de batalha, defende a apelante que o Tribunal a quo procedeu, igualmente, a uma errónea aplicação dos artigos 193.º, 590.º n.º 1 e 560.º todos do CPC, ao considerar que a ação deu entrada no tribunal em 15/09/2022, quando, na verdade, por erro do autor, a mesma foi recusada e a sua distribuição retida dada a desconformidade do formulário Citius.
Tendo sido recusada a petição naquele dia, qualquer outro ato praticado para a sua conformidade, foi já praticado decorrido o prazo de caducidade, tanto mais que o despacho que admitiu a correção foi proferido já a 21/09/2021.
Assim, argumenta a recorrente, em face do consagrado no artigo 259.º n.º 1 e do artigo 560.º do CPC, a recusa da P.I. apresentada a 15/09/2021, permitiu que se operassem os efeitos da caducidade, e por via disso não pode prevalecer, também como argumento de improcedência da exceção invocada pela apelante, a consideração de que a ação deu entrada em juízo a 15/09/2021.

Vejamos se assim é.

Estando nós, como vimos, perante um prazo de caducidade, como vimos já, é sobre a ré que impende o ónus de alegar e demonstrar que o direito do autor caducou, dado que se trata de facto extintivo do direito do mesmo, à luz do n.º 2 do artigo 342.º do CC.
No caso dos autos, como vimos, a petição apresentada em 15/09/2021 (onde foi aposto no formulário que a submeteu: Forma de processo/classificação: outra forma de processo; Espécie: a determinar; Objeto de ação: outro ou não especificado (comércio)) foi recusada pela secretaria, que invocou para o efeito, o artigo 558.º do CPC, devolvendo a petição ao autor.
Reagindo contra esse ato de recusa, em requerimentos dirigidos à secretaria do tribunal e aos serviços informáticos, a ilustre mandatária do autor veio argumentar falhas informáticas no sistema Citius, dizendo que o sistema aceitou a petição conforme por si estava preenchida, tanto assim que gerou uma referência, não fazendo sentido a ação ter sido retida na distribuição.
Por despacho do juiz de turno à distribuição foi considerado que, como fora pedida a correção do formulário, nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08 (dado que a sua inicial desconformidade com o conteúdo da peça processual apresentada motivara a recusa da petição inicial pela Secretaria, à luz dos artigos 207.º e 558.º n.º 3 do CPC), nada impedia, e assim foi determinado, que a distribuição do expediente apresentado o fosse como ação comum.
O autor apresentou depois novo formulário corrigido, acompanhado com a p.i., em 23/09/2021 (onde foi aposto: Forma de processo/classificação: ação de processo comum; Espécie: anulação de deliberações sociais; Objeto de ação: impugnação de deliberações sociais (comércio)).

Está agora em causa saber se podemos considerar que a ação foi proposta no dia 15/09/2021, conforme pretende o autor, ou apenas no dia 23/09/2021, como defende a ré.

Determina o artigo 259.º n.º 1 do CPC que a instância se inicia pela proposição da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que a respetiva petição se considere apresentada nos termos dos n.ºs 1 e 6 do artigo 144.º.
A apresentação a juízo dos atos processuais é realizada por via eletrónica, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição, nenhum ato sendo admitido à distribuição se não contiver todos os requisitos externos exigidos por lei, verificação que é efetuada através de meios eletrónicos (artigo 207.º do CPC).
Constitui assim obrigação do apresentante o preenchimento da informação específica que o sistema de informação preveja, pois que, em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos, tal como decorre dos n.ºs 1 e 10 do aludido artigo 144.º do CPC.
O n.º 10 do 144.º replica assim o artigo 7.º n.º 2 da Portaria 280/13 de 26/08, devendo, contudo, tal regime articular-se com o disposto no artigo 146.º n.º 2 do CPC, e n.º 3 daquele artigo 7.º, facultando-se à parte a retificação do lapso (quando, por exemplo, tenha feito constar o rol de testemunhas do anexo, omitindo-o no formulário ou permitindo-se ainda a correção de lapso no preenchimento dos formulários, tendo em conta o conteúdo dos ficheiros anexos, nos termos do artigo 10.º n.º 10 al. b) do CPC e 7.º n.º 3 da Portaria, apenas se exigindo que a falta cometida não radique em dolo ou culpa grave da parte - ver CPC anotado por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Vol. I, 2ª edição, Almedina, págs. 183 e 187).
A apresentação da petição nos moldes assim consagrados constitui, pois, o único meio de obstar à caducidade do direito substantivo que com a causa se pretende fazer valer (artigo 331.º n.º 1 do CC).

Acresce que, nos termos consagrados no artigo 558.º do mesmo código, a petição inicial pode ser recusada pela secretaria em diversos casos, e, dentro deles, no que ao caso agora interessa, se não for indicada a forma do processo (al. d)), sendo que a verificação dos fundamentos de rejeição é efetuada pelo sistema, ou, quando tal não seja tecnicamente possível, pela secretaria, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º. Tendo a petição inicial que observar determinadas formalidades legais, a sua rejeição, em caso de assim não ser, é, em regra, automática, apenas exigindo justificação por escrito quando a verificação dos requisitos formais de recusa seja feita pela secretaria nos termos do n. 3.
Nos casos de recusa, regula então o artigo 560.º do CPC que Quando se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, a parte não esteja patrocinada e a petição inicial seja apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, o autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do artigo 558.º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.
Tal preceito, em face da sua atual redação, e contrariamente ao sistema anterior (que permitia sempre uma nova petição, a apresentar em 10 dias, que corrigisse aquilo que fundara a sua recusa) restringe agora tal possibilidade às ações em que, não sendo obrigatória a constituição de advogado, o autor não está patrocinado e apresenta a petição por uma das vias do n.º 7 do artigo 144.º. Esta nova redação tem recebido maiores reservas, desde logo quando está em causa o prazo de caducidade do direito que pode redundar na sua extinção (ver críticas anotadas por António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, na obra citada, pág. 648 e por Teixeira da Sousa em https://blogipcc.blogspot.com, “A (muito estranha) nova redação do art.º 560.º CPC”; tendo tomado posição, no sentido da inconstitucionalidade do regime constante do dito preceito,  João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, p. 15).

Revertendo aos autos, verificamos que a recusa da petição inicialmente apresentada em 15/09/2023 não foi objeto de recusa eletrónica imediata, gerando uma referência Citius, tendo, ainda assim, sido recusada pela secretaria, que entendeu que o formulário apresentado era insuficiente, por não indicar a espécie da causa (artigo 212.º do CPC), razão pela qual devolveu aquela petição ao autor.
Em face dos protestos do autor (que, em bom rigor, não dirigiu qualquer reclamação ao juiz, como devia, tendo em atenção o consagrado no artigo 559.º do CPC), o expediente foi levado ao conhecimento do juiz de turno à distribuição no dia 21/09/2021, que considerou, pela análise do conteúdo material da peça em causa, que estava perante uma ação comum, pelo que, em face da desconformidade entre o formulário e o conteúdo, entendendo que havia sido pedida a respetiva correção nos termos do artigo 7.º n.º 3 da Portaria n.º 280/2013 de 26/08, determinou que o expediente apresentado fosse distribuído na 1ª espécie, isto é, como ação comum, tendo em conta o objeto da ação como sendo comércio (despacho que não foi objeto de qualquer impugnação ou reparo).
Após esse despacho de 21/09/2021, o autor entregou novo formulário, datado agora de 23/09/2021, com a documentação comprovativa da remessa da peça em 15/09 e toda a tramitação subsequente.
Donde, em bom rigor, o despacho do juiz de turno, ao determinar a distribuição, contrariamente ao defendido pela recorrente, não confirmou a recusa da p.i.. Veja-se que, ainda que não em reclamação dirigida ao juiz (mas sim ao chefe da secretaria do tribunal e aos serviços informáticos), a questão da recusa do recebimento da petição inicial foi apreciada pelo juiz de turno à distribuição, que, ainda que na fundamentação afirme que a secretaria tinha razão para recusar a petição, acaba por não confirmar a mesma, pois que determina a sua distribuição (veja-se que, nos termos do n.º 3 do artigo 17.º da Portaria 280/2013, apenas se considera recusada a peça que, decorrido que seja o prazo para reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirme o não recebimento).
Não há assim que recorrer ao enquadramento jurídico feito no despacho em crise (pois que não estamos perante um erro na forma do processo tratável à luz do invocado artigo 193.º do CPC, nem estamos perante causa que não importe a constituição de mandatário e que a parte não esteja patrocinada nem perante uma recusa de recebimento ou de distribuição da petição, nem de decisão judicial que a haja confirmado, como decorre do artigo 560.º do CPC).
Não obstante, ainda que com diferente fundamentação, não podemos deixar de considerar, em face do concreto despacho do juiz de turno, que não foi impugnado de qualquer forma, que este permitiu a distribuição da p.i. de 15/09/2021, pelo que a presente ação terá sempre de ser considerada como tendo sido interposta nessa data, entendendo o juiz de turno que o autor pedira a retificação do formulário, assim obstando à recusa da p.i.
Seria mesmo desproporcionado e totalmente irrazoável que, em face de toda a tramitação processual - em que a secretaria entendeu recusar a petição inicial, não a submetendo à distribuição na data em que foi apresentada, o que depois foi retificado pelo juiz de turno à distribuição, que a determinou - se pudesse afirmar ou confirmar o entendimento que a petição inicial não fora apresentada em tempo pelo autor.
Donde, e sem mais, improcede, também nesta parte, a presente apelação.

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V-/ Decisão:
Por todo o exposto, acordam as Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, e, ainda que com diferente fundamentação, confirmar a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 17/10/2023
Paula Cardoso
Amélia Rebelo
Fátima Reis Silva